Guardas que traficam na prisão que guardam

 

Cide Grazina foi um dos 116 guardas prisionais admitidos no concurso público aberto em 2000. Tinha então 23 anos e conseguira a proeza de entrar para o corpo apesar de uma condenação com pena suspensa por tráfico de droga. “A pena não tinha transitado em julgado e por isso não constava do registo criminal”, explica uma fonte judicial. “Tinha o cadastro limpo quando foi admitido”, confirma uma fonte dos Serviços Prisionais.

Após 19 anos, em 2019, Cide Grazina acabaria detido com mais três colegas sob suspeita de corrupção e tráfico de droga dentro dos muros da cadeia de Paços de Ferreira. Não vai a julgamento no próximo dia 6 de setembro no Tribunal de Penafiel porque morreu há um ano em circunstâncias misteriosas junto a uma quinta abandonada em Paredes. Os outros três guardas prisionais, incluindo um chefe, estão acusados de vários crimes de corrupção e tráfico de droga, e vão ter de enfrentar a justiça dos homens num caso com um nome autoexplicativo.

A Operação Entre Grades começou com um estalo na cara do recluso Carlos Cardoso. “Carlitos”, como também era conhecido no EP de Paços de Ferreira, foi chamado à cela de Fábio “Gordo”, um dos presidiários mais influentes da cadeia e suspeito de formar com Fábio “Tendas” e Tiago “Grande” uma aliança para traficar dentro da prisão. Mal entrou na cela, “Carlitos” levou um estalo e ficou sem o cartão do refeitório que passou a ser usado por “Gordo”. Mais do que uma agressão, a humilhação deveu-se ao facto de “Carlitos” se recusar a continuar a esconder e vender droga para a organização que “Gordo” e outros reclusos montaram na prisão. Como já tinha sido ameaçado antes, “Carlitos” decidiu falar.

Segundo a acusação do Ministério Público (MP), o depoimento deste recluso — aceitou colaborar depois de ter sido transferido para outra cadeia — foi fundamental para a PJ do Porto conseguir desmantelar este grupo que contava com a preciosa colaboração de três guardas e um chefe: o falecido Grazina, Dispenza, Machado e Borges. De acordo com o MP, estes elementos da guarda prisional eram pagos em dinheiro, bicicletas, televisores e descontos na aquisição de automóveis em stands controlados pelos suspeitos para introduzir na cadeia heroína, haxixe, cocaína e telemóveis.

Os pagamentos eram feitos na rua por familiares dos reclusos que lideravam a rede de tráfico dentro da cadeia, mas a investigação não conseguiu apurar exatamente quanto ganharam no total durante os anos em que a organização funcionou. “Recebiam em numerário ou em géneros o que dificultou a investigação porque não deixaram rasto”, explica uma fonte judicial. Era-lhes dada uma quantia fixa que correspondia a uma percentagem da droga transportada. Cem gramas de haxixe traduziam-se em €100; 20 gramas de heroína, €200.

Para provar que estava a falar verdade, “Carlitos” entregou a um guarda honesto que serviu de intermediário com a PJ e o MP seringas e agulhas que Fábio “Gordo” lhe tinha pedido para guardar. A partir deste depoimento, a PJ ouviu testemunhos de outros reclusos, como o de Tiago “Traficante”, que também era pago para esconder droga em “poços” (esconderijos) na cela e de guardas que nada tinham a ver com o tráfico mas que suspeitavam dos colegas e estavam “indignados” com a situação.

Esquema durou dez anos

Este esquema de tráfico de droga terá durado dez anos e rendeu “largos milhares de euros” aos líderes da rede. Segundo o MP, foram usadas contas bancárias de terceiros para guardar o lucro obtido com o tráfico na cadeia onde os preços da droga e dos telemóveis são muito superiores aos que se praticam na rua. O Ministério Público apreendeu €131 mil em contas controladas por “Tendas” e €55 mil a Fábio “Gordo”. A um dos guardas foram apreendidos €4800 em dinheiro e €500 a outro.

A rede recorria a reclusos de confiança para guardar e vender a droga e aos guardas porque eram a maneira mais segura de meter o produto na cadeia sem riscos de apreensão como sucede quando recorrem, por exemplo, aos familiares que os visitam.

A investigação foi não só dificultada pelo facto de decorrer no meio mais hostil possível: nas cadeias impera a lei do silêncio e neste caso em concreto houve ameaças aos reclusos que eram suspeitos de colaborarem com a polícia — qualquer um que fosse levado à PJ estava imediatamente sob suspeita de estar a colaborar. Mas também por alguma descoordenação entre a PJ e os serviços prisionais. Dez meses antes de a Operação Entre Grades rebentar, houve buscas na prisão feitas pelos pelos próprios serviços e vários reclusos foram transferidos para outras cadeias o que quase ia provocando o fim da investigação. “Os suspeitos ficaram a saber que eram suspeitos”, ironiza a fonte judicial.

Na mesma cadeia, a polícia já tinha desmantelado um outro grupo que pagava ao chefe José Coelho para transportar droga para dentro dos muros. Este chefe apanhou 13 anos de prisão no julgamento que acabou há pouco mais de dois meses. Outros quatro arguidos, todos reclusos, foram condenados a penas de prisão efetiva. Mas a pena mais alta foi para o guarda prisional.

Os suspeitos que vão ser agora julgados estão em prisão preventiva e domiciliária. Um deles, Rogério Machado, foi preso a pedido. Depois de ter sido presente ao juiz, ficou em liberdade e foi suspenso pelos serviços prisionais que deixaram de lhe pagar o ordenado. Os outros dois guardas ficaram presos e continuaram a receber. Como continuava vinculado à função pública, não podia inscrever-se num centro de emprego ou receber o subsídio de emprego. Por isso, fez um requerimento ao juiz de instrução a pedir para ficar em prisão domiciliária para deixar de estar suspenso e poder receber o salário. Mas os serviços prisionais acabaram por interromper o pagamento aos outros dois e nunca mais deram um cêntimo a Machado, que passou seis meses preso em casa e sem ordenado.

03/10/2023 02:04:41