Professores deslocados. "Não consigo dormir. Não é fácil. Tem sido penoso"
A vida de Anabela Santos foi quase sempre a de professora deslocada desde 1997: tirou o curso em Viseu, passou por Lisboa e esteve cinco anos nos Açores e na Madeira. Regressou ao continente e foi colocada em Cinfães, onde esteve três anos, a 80 quilómetros de casa, e posteriormente deu aulas em Viseu, onde lecionou seis anos.
Pelo meio, esteve no Viso e também em S. Pedro do Sul, aproximadamente a 20 quilómetros de casa. Agora, é com muita tristeza que a docente de Português e História do 2.º ciclo, de 46 anos, verifica que voltará a fazer 160 quilómetros por dia, tendo sido colocada novamente em Cinfães.
“Estou muito descontente e tenho tentado a todo o custo que me oiçam. Infelizmente, sabia que isto iria acontecer”, desabafa a mulher mãe de um adolescente de 17 anos. Além do filho, tem a seu cargo os pais idosos.
“E também tenho o meu marido. Ele é polícia, trabalha por turnos e, por isso, temos duas profissões difíceis. Vou fazer 160km por dia e aquilo que me assusta mais é o nevoeiro, o gelo e a neve na serra todos os dias. Corro perigo”, explica a professora, adiantando que, quando as listas de mobilidade interna foram veiculadas no site da Direção-Geral da Administração Escolar, no passado dia 13 de agosto, percebeu que uma colega que se encontrava num lugar anterior ao seu – em termos de anos de serviço e de graduação – viu o pedido de reapreciação de mobilidade por doença ser deferido. Logo, deixou o lugar que ocupava numa escola em S. Pedro do Sul e que Anabela tanto deseja.
“Tentei mexer-me, fui ao Sindicato dos Professores da Zona Centro e a advogada fez uma exposição por escrito. Até à data, o Ministério da Educação não respondeu. Para espanto meu, anteontem verifiquei que foi colocada uma colega contratada a 3km de minha casa, tendo menos seis anos de serviço do que eu”, avança, assumindo que o facto de os professores se organizarem entre si para que ninguém fique sem boleia é o único fator facilitador da jornada dos professores deslocados. Contudo, mesmo existindo a entreajuda, não é simples.
“Em 2009, nevou muito e houve semanas em que me levantei às 4h e cheguei às 10h à escola. Tínhamos de ir pela A24, passar pela Régua, voltar e chegávamos seis horas depois. Parece-me que, neste momento, há mais condições para passar a serra, porque há um limpa-neves, o que é menos mau no meio disto tudo”, constata e, por isso, não ficou surpreendida quando se apercebeu de que, no ano letivo passado, a 28 de outubro, havia 396 horários por preencher, 42 dos quais completos e 253 superiores a oito horas letivas, de acordo com Vítor Godinho, dirigente da Fenprof.
A informação foi, à época, avançada pelo Jornal de Notícias, que esclareceu que em Lisboa estavam 181 professores em falta, em Setúbal 77, em Faro 34 e no Porto 22. Por disciplina, era possível afirmar que as disciplinas de Português, Inglês, Geografia, Física e Química, Matemática do 3.º Ciclo e Secundário eram aquelas que tinham mais horários por preencher volvido mais de um mês do início do ano letivo.
“Não consigo dormir. Não é fácil”, diz entre lágrimas e pedidos de desculpa. “Se não houvesse a serra, a escola seria ótima. Mas, com este problema… É muito complicado. E já tenho 46 anos. Fiz muitos sacrifícios pela profissão e ver a forma como o Ministério me ‘compensa’…. É triste”, declara, asseverando que “se houvesse justiça, estas situações seriam devidamente ponderadas. Como professora, ensino que devemos lutar pelos valores da democracia, mas como é que posso fazê-lo se os valores da igualdade e da justiça não prevalecem?”, questiona com desânimo.
“E, como mãe, é difícil explicar isto ao miúdo. Tenho de me mentalizar de que vou voltar a ser feliz em Cinfães, mas, ao mesmo tempo, vou ter de me resignar. Tem sido penoso”.
O caso de Anabela não é único. No passado mês de março, o Sindicato dos Professores do Norte denunciou que, em 2017, “muitos professores, colocados num primeiro momento a centenas de quilómetros de distância das suas áreas de residência e dos estabelecimentos de educação onde vinham habitualmente prestando funções, viram, num segundo momento, inúmeros dos seus colegas menos graduados a obter colocação em escolas muito mais próximas e para as quais os primeiros tinham igualmente sido candidatos”.
“Esta situação de flagrante injustiça, então perpetrada, acabou por ser corrigida no ano letivo seguinte”, porém, existem docentes como Anabela que ainda não conseguiram fazer valer os seus direitos.
“Já não fazia as malas há 23 anos” Graça Carvalho tem 55 anos e é professora de Inglês do 3.º ciclo e do Ensino Secundário há quase 30. Natural de Vouzela, no distrito de Viseu, explica que, depois de alguns anos feitos de viagens longas, pensou que teria mais estabilidade profissional.
“Com o alargamento dos Quadros de Zona Pedagógica (QZP), no governo do ministro Nuno Crato, passei a pertencer a outro QZP. Com a decisão de colocar os professores em horários completos neste QZP, fiquei em Castelo de Paiva”, isto é, a cerca de 60km de casa, o que implicaria uma deslocação total diária de 120km.
“É simplesmente impossível, tive de me mudar para lá. Já não fazia as malas há 23 anos. O último ano em que fiz isto foi em 1998. Tenho uma filha de 18 anos e vou fechar a minha casa e o meu projeto de vida. Ela também só virá aos fins de semana porque vai entrar na faculdade. Aluguei uma casa com mais colegas. Uma é de Coimbra e a outra de Sever do Vouga. E há uma que ainda não conheço”, narra, não escondendo que recebeu a notícia da colocação com infelicidade.
“Entrei em estado de choque quando soube. Foi uma das últimas opções que coloquei porque as viagens demoram mais de uma hora e meia, numa estrada pelas serras e sabia que nunca podia fazer duas diariamente. Ou trabalho ou faço viagens. Não tenho nada a dizer das escolas, mas em relação ao Ministério… Não posso escolher as instituições, sou obrigada a selecionar todas as escolas do meu QZP”, lamenta, acrescentando que, na quarta-feira, foi publicada a denominada primeira reserva de recrutamento e verificou que tinha horários completos em instituições muito mais próximas de sua casa.
“E voltei a ficar em estado de choque. Somos obrigados a aceitar, não podemos voltar a concorrer. E como eu, há muitas colegas que passam por isto. Isto é desumano. No tempo em que era contratada, tinha de arriscar, mas agora? Entrei no QZP de Viseu em 2000. Já estou aqui há 21 anos. Eu não tinha que mudar nesta fase da minha vida. Os horários completos para os professores do quadro foram atribuídos a colegas minhas da contratação. Por isso, quando cheguei a Castelo de Paiva, disse que fui ‘expulsa de casa’.
Ninguém compreende o Ministério”, salienta a docente que tem passado os últimos dias a fazer contas e a temer que a filha não seja colocada numa universidade em Lisboa.
“Se ela ficar na capital, estará com o pai. Se for para outra cidade, terei mais despesas porque ajudá-la-ei, pagarei o meu quarto e assegurarei a casa de Viseu. E ninguém se lembra destes pormenores que fazem toda a diferença. Isto não pode continuar assim, não há quem aguente. Eu já me sinto envelhecida e, ao fim destes anos todos, acho que já merecia estar numa escola próxima de casa e não andar a saltar de escola em escola. Veremos se conseguirei suportar todas as despesas”, lastima a docente, adicionando que tem feito “muitos quilómetros ano após ano” para conseguir estar perto da filha.
“Deslocamo-nos, mas não temos ajudas. Acho que as pessoas que estão a gerir os recursos não têm noção da vida real de um professor”, critica, recordando que em outubro do ano passado foi noticiado que a criação de um apoio à deslocação de professores – como incentivo de fixação de docentes –, que estava prevista no Orçamento de Estado para 2020 (OE2020), não foi colocada em prática e não estava prevista para o Orçamento de Estado para 2021 (OE2021).
É de lembrar que no OE para 2020 previa-se a “criação de incentivos à aposta na carreira docente em áreas do país e grupos de recrutamento onde a oferta de profissionais possa revelar-se escassa”, mas tal não se concretizou.
“Houve uma altura em que estive com um dos secretários do ministro Nuno Crato e disse-lhe exatamente aquilo que eu pensava. Ainda não encontrámos um modelo justo de concurso, mas, com as assimetrias regionais que existem, é normal que tal aconteça. Nuno Crato dizia que havia professores a mais, mas agora há a menos”, garante a professora que já se dedicou a um projeto de turismo que não resultou devido à crise financeira de 2008. “Se tivesse resultado, já teria rescindido com o Ministério da Educação”.
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