A necessidade urgente de se rever o regime da recuperação das empresas
1. Enquadramento
A pandemia teve, e continuará a ter, efeitos muito duros na realidade económica e empresarial. Diversas empresas foram impedidas de laborar; outras, só o puderam fazer parcialmente; e, outras, ainda, foram atingidas pelas limitações à circulação de pessoas e pela recessão económica geral. Foi em particular assim nas empresas do setor dos serviços, com ênfase no turismo e na restauração. Acumularam passivos e têm problemas crescentes e fortíssimos de liquidez.
O conjunto de medidas adotadas pelos entes públicos para minorar as suas consequências passou, e bem, por diversos apoios e pelo regime das moratórias legais. Mas essas medidas não eram, e continuam a não ser, em si, suficientes e estão a cessar.
Por isso, a resposta tem que passar, também, por mecanismos que, numa análise fina, permitam a restruturação das empresas, em especial as que estando fortemente desequilibradas financeiramente, tenham, neste pós-pandemia, viabilidade económica.
Com essa finalidade, foi publicado no fim do ano passado o processo extraordinário de viabilização de empresas (PEVE - Lei n.º 75/2020, de 27/11). É um instrumento que consagra medidas, a meu ver fundamentais, como a possibilidade de empresas insolventes recorrerem a uma variante de uma das modalidades do processo de recuperação (a dos acordos homologados), a proteção excecional e temporalmente limitada do financiamento pelos sócios e as reduções dos juros de mora das obrigações tributárias. Porém, dada a gravidade da situação financeira de muitas empresas, aprofundada pela necessidade de se ter tido que recorrer a um novo confinamento, é necessário continuar a procurar os meios mais aptos para elas se restruturarem, em especial no que toca ao passivo acumulado.
2. Ampliação do âmbito objetivo do Processo Especial de Revitalização (PER)
I. O que se propõe aqui é a adaptação do processo especial de revitalização (PER), permitindo a restauração de empresas, já, insolventes, de forma excecional.
Por conseguinte, torna-se necessário estabelecer um período de proteção dentro do qual a empresa possa negociar com os credores sem estar sujeita a esse tipo de pressões, restruturar a dívida e refinanciar-se. Esse sistema, denominado de “escudos protetores”, existe e faz parte do processo especial revitalização (PER), na sua primeira modalidade. O recurso a este processo permite à empresa iniciar e manter negociações com os credores de uma forma protegida (no âmbito de um safe harbour). Neste caso, o período necessário para se chegar a acordo e permitir depois às empresas, que, evidentemente, sejam economicamente viáveis em circunstâncias normais de mercado na recuperação económica pós-pandemia, manterem a sua atividade.
O PER tem, para além do mais, a vantagem de ser um instrumento bem conhecido, tanto pelas empresas, como pelos tribunais, o que é do maior relevo para a uniformidade e segurança na sua aplicação.
Dir-se-á que PER, não foi concebido para recuperar empresas insolventes. É verdade, mas situações excecionais exigem medidas excecionais. E, por esse motivo, esta adaptação deveria ser limitada no tempo.
II. É, ainda, necessário colmatar uma das principais deficiências do regime do PER no que diz respeito à proteção do financiamento intercalar, ou financiamento-ponte, para a empresa poder obter meios que lhe permitam manter-se em atividade durante o período das negociações, sem que essa tutela fique dependente da aprovação e homologação do plano (art. 17.º-F n.º 1 CIRE). Neste ponto, aliás, o regime do PER está mesmo em desconformidade com a Diretiva (art. 17.º da Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019) que impõe a proteção do financiamento intercalar.
Por fim, alterado nos termos expostos o regime do PER - ou mesmo que não o seja -, é de toda a conveniência estender-lhe um regime fiscal mais favorável.
Os consumidores também deveriam ser abrangidos por esta medida. Na verdade, há um regime em tudo quase tudo idêntico ao PER, o processo especial para acordo de pagamento, que permite a recuperação de pessoas singulares, sem ser declarada a sua insolvência. Esse regime deveria ser adaptado, como forma de facilitar a restruturação das dívidas de consumidores em situação já de insolvência, nos termos acabados de propor para as empresas.
3. A insolvência de pessoas singulares. A exoneração do passivo restante.
Um outro aspeto tem a ver com as consequências da insolvência das pessoas singulares, em regra consumidores, quando ela venha a ser declarada. Incluo aqui, tanto os consumidores, como também muitos sócios e gerentes das empresas que prestaram garantias pessoais à banca pelas dívidas da sociedade. O número de insolvências de pessoas singulares vai aumentar muito com a perda de emprego por arrastamento das insolvências das empresas. O desemprego levá-las-á ao não conseguirem pagar os seus empréstimos hipotecários e arriscam ficar sem a casa e manter parte da dívida.
É necessário rever o regime que permite libertar as pessoas singulares das dívidas decorrido um determinado período de tempo, por via da exoneração do passivo restante.
Torna-se, por isso, necessário rever todo o regime que as permite libertar das dívidas decorrido um determinado período de tempo, por via da exoneração do passivo restante. Neste momento, são cinco anos. É manifestamente excessivo. Na Alemanha, o legislador acabou de o reduzir para três anos, aproveitando e alargando a transposição da diretiva. Vamos manter um regime muito mais penalizador dos nossos concidadãos do que existe na Alemanha, conhecida por ser especialmente rigorosa nesta matéria? É imperativo que sigamos rapidamente esse caminho.
De outra forma, vamos ter milhares de concidadãos que, atendendo à difusão do crédito hipotecário, sendo declarados insolventes, perderão a sua casa, manterão parte das dívidas e estarão condenados à penúria por um prazo longuíssimo. Empurrados muitas vezes para a economia informal. Há que cuidar, rapidamente, dos mais fracos e das principais vítimas económicas da pandemia.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico