Comissões de protecção com mais casos de jovens em perigo associados ao confinamento

Naquela casa, a mãe, os dois filhos e o avô destes viam-se num equilibrismo emocional há algum tempo; a tensão colava-se-lhes à pele quando entraram em confinamento numa das fases piores da pandemia. Já estavam sinalizados pela comissão de protecção de crianças e jovens (CPCJ). Daí até uma das filhas ser acolhida numa instituição para crianças e jovens em perigo foi um passo.


Numa outra família, nunca antes sinalizada por qualquer situação de perigo, uma adolescente de 15 anos foi surpreendida pelos primeiros ataques de pânico quando regressou à escola depois das longas ausências impostas pelo confinamento. Ainda hoje, a jovem não consegue estar na sala de aula, com professores, amigos e colegas. Passou a ser acompanhada pela comissão de protecção, por estar em perigo o direito à educação. Hoje continua integrada no ensino à distância.

“A jovem associa essa situação à pandemia, ao facto de ter estado fechada. Se não tivesse havido confinamento, o mais certo era não haver sinalização”, diz a presidente da CPCJ de Mafra, Dina Alves.

Ainda não existem dados das comissões de protecção para 2021, mas Vera Santos Costa, presidente de uma outra CPCJ (Sintra Oriental), não tem dúvidas de que “houve uma degenerescência dos casos de saúde mental nas crianças e adolescentes” com “tentativas de suicídio, perturbações da ansiedade, comportamentos de oposição e desafio e dependência de Internet” e isso “resultou num aumento de números de situações de perigo que levaram à instauração de processos de promoção e protecção”.

O isolamento agudizou sintomas, bem como o facto de o acompanhamento psiquiátrico ser feito à distância e as consultas terem sido reduzidas, diz também Arlete Santos, presidente da CPCJ de Sintra Ocidental.

Os números disponibilizados pela procuradora-geral adjunta e coordenadora do MP da comarca de Lisboa Oeste, Luísa Verdasca Sobral, reflectem também um aumento dos processos judiciais abertos nesta área. A comarca de Lisboa Oeste abrange três das maiores comissões de protecção do país – Amadora, Sintra Oriental e Sintra Ocidental (que estão todos os anos entre as que têm mais processos) e ainda a CPCJ de Mafra, Oeiras e Cascais (que também conta com números muito expressivos).

Em 2019, o MP da comarca de Lisboa Oeste instaurou 845 processos de promoção e protecção; em 2021, esse número subiu para 945 (mais 100). “Em 2021, houve um agravamento dos comportamentos violentos e das tensões no agregado familiar”, diz ao PÚBLICO a magistrada do MP para quem “a crise económica associada à pandemia se reflectiu na saúde mental dos adultos”.

Demora na marcação de consulta

No caso da criança da jovem que tem agora aulas à distância, foi solicitado um acompanhamento pedopsiquiátrico nos serviços públicos de saúde, mas “perante a demora na marcação de uma consulta, os pais diligenciaram junto do sector privado”, continua. “Tinham essa possibilidade.”

Já no primeiro caso aqui descrito, da criança de 14 anos, em que já havia sinalização antes da pandemia, não estava em causa a relação de afecto da mãe – a ser tratada por doença psiquiátrica – mas o perigo que a sua condição representava para os filhos. Havia o escape da escola e das saídas com os amigos para a criança; havia uma cadência nas consultas de psiquiatria da mãe que transmitia segurança; até que a menina de 14 anos deu sinais de também ela ia precisar de ajuda especializada.

Foi uma escolha pensada, não sem qualquer resistência, mas com o acordo da mãe que percebeu o ponto de não retorno a que tinham chegado, diz Joana Pinto, presidente da CPCJ da Amadora.

O habitual é o inverso, com as comissões de protecção a promoverem uma retirada da família em caso de perigo para as crianças e tanto estas como os pais (visados por serem a fonte do perigo) a oporem-se à separação.

Nesta família, saltara-se essa fase. “Neste momento a doença desprotege ambas e a mãe tem consciência disso. A tensão põe em perigo a saúde mental da mãe e da filha e a solução foi retirá-la desse ambiente. Mas o que se queria aqui era que a criança fosse acolhida numa residência especializada” para crianças com perturbações identificadas e não num lar para jovens em perigo, continua Joana Pinto.

A resposta da equipa de gestão de vagas foi negativa. A criança está afastada da mãe, mas sem o acompanhamento pretendido na área da saúde. “Separamos a criança do ambiente disfuncional que agrava a sua sintomatologia, mas isto não dá resposta. Só estamos a reparar. Precisamos de uma resposta de saúde mental adequada para tratar.”

Assim, Amadora (uma das CPCJ do país com mais processos), e o concelho de Mafra (com um volume processual muito menor), são duas faces do mesmo problema: novas sinalizações e agravamento das já existentes, por perturbações psiquiátricas associadas à pandemia, e sem a resposta necessária nos serviços de saúde públicos.

O desemprego e o lay-off

A procuradora Luísa Verdasca Sobral identifica no desemprego e no lay-off situações potenciadoras de crises na família. “Este destaca-se como um dos grandes impactos de 2021, e daqueles para os quais faltam respostas. É uma preocupação com imensa expressão. Na área da saúde tem de haver respostas de intervenção prioritária particularmente na área da saúde mental”, sublinha.

“Os cuidados de saúde mental são mínimos nos cuidados de saúde primários. Há um défice da resposta na área da pedopsiquiatria que já vem de há muitos anos atrás”, concorda Joana Pinto, da CPCJ da Amadora.

E conclui: “Não vemos que haja uma resposta adequada para estas crianças. São acolhidas no sistema de promoção e protecção, mas deveriam ser acompanhadas por equipas especializadas. Isso preocupa-nos.”

21/03/2023 20:36:46