Supremo trava alojamento local em prédios de habitação, fixando jurisprudência
Acabaram as divergências de entendimento jurídico sobre a possibilidade de coexistirem, num mesmo prédio, habitação permanente e temporária (para fins turísticos). O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) acaba de uniformizar a jurisprudência relativamente a esta matéria, estabelecendo que, “no regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo de que certa fracção se destina a habitação deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local”. O número de processos a pedir a ilicitude da actividade de alojamento local vai disparar, admite juiz conselheiro, em declaração de voto. Rijo Ferreira alerta ainda para as consequências económicas desta decisão.
O acórdão do Pleno das Secções Cíveis do STJ, de 22 de Março, a que o PÚBLICO teve acesso, surge após decisões judiciais díspares, especialmente em dois acórdãos do Tribunal da Relação do Porto e do de Lisboa : o primeiro a acolher os argumentos de quem se sente prejudicado pelo acesso de estranhos a garagens e prédios, de barulho fora de horas ou de sujidade e desgaste de partes comuns; e o outro a validar a perspectiva dos que consideram ter o direito de afectar as fracções de que são proprietários a outra finalidade que não a habitação permanente.
Em causa nas duas decisões, que já vêm pelo menos desde 2016, estão duas questões fundamentais de direito: a de determinar se a actividade de exploração de alojamento local integra um acto de comércio; e se a utilização de uma fracção destinada a habitação para alojamento local viola o título constitutivo da propriedade horizontal.
Mesmo com as alterações ao regime de alojamento local introduzidas em 2018, a decisão do STJ veio acolher a posição dos tribunais do Porto, que logo na primeira instância considerou “ilegal” a utilização de fracção de um prédio, situado na zona da Sé, no Porto, para estabelecimento de alojamento local. Aquela decisão, confirmada pela Relação, condenou os réus “a cessar imediatamente a utilização dada”, bem como ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor diário de 150 euros, desde a data do trânsito em julgado da sentença até à efectiva cessação da mesma.
Avalanche de processos
A uniformização de jurisprudência deverá fazer aumentar o número de processos em tribunal, tendo em conta a decisão do Supremo, mas também graças às condições específicas do tempo em que a mesma vai ser aplicada, que abrange todos as explorações actuais de alojamento local, independentemente da data de autorização.
Apesar de ter sido aprovado por unanimidade por perto de três dezenas de juízes, constam no acórdão duas declarações de voto e uma delas aponta precisamente para a possibilidade de “avalanche” de processos, decorrente dessa aplicabilidade, e para os riscos económicos da mesma.
Escreve o juiz Rijo Ferreira: “(…) não vislumbro que tenham sido ponderadas as consequências da jurisprudência firmada, sendo que um dos factores de interpretação estabelecido no art.9° do Código Civil são as condições específicas do tempo em que é aplicada. Com efeito, da jurisprudência firmada resulta a ilicitude de todas as explorações de alojamento local instaladas em fracções autónomas de imóveis constituídos em propriedade horizontal destinadas a habitação, ainda que registadas e com título de abertura ao público, podendo qualquer condómino isoladamente exigir a cessação de tal actividade, perspectivando-se uma avalanche de processos dessa natureza e uma disrupção significativa nesse não despiciendo sector da actividade económica”.
A actividade de alojamento local, que já era informalmente praticada desde há muito nas zonas balneares mas passou a ter um regime legal específico em 2008, conheceu um crescimento exponencial a partir de 2014, deixando de ser uma actividade de aluguer de quartos ou segundas habitações, passando a ser praticada em fracções de prédios em propriedade horizontal. Esta mudança tem gerado profundas divergências sociais e políticas, tendo em conta o impacto positivo das receitas e o negativo na limitação da oferta de habitação e arrendamento permanentes, para além de outros factores, como a saída “forçada” de moradores dos centros históricos das grandes cidades.
Dada a elevada conflitualidade gerada em alguns prédios destinados a habitação, a legislação do alojamento local foi alterada em 2014, nessa altura essencialmente em matéria de impostos a pagar – distintos do arrendamento permanente –, e mais recentemente, em 2018, tentando conciliar interesses opostos no sector.
A ineficácia das alterações de 2018
No essencial, a Lei nº 62/2018, de 22 de Agosto, passou a admitir a possibilidade dos condóminos (mais de metade) poderem pedir o cancelamento do registo de actividade de alojamento local, até ao máximo de um ano, no caso de comprovada “a prática reiterada de actos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de actos que causem incómodo ou afectem o descanso dos condóminos”. E permitiu ainda limitar, em casos específicos, o número de fracções afectas a essa actividade.
Apesar desta salvaguarda, o Supremo entende que “nada se modificaria na situação jurídica do acórdão recorrido, por a alteração legal não ter modificado o estatuto condominial, com base no qual o tribunal tem de julgar a causa”.
Já o juiz Rijo Ferreira refere, na declaração de voto a favor, que “o Regime Jurídico da Exploração dos Estabelecimentos de Alojamento Local (DL 128/2014, 29 Agosto, na republicação anexa à Lei 62/2018, 22 Agosto) ao excepcionar única e especificamente a necessidade de autorização prévia do condomínio no caso de ‘hostel’ (…) e ao estabelecer um limite máximo do número de fracções exploráveis por edifício (...) está a permitir, genérica e incondicionalmente, em todas as demais situações, e uma vez cumpridos os requisitos de tal legislação específica, a exploração de estabelecimentos de alojamento local em fracções autónomas de edifícios destinadas a habitação, o que pressupõe e implica que aquele é um uso compatível com o fim a que são destinadas, retirando essa actividade do âmbito de aplicação da alínea c) do nº. 2 do art. 1422° do Código Civil [...]”. Este artigo confere a cada condómino o direito de se opor a que qualquer das fracções dos restantes condóminos seja usada para fim diverso do que lhe é destinado no estatuto da propriedade horizontal em foco.
No acórdão consta ainda outra declaração de voto, a da juíza Maria Olinda Garcia, que assumiu, apesar do voto favorável, “algumas dúvidas, porque sob a designação ampla de ‘alojamento local’ (enquanto alojamento para fins turísticos ou para satisfazer outras necessidades habitacionais transitórias), desenvolvido numa fracção autónoma, podem caber realidades contratuais bastante diversas (que serão diferentemente afectadas pelos sentidos possíveis a dar ao problema em equação)”. Conclui, no entanto, que “face ao quadro legal vigente, ainda que a opção defendida no acórdão possa ser, em algumas hipóteses, significativamente penalizadora dos interesses do proprietário da fracção que pretende rentabilizar o seu património, ela acaba por, de modo preventivo, tutelar os interesses de sossego e segurança dos residentes habituais de um imóvel de habitação colectiva”.