Crianças ″marcadas″ por falsas denúncias de violência doméstica
A filha de João (nome fictício) tinha seis anos quando ele saiu de casa, com duas malas e o peso de uma relação que se tornara insuportável. Quando informou a ex-mulher que iria pedir a guarda partilhada da menina, foi alvo de "constantes perseguições, ameaças, acusações falsas, até que duas ou três semanas antes do julgamento (que iria decidir a custódia da filha), esta senhora resolve apresentar queixa na polícia com um teor gravíssimo, uma coisa hedionda". João foi acusado de abusar sexualmente da filha, o que levou à abertura de um processo de inquirições e à suspensão de todas as visitas. Durante quatro meses, não teve qualquer notícia nem conseguiu falar com a filha. Foi "o período mais horrível da minha vida", recorda quase três anos depois da apresentação da falsa queixa.
João saberia mais tarde que a menina de seis anos chegou a perguntar à mãe "se o pai tinha morrido. Ainda hoje tento imaginar o que terá passado pela cabeça da minha filha". Recorda também o olhar da criança no primeiro encontro que tiveram cinco meses depois, quando foram autorizadas "visitas supervisionadas por duas psicólogas", uma hora por semana. Parecia que "estava a conhecer o pai naquele dia. Uma sensação estranhíssima pela qual nenhum pai deveria passar".
João tem hoje a guarda da filha, depois do tribunal ter decidido que a mãe é incapaz, mas a decisão demorou 15 longos meses. "Há toda uma série de mecanismos e artimanhas que estão na mão de quem acusa falsamente para atrasar estes processos: moradas falsas, não aparecer nas inquirições", apenas com o objectivo de arrastar o processo, lembra João, que se sentia alvo de um "terrorismo diário".
Ao longo de 15 meses, João e a filha tiveram de ser avaliados pelo Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), num processo que de urgente só tem o nome. "O relatório de uma perícia, de psicologia ou psiquiatra, a pedido de um tribunal, mesmo com carácter de urgência, não demora menos de seis meses a ser enviado", conta. "Isto é inadmissível. Pelo meio, há uma criança e um pai que sofrem, com estas denúncias falsas", que João considera a "forma mais terrível de alienação parental".
Hoje, com nove anos, a filha de João vive feliz com o pai, por decisão do tribunal, mas falta ainda a decisão do tribunal que pode inibir a mãe de qualquer responsabilidade parental. E já passaram quase três anos desde o início do pesadelo.
O presidente da Associação para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos, Ricardo Simões, confirma que "é praticamente normal existir uma denúncia de violência doméstica. Muitas vezes, (a falsa alegação) é usada como instrumento para afastar a criança dos progenitores e é algo que temos de investigar e ter em atenção porque afecta a vida das verdadeiras vítimas de violência doméstica", defende.
A advogada de Direito da Família e que trata também de casos de crimes em contexto familiar, Ângela Vieira, alerta para o risco da "banalização da incriminação da violência doméstica", o que considera perigoso, porque "acaba por ser um desrespeito às reais vítimas de violência doméstica". Entre os seus clientes, Ângela Vieira nota que há pais que "usam esta táctica porque têm consciência da eficácia desta estratégia. Os tribunais, tendo a mínima dúvida, muitas vezes optam por, cautelarmente, suspender as visitas ou por um regime de visitas supervisionadas", explica.
Os juízes pedem também avaliações psicológicas dos pais e das crianças, análises que são realizadas pelo Instituto Nacional de Medicina Legal (INML). A psicóloga perita do INML e vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses, Renata Benavente, regista "um aumento muito significativo de solicitações, por parte dos tribunais, de avaliações psicológicas nestes casos de conflito parental severo e crónico. Os casos são bastante complexos. Estas dinâmicas de conflito parental são particularmente difíceis de avaliar por parte dos juízes e portanto, pedem apoio dos psicólogos".
A delegação sul do INML tem dois psicólogos nos quadros, contando com a colaboração de outros peritos, como Renata. Uma equipa insuficiente para dar resposta a tantos pedidos. "Quando o tribunal solicita a intervenção de uma equipa especializada, por exemplo, para fazer supervisão de convívios, estas equipas estão assoberbadas de solicitações desta natureza e não conseguem dar resposta em tempo útil. Frequentemente há listas de espera para se começar uma intervenção. Não é raro que a decisão judicial esteja dependente da intervenção destas equipas e se a equipa não consegue responder atempadamente, o processo fica estagnado. São casos que podem arrastar-se muito no tempo", admite a psicóloga que trabalha no INML desde 2011.
A advogada Ângela Vieira refere que "mesmo sendo urgentes, os processos levam o seu tempo. Facilmente, um processo pode demorar, à vontade, um ano e os pais não têm consciência do impacto que isto tem nas crianças. Isto são verdadeiros maus tratos, um abuso emocional muito grande, porque a criança fica marcada para toda a vida".
Ricardo Simões, que acompanha muitos casos há vários anos, relata que algumas das crianças hoje "já são adultas, mas ficam marcadas para a vida. Têm uma série de dificuldades de relacionamento" e aponta uma curiosidade "quase sempre vão para Direito ou Psicologia", como se tentassem "compreender aquilo por que passaram. Tente imaginar o que é uma criança que vê o pai e mãe uma hora por semana durante anos e cresce nesta situação", realça o presidente da Associação para a igualdade parental e direitos dos filhos".
Ângela Vieira defende que "é importante encontrar desincentivos à instrumentalização das participações criminais neste contexto da regulação das responsabilidades parentais". Para isso, "devia existir uma maior censura social a este tipo de comportamentos e os tribunais deviam tomar medidas sérias, graves, para o progenitor que usa estas armas em contexto de falsas denúncias". A advogada recorda que, por exemplo, em queixas de abusos sexuais, "a criança é sujeita a perícias exames de ginecologia, que deixa marcas. Portanto, é importante que os tribunais censurem este tipo de comportamentos para evitar que se verifiquem".
No caso de Pedro (vamos chamá-lo assim), a avaliação pelo INML foi pedida depois de um episódio que mudou para sempre a relação que tinha com os dois filhos. "Tive uma discussão mais acesa com a minha filha em que ela me deu um estalo, eu dei-lhe um estalo. A mãe chamou a polícia, suspendeu todas as visitas", relata.
Durante cinco meses, "não tive acesso aos meus filhos. Estive mais de um mês, todos os dias, a chorar. Quando me deitava, chorava. Era quase como uma terapia", lamenta.
Divorciado há oito anos, Pedro foi acusado de violência doméstica e avaliado no INML, onde os filhos também foram ouvidos. Consegue agora, estar com os filhos, algumas horas aos fins-de-semana, mas a relação nunca mais foi a mesma.
"A figura educativa do pai desaparece por inteiro", confessa, "porque não me arrisco agora, a corrigir o meu filho quando se levanta da mesa antes de toda a gente acabar de comer. Não o posso fazer, porque se não, estou a perder pontos e já tenho tão pouquinhos trunfos. Aquilo que posso dizer só me irá afastar das crianças".
Pedro afirma que "os advogados, hoje, percebem que a melhor maneira de evitar visitas de filhos, entre pais e mães, é fazer queixas de violência doméstica/violência sexual. Atendendo à morosidade da justiça, os laços vão-se perdendo".
Quando se reencontrou com os filhos cinco meses depois sem qualquer contacto, as crianças estavam "absolutamente frias, absolutamente alheadas do pai. Isto é verdadeiramente hostil, verdadeiramente destruidor de lares, destruidor de respeito e afectos ".
Este pai assume que fez mal e se fosse hoje, "jamais" responderia à agressão da filha. "Dava logo a outra face. Oh minha filha, descarrega em mim, que eu sou um saco de boxe", afirma. Pedro aguarda a marcação de um exame psiquiátrico, que faz questão de realizar, para que não reste a mínima dúvida do amor que sente pelos filhos. É "uma coisa incrível: ter de provar a terceiros, cientificamente, o tanto que gosto dos meus filhos".
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