"O ouro de hoje são os ecossistemas que nos dão oxigénio, comida e regulam o clima para sobrevivermos"
Governo já recebeu um pedido de recomendação para incluir quatro hectares de pradaria marinha, localizada na Ponta do Adoxe, em Troia, dentro da Rede Natura 2000. A proposta vem da Ocean Alive que, com ajuda de especialista nacionais e internacionais, identifica o ecossistema como uma floresta vital para a vida no fundo do Sado e à superfície.
"O ouro de hoje são os ecossistemas que nos dão oxigénio, comida e regulam o clima para sobrevivermos"
Abordo de um catamarã, turistas e alguns setubalenses atravessam a baía de Setúbal com destino a Troia, deslumbrados com a vista à superfície mas não imaginando que debaixo de água está uma floresta sem a qual a cidade e a península teriam uma paisagem diferente. Para defender essa floresta vital, conhecida como pradaria marinha, a Ocean Alive enviou uma recomendação ao Governo para que quatro hectares da Ponta do Adoxe, em Troia, sejam integrados na Rede 2000, o que pode representar restrições à navegação e a novas obras. Para Raquel Gaspar, cofundadora da Ocean Alive, acima de tudo este é "o momento de haver uma grande mudança de mentalidade, pensando que o ouro de hoje são os sistemas naturais que nos dão oxigénio, comida e regulam o clima para sobrevivermos e é por isso que devemos lutar".
Para testemunhar a história ambiental de Troia e Setúbal, a organização não governamental lançou um convite a cerca de 50 especialistas em ambiente e fundos marinhos da Europa, presentes em Portugal para assistir à Conferência dos Oceanos que teve lugar em Lisboa na semana passada.
De olhos fixos no fundo do Sado, especialistas como Richard Lilly, da Sea Grass, organização que "luta pelo reconhecimento das pradarias marinhas como ecossistemas vitais", viram como o ecossistema cresce, alimenta e aninha peixes, limpa a água e produz oxigénio que chega até aos humanos.
Entre o Estuário do Sado e a costa atlântica de Setúbal, "o trabalho da Ocean Alive começou com a preservação e proteção das pradarias, interligado com a capitania, o Porto de Setúbal e a equipa do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas que trabalha na Reserva Natural do Estuário do Sado". Apenas depois de obter dados concretos sobre todas as pradarias da região foi apresentada ao Governo a recomendação.
O documento, estrategicamente submetido ao Executivo semanas antes da Conferência dos Oceanos, "desafia a passar as recomendações ambientais do papel à prática, para proteger uma das pradarias mais importantes do país na reflorestação marinha com os laços da Rede Natura 2000".
Afinal, o que estas pradarias fazem debaixo de água tem resultados surpreendentes à superfície. "No fundo do Sado elas trabalham como sumidouro natural de dióxido de carbono e retêm detritos dos arrozais ou dos esgotos que chegam ao Sado", conta Raquel Gaspar. Um hectare de pradaria marinha, em relação a um hectare de floresta consegue fazer 30 vezes mais a eliminação de carbono e produz oxigénio para 180 pessoas. O mesmo hectare consegue depurar o esgoto produzido por 200 famílias.
Sobreviveram às dragagens sem danos maiores
Os ganhos ambientais para Setúbal e Troia podiam ser maiores se tudo fosse como era até à década 1970. "Há 40 anos o fundo do estuário era uma pradaria só", conta Cidália, mariscadora e mulher de mariscador. Cresceu a nadar no meio desta floresta subaquática e viu que à medida que se tornava adulta a floresta ia desaparecendo.
Hoje é uma das "guardiãs do Sado" que a Ocean Alive formou para transmitir a mensagem à comunidade piscatória de que "é preciso preservar o fundo do rio para que ele sobreviva e nós também". Com as suas colegas de missão já conseguiu, como diz, "converter algumas pessoas". A missão maior é educar para boas práticas, como "não abandonar lixo no rio depois de pescar ou mariscar, como redes e garrafas de plástico". Essa ação simples e a vigilância são papéis que cabem aos pescadores. Mas, "muita culpa vem da construção dos estaleiros que trouxeram a indústria marítima para Setúbal". Afinal, "há quarenta anos o pensamento sobre proteger o ambiente, do rio á serra, era muito diferente".
Contra lixo e indústria a natureza renovou-se e hoje a pradaria marinha da Ponta do Adoxe "já não está a diminuir, pelo contrário tem-se expandido e renovado, ocupa atualmente uma área equivalente a quatro campos de futebol e tem um valor enorme na reflorestação do estuário", garante a bióloga Raquel Gaspar.
Da espécie zostera marina, a pradaria "tem crescido naturalmente". Prova disso é que em 2009 uma grande tempestade devastou a pradaria e, "na última década, ela renovou-se e cresceu e esta observação é confirmada por um estudo do CCMAR [Centro de Ciências do Mar] que confirma a grande capacidade da pradaria produzir sementes".
Quando em 2018 a Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra decidiu dragar 3,5 milhões de metros cúbicos de areia e lamas no canal de acesso ao Porto de Setúbal, um dos grandes receios das organizações dedicadas à defesa e preservação ambiental era sobre os possíveis danos que poderiam ser causados à pradaria marinha.
Raquel Gaspar esteve na fronte de defesa do Sado contra as dragagens, com um trabalho ativo de divulgação sobre como o processo de dragagem deveria ser feito.
Quase quatro anos depois, a cofundadora da Ocean Alive afirma que "a pradaria está a crescer e não foi identificado um impacte que comprometesse o ecossistema".
Dados confirmados por Miguel Henriques, um dos representantes do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas presentes na observação das pradarias marinhas organizada pela Ocean Alive.
Profissionais do instituto foram convidados a estar presentes "para reunir informação sobre o ecossistema e o seu estado atual e produzir um relatório para entregar ao Governo". Com base nesses dados e nos de outras entidades, "chegar-se-á à conclusão se a esta extensão de pradaria deve, ou não, ser integrada na Rede Natura 2000", explica Miguel Henriques. "Afinal, nem sempre o que está a ser preservado necessita de ficar ao abrigo da Rede Natura 2000. Se o trabalho de sensibilização ambiental estiver bem executado, como está, a mensagem e fica na comunidade".
Certo é que, se os quatro hectares ocupados pela pradaria marinha da Ponta do Adoxe entrarem na Rede Natura 2000, "no Porto de Setúbal haverá adaptações à navegação, até mesmo interdições se assim ficar regulamentado", afirma o capitão do porto de Setúbal, Alcobia Portugal, também presente na iniciativa da Ocean Alive.
Ana Martins Ventura