Tentativas de homicídio sobem 45% em cinco anos, mas consumados descem
Os inquéritos que investigam tentativas de homicídio subiram 45% entre 2018 e o ano passado, segundo dados da Polícia Judiciária. Os números, pedidos pelo PÚBLICO, revelam que em 2018 entraram naquela polícia 279 inquéritos para investigar homicídios na forma tentada, um número que cresceu para os 405 no ano passado.
No mesmo período desceu o número de inquéritos para investigar assassinatos consumados. Dos vários especialistas contactados pelo PÚBLICO, uns olham para estes números com alguma reserva, outros com preocupação.
O aumento dos inquéritos para investigar tentativas de homicídio não deve fazer esquecer que Portugal é dos países mais seguros do mundo. Isso mesmo tem concluído ao longo dos últimos anos o Instituto para a Economia e a Paz, uma organização não-governamental, que publicou em Junho passado a última edição do Global Peace Index. Aí, Portugal aparece em sétimo lugar numa lista de 163 países, apresentando-se como o quarto mais seguro da União Europeia.
Se, entre 2018 e 2019, os inquéritos abertos para investigar tentativas de homicídio se mantiveram relativamente estáveis (279 e 289, respectivamente), em 2020, o primeiro ano da pandemia, registou-se um salto para 343, um aumento de 19% face ao ano anterior. Em 2021, o número voltou a estabilizar (342 inquéritos), mas no ano passado o valor cresce novamente, desta vez em 18%, para os 405.
Relativamente aos assassinatos consumados, a tendência foi diferente. Os números da Judiciária indicam que, em 2018, foram investigados 139 homicídios efectivos, valor que desceu no ano seguinte para 130 e subiu, em 2020, novamente para os 139. O ano de 2021 registou o valor mais baixo dos últimos cinco anos (100), tendo o ano passado o número de inquéritos crescido ligeiramente, para 111.
Os dados da PJ não coincidem com os dos relatórios anuais de segurança interna, iguais aos do Ministério da Justiça. Mas as tendências são coincidentes, embora com diferenças na proporção das descidas e das subidas. Em 2018, foram participados às polícias 110 homicídios consumados, segundo as estatísticas da Justiça, um número que no ano seguinte desceu para 89. Em 2020, as participações cresceram para 93, descendo no ano seguinte para o mínimo dos cinco anos (85). O ano passado voltaram a subir para os 97.
O director nacional adjunto da PJ, Carlos Farinha, atribui a diferença dos dados à dinâmica das investigações. “A Judiciária investigou um conjunto de situações que pareciam configurar homicídios consumados, mas nem em todos os casos se terá confirmado essa suspeita”, afirma.
A PJ ainda não dispõe de dados sobre este ano, o que levou o PÚBLICO a analisar os comunicados divulgados até final de Setembro, que anunciaram detenções relacionadas com 95 casos de homicídio. Destes, 64 diziam respeito a tentativas de assassinato e 31 a crimes consumados. Dos tentados, 48, ou seja, três quartos, diziam respeito a situações ocorridas este ano e 14 no ano passado.
A criminologista Carla Ferreira é a responsável pela Rede de Apoio a Familiares e Amigos de Vítimas de Homicídio da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), que presta apoio psicológico, jurídico e até de ordem prática tanto em casos de homicídios tentados como de consumados em todo o país.
A responsável observa uma utilização mais avulsa da violência, desde a pandemia. “São situações que começam com algo aparentemente inofensivo e que de repente escalam. Passa-se rapidamente do nada para o tudo. Parece que a única forma de resolver o problema é matar aquela pessoa”, afirma Carla Ferreira, que fala de uma criminalidade fútil, associada a actos impulsivos.
Também Carlos Farinha tem a impressão de que se tornou mais fácil partir para a tentativa de homicídio. “As pessoas estão mais impacientes”, nota o director adjunto da PJ. A falta de planeamento talvez possa explicar por que aumentaram os homicídios tentados e não os consumados.
É neste contexto que Carla Ferreira integra a criminalidade urbana, associada a gangues juvenis, que cresceu de forma significativa desde 2020.
O relatório anual de segurança interna relativo a 2022 contabiliza 5895 ocorrências na área da criminalidade grupal (praticadas por três ou mais suspeitos), mais 1257 registos do que em 2020. No mesmo período, a delinquência juvenil (factos qualificados como crimes cometidos por jovens entre os 12 e os 16 anos) subiu quase 62% de 1044 ocorrências registadas para 1687.
Também a violência doméstica parece ter-se agravado com a pandemia. “Desde o confinamento que observamos mais situações de violência doméstica que escalam. Fruto do convívio forçado, agudizaram-se conflitos que já existiam”, nota a criminologista. Carla Ferreira sugere ainda que se estude o impacto de determinadas coberturas noticiosas — que exageram na quantidade e no detalhe dos crimes violentos — na banalização de determinados comportamentos criminosos.
Carlos Fernandes, professor catedrático de Psicologia na Universidade de Aveiro, também admite que a pandemia pode ter tido impacto no crescimento das tentativas de homicídio.
O psicólogo lembra que com os confinamentos os cidadãos tiveram que ficar em casa, reduzindo de forma significativa a liberdade de movimentos. “Quando existe uma diminuição do espaço vital de cada um, dispara a agressividade e a violência. É uma coisa muito automática. É um fenómeno que está identificado e estudado há muito, nomeadamente em cadeias”, afirma Carlos Fernandes, que já fez várias perícias psicológicas de agressores a pedido de tribunais.
O universitário diz que é preciso estudos para comprovar que foi este fenómeno que justificou o aumento das tentativas de homicídio, mas considera que, teoricamente, é uma possibilidade. Carlos Fernandes refere que também será importante estudar factores socioeconómicos, já que durante a pandemia muitos viram diminuir ou até desaparecer as suas fontes de rendimentos.
Rui Abrunhosa Gonçalves, doutorado em Psicologia da Justiça e actual director dos serviços prisionais, considera o aumento das tentativas de homicídio preocupante. “É preciso analisar, nomeadamente perceber se é um fenómeno nacional ou se está concentrado num território”, considera o psicólogo forense, que rejeita alarmismos. “Não podemos esquecer que os homicídios consumados são poucos e que Portugal não é um país violento”, realça.
O director dos serviços prisionais nota que desde 2021 se assistiu a um aumento da violência grupal e da delinquência juvenil, fenómenos mais concentrados na área da Grande Lisboa. Por outro lado, destaca um fenómeno mais transversal associado ao mundo da noite, com crimes cometidos sob efeito do álcool ou drogas. “Não podemos andar à procura de explicações simples para problemas complexos”, defende.
Jorge Quintas, director do mestrado em Criminologia na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, olha com reservas para os números das tentativas de homicídio, notando várias incongruências entre diversas estatísticas. “Há mais ambiguidade na classificação”, adverte, lembrando que, por vezes, a fronteira entre a ofensa à integridade física grave e a tentativa de homicídio é ténue (a intenção de matar não é fácil de avaliar ou provar).
Também Fernando Almeida, psiquiatra forense e co-autor de vários estudos sobre homicídios, alerta para esta dificuldade. Defende, por isso, que é preciso saber se a identificação destes crimes foi efectuada pelos mesmos agentes e com igual metodologia.
Um responsável da Judiciária admitiu ao PÚBLICO que, apesar dos homicídios, tentados ou consumados, serem da competência exclusiva da PJ, nem sempre é esta polícia a investigar, já que o Ministério Público pode delegar a investigação noutro órgão de polícia criminal.
Na maior parte das vezes, a Judiciária fica dependente da forma como as outras polícias, PSP e GNR, registam a ocorrência e comunicam ou não o caso. Numa situação de ofensas à integridade física grave, há mais margem para dúvidas, havendo também tentativas de homicídio que são inicialmente registadas como violência doméstica. “Por vezes há casos que nos chegam três, quatro, cinco meses após a ocorrência, porque o Ministério Público decidiu enviar para a PJ, por exemplo, na sequência da análise dos registos clínicos. Mas haverá casos que nunca nos chegam”, admitiu um inspector-chefe de uma brigada de homicídios.
O professor da Universidade do Porto lembra que a taxa de homicídio por 100 mil habitantes é habitualmente baixa em Portugal, sendo três vezes inferior à registada em alguns países europeus e muito mais baixa do que a existente nos Estados Unidos.
Os últimos dados divulgados pelo Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime indicam que, em 2021, a taxa de homicídio por 100 mil habitantes em Portugal era de 0,8, um valor sete vezes inferior à taxa registada em termos mundiais: 5,79 no mesmo ano. Fica acima dos 0,61 da Espanha e dos 0,51 da Itália, mas abaixo dos 1,14 da França, dos 1,96 da Estónia e dos 3,04 da Letónia (todos de 2021). E muito longe dos 22,38 registados pelo Brasil em 2020 (dado mais recente) ou dos 6,81 contabilizados nos Estados Unidos no ano seguinte.
Fernando Almeida faz questão de sublinhar algumas medidas para prevenir o homicídio. “As cautelas expostas não invalidam, todavia, que políticas de ainda maior restrição de venda e posse de armas de fogo ou do consumo de álcool e de outras substâncias, assim como políticas de prevenção da doença mental, entre outras, como as de apoio aos imigrantes que chegam a Portugal (muitos dos quais homens jovens), sejam relevantes neste domínio da prevenção do homicídio voluntário consumado ou na forma tentada”, defende o psiquiatra.