Delinquência juvenil: pós-pandemia deixou jovens mais violentos e insensíveis ao outro
Os registos de casos de delinquência juvenil e de criminalidade grupal nem apontam para um aumento exponencial de casos, nos últimos anos, mas quem lida diariamente com estes fenómenos alerta para que, nos pós-pandemia, a severidade da violência destes jovens aumentou, há mais recurso a armas e o respeito pela vida do outro diminuiu. Pede-se uma intervenção mais precoce e articulada.
Os dados constam do 2.º relatório intercalar da Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e da Criminalidade Violenta (CAIDJCV), coordenada por Isabel Oneto, e são o resultado de mais de duas dezenas de audições a cerca de 160 participantes de diferentes áreas, como a segurança, a escola ou a saúde, realizadas entre Novembro de 2022 e Julho deste ano.
As conclusões, a que o PÚBLICO teve acesso, não são animadoras. De forma “generalizada”, refere-se no documento, foi “sublinhada a existência de sinais de agravamento da realidade em termos pós-pandémicos, com maior agitação, menor tolerância, maiores níveis de agressividade, nomeadamente por parte de crianças/jovens no contexto escolar e a necessidade de promoção de competências sociais e emocionais e de programas de educação parental/parentalidade positiva”. Em alguns sectores, acrescenta-se ainda, encontra-se “sentimentos de impunidade por parte dos jovens que cometem actos de delinquência”.
Este retrato é particularmente sublinhado pelos intervenientes das áreas de Segurança Interna e Justiça e também da Educação. A mensagem transmitida pelos primeiros, e exposta neste relatório, é clara: “Nestas audições sobressaíram indicações de um agravamento da severidade da violência, decorrente de um aumento da apreensão de armas brancas; incremento da violência em caso de conflito (‘por qualquer coisa há logo uma facada’); diversas situações de violência sexual em que os abusadores são menores; elevada frequência de roubos com recurso a arma de fogo e praticados de forma mais precoce (16-17 anos); aumento de crimes graves contra as pessoas onde existe ‘violência gratuita’ (‘o objectivo não é obter dinheiro, mas sim a violência gratuita’) e maior intervenção dos jovens (‘criminalidade violenta sempre houve, o que é novo é o número de jovens a praticar’); criminalidade grupal com grande difusão nas redes sociais (‘combinam nas redes sociais onde vão assaltar’); ‘desrespeito pelo valor da vida’ — de forma global denotam o surgimento de ocorrências com contornos mais violentos, praticadas de forma precoce e com consequências mais gravosas para as vítimas”, lê-se.
“Foi igualmente assinalado um aumento da violência de geração para geração (situações em que o mesmo agente está a investigar o filho de alguém que já foi investigado/detido no passado)”, acrescenta-se.
Entre os intervenientes deste sector, destacou-se também o facto de existir “uma assimetria no país em termos deste tipo de criminalidade”, com as áreas de Lisboa, Setúbal e Algarve em destaque pela negativa. E de haver um “escalar de violência”, ao nível escolar, “entre o 5.º e o 6.º anos” do ensino básico. Foi também entre os intervenientes da área da segurança que se fez notar o que classificam como “um sentimento de impunidade por parte dos jovens” que praticam actos de violência, que se prenderá particularmente com “a percepção de ausência de consequências ao nível das ocorrências participadas ao Tribunal de Família e Menores”.
Também os intervenientes da Educação apontam no mesmo sentido, manifestando preocupação por as crianças e jovens recorrerem a um “uso excessivo e incorrecto das redes sociais”, que se agravou, no que se refere ao uso do telemóvel, no pós-pandemia.
A excessiva “exposição aos ecrãs” é apontada como a causa de uma menor capacidade de interacção com os jovens, que andam menos pacientes e mais agressivos. “O contexto pós-pandemia é associado a um aumento das agressões verbais e físicas, quer por parte de alunos, quer por parte de pais, assim como a um aumento de comportamentos sexuais abusivos, a um acréscimo de consumos e a um aumento de problemáticas de saúde mental, nomeadamente automutilações”, explica-se no relatório.
Apesar destes sinais preocupantes, o número de ocorrências associadas à delinquência juvenil e à criminalidade grupal, registados pelas forças de segurança, apontam para um crescimento destas realidades, mas não para os níveis mais preocupantes de há alguns anos.
Os dados compilados no relatório indicam que entre 2008 e 2022, o ano com maior ocorrência de delinquência juvenil foi 2010, com 3880 registos. Desde 2016, os registos têm-se mantido abaixo dos 2000, e, apesar de o ano da pandemia, 2020, aparecer (como seria expectável), com o número mais baixo da série — 1044 registos —, havendo, depois, um aumento das ocorrências, a verdade é que os números de 2022 (1687) estão bastante próximos dos de 2019 (1568), o ano pré-pandemia.
Comportamento similar, embora um pouco mais acentuado, tem a criminalidade grupal. Nesta área, o maior número de ocorrências (9522) aconteceu precisamente em 2008, mantendo-se abaixo das 6000 desde 2016. Também aqui os dados de 2022 (5895), tendo subido depois da pandemia, não estão muito distantes dos números de 2019 (5215), embora haja uma diferença maior do que nos casos de delinquência juvenil.
Estas evoluções acompanharam as tendências da criminalidade geral e da criminalidade violenta grave, salienta-se no relatório, com excepção do ano de 2021, em que houve uma diminuição da criminalidade violenta grave, enquanto a criminalidade geral, a delinquência juvenil e a criminalidade grupal subiram.
Os autores do relatório salientam, ainda assim, que as variações da delinquência juvenil e da criminalidade grupal, tendo seguido, no geral, a tendência da restante criminalidade, foram “mais acentuadas”. “As variações ao nível da delinquência juvenil parecem afectadas especialmente pelos anos de pandemia por covid-19, o que provavelmente estará associado ao impacto das medidas adoptadas relativas ao contexto escolar (fecho durante os períodos mais críticos da pandemia e posterior abertura dos estabelecimentos de ensino) e eventualmente à actividade dos elementos policiais do Programa Escola Segura”, conclui-se.
Já no caso da criminalidade grupal, os autores do relatório sublinham que, “embora os impactos do contexto pandémico também se evidenciem na variação nos seus registos, fica mais evidente que se registou, ainda antes da pandemia, um aumento de maior magnitude nesta dimensão em 2019”.
Tudo medido, a conclusão é que já havia sinais de alerta há algum tempo, refere-se no relatório: “Os efeitos a nível psicológico e comportamental verificados no período pós-pandémico, sobretudo os observados nas camadas mais jovens da população, não serão alheios a estas variações mais acentuadas nos agregados relativos à delinquência juvenil e criminalidade grupal, não obstante, já em 2019, os aumentos verificados nestes dois indicadores serem de magnitude superior ao observado para a criminalidade geral e para a criminalidade violenta grave, o que pode indiciar que, mesmo antes da pandemia, poderiam já existir sinais da necessidade de uma atenção redobrada a este nível.”