Profissão: cuidador. Há 200 mil em Portugal, com muitos deveres e poucos direitos
Isabel Lisboa percorre todos os dias os mais de 20 km que separaram a sua casa (na aldeia de Carriço, Bidoeira de Cima, no concelho de Leiria) do Centro de Dia do Marquês, no vizinho concelho de Pombal, vocacionado para pessoas com Alzheimer e outras demências. É lá que, durante o dia, deixa o marido, Diamantino, 67 anos, há mais de uma década num processo acentuado de demência, à conta de uma atrofia frontal-temporal. É ela a cuidadora de todas as horas, fiel à promessa que lhe fez, há mais de 40 anos, no altar: na saúde e na doença. Mas os últimos anos foram muito mais duros do que alguma vez imaginou.
Depois do (difícil) diagnóstico, Isabel teve que deixar o emprego no Centro de ATL onde tomava conta de crianças. Porque, na verdade, além de ter que "tomar conta" do marido, entrou numa depressão severa, da qual nunca saiu completamente. "Mas aprendi a aceitar. E isso ajudou-me", conta ao DN, numa sala contígua àquela onde o marido passa os dias em atividades, juntamente com outras pessoas com demência. "Ao princípio revoltei-me até com isto. Mas hoje reconheço que o trouxe na hora certa, e que aqui me judaram muito".
Ao longo destes 10 anos, apenas uma vez recorreu ao apoio previsto na lei, deixando o marido "durante um mês num Lar especializado para demências, o Bento XVI, em Fátima". Estava exausta, e acedeu ao conselho das três filhas. De resto, é ela que está sempre lá: para o deitar, levantar, vestir, ajudar nas refeições, orientar a entrar e sair do carro, para tudo, afinal.
Há cerca de um ano, conseguiu finalmente o estatuto de cuidador informal, ao cabo de um processo burocrático que prefere não lembrar. "É uma ajuda, financeiramente, mas sobretudo o apoio. Senti que me deu alguma proteção social, apesar de ter ainda muitas falhas", sustenta Isabel Lisboa, que ainda há pouco tempo teve ocasião de dar conta das lacunas à ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, numa visita que vez ao Centro de Dia. Porque há incongruências na lei que gostaria de ver limadas, por forma a "não ser penalizada na reforma, e a poder ter acesso ao cartão multiusos" sem para isso ter de sujeitar novamente o marido a uma junta médica. Diamantino já não fala, mas segue-a com o olhar.
Já ultrapassou o tempo de vida que todos os prognósticos lhe apontavam. "Eu acho que isto acontece porque o meu marido está rodeado de pessoas que lhe dão muito amor, muito carinho: eu, as filhas, os genros e os netos", afirma Isabel, 62 anos, os últimos 10 a viver em função do bem-estar de Diamantino.
Casos como de Isabel Lisboa hão de ser discutidos em Coimbra, no próximo dia 9, no encontro de cuidadores informais organizado pela Escola Superior de Enfermagem, este ano dedicado especificamente ao tema "capacitar para cuidar de pessoas com demência". Há muito que o tema está presente nas salas de aula e nos corredores da escola, desde que a coordenadora Rosa Melo começou a interessar-se por ele, à conta da experiência pessoal.
Cuidou da mãe durante 13 anos, conviveu de perto com a dificuldade imensa de compreender a demência e seus comportamentos associados. "Como não compreendemos as pessoas, elas têm comportamentos defensivos, muitas vezes confundidos com agressividade. Da mesma forma, também não é bom enveredarmos pelo paternalismo", explica a investigadora, que depois do doutoramento, cuja tese reflete as competências relacionais, descobriu todo o universo da metodologia de cuidado e humanitude. Desde então "tentei debruçar-me e perceber como é que podíamos agir, enquanto cuidadores formais e informais, e perceber como posso ajudar e capacitar para ajudar", afirma ao DN.
A metodologia de que fala "permite a sistematização e operacionalização da humanização do cuidado. Saber como e o que devo fazer. Porque ouvimos falar bastante da humanização dos cuidados mas é muito difícil de implementar", sublinha Rosa Melo, que inicialmente fez formação em França (onde os autores desenvolvem esta metologia de cuidado desde os anos 70) e depois enveredou pela área no pós-doutoramento, em 2017.
Na Escola de Enfermagem, em Coimbra, criou um projeto de extensão à comunidade, precisamente para "formar para cuidar em humanitude": várias instituições firmaram um protocolo com a ESEC Instituições para acederem a essa formação.
Rosa Melo admite que nos últimos o papel do cuidador informal fez algum caminho, sobretudo à conta de "legislação que tem saído, muito vocacionada para a pessoa idosa. Há diplomas que vieram ajudar, formalizar. E o estatuto foi um grande passo". Mas faltam outros. É por isso que considera tão importante envolver a comunidade, através do projeto "Cuidadores infrormais - capacitar para cuidar de pessoas com demência". E acredita que a chave será "replicar o projeto noutros sítios do país".
Neste Dia do Cuidador, não há ainda muito para comemorar. Mas antes para assinalar. Liliana Gonçalves, presidente da Associação Nacional de Cuidadores Informais (ANCI), acredita no poder da sociedade para pressionar o Governo e lutar por melhores condições para todos, associados ou não.
Envolveu-se no movimento que nasceu nas redes sociais e se manifestou na rua, até à formação oficial da associação, em 2018, antes mesmo da publicação do estatuto do cuidador informal, em Diário da República. Está ligada à causa desde muito jovem, quando era cuidadora da avó.
"Conseguimos ver o estatuto publicado, mas a verdade é que ele fica aquém do que era expectável", afirma ao DN, considerando que "ainda falta quase tudo". "Temos direitos previstos que depois na prática não existem. E com isso passa a falsa ideia, junto da sociedade civil, que existe um conjunto de apoios. Mas na prática não é bem assim. E a sobrecarga do cuidador continua.
Muitas pessoas - sobretudo mulheres - têm que deixar de trabalhar para cuidar. E nessa altura há sempre uma perda de remuneração e de estatuto profissional, que muitas vezes não é recuperável. Além das perdas financeiras, há uma sobrecarga física e emocional muito grande". A presidente da Associação dos Cuidadores considera que não é apenas uma questão de aplicabilidade da legislação, mas também porque "ainda está muito enraizado que cabe à família cuidar, como se fosse uma coisa natural. O que acontece é que há muitas famílias que acabam por cuidar porque não conseguem pagar respostas sociais".
Este sábado, a ANCi organizou mais um encontro nacional de cuidadores, desta vez em Setúbal. Por ora, a associação está sediada no Barreiro. Tem cerca de 400 associados. As estatísticas europeias apontam para que 8% da população seja composta por cuidadores informais. Por cá, um estudo do Observatório da Saúde aponta para cerca de um milhão, embora apenas cerca de 200 mil o faça a tempo inteiro.
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