Abusos sexuais: “Era importante haver um serviço de intervenção ao longo da vida” para vítimas e agressores
“É importante que as pessoas percebam a necessidade de não colocar debaixo do tapete o problema dos agressores sexuais.” Ao longo de uma conversa que há um ano talvez nem fosse possível, tão enraizado que estava o tabu em torno dos abusos sexuais na Igreja, o psicólogo Ricardo Barroso desfaz preconceitos (“aquela ideia de que o agressor sexual é aquele predador que está ali atrás na esquina, pronto a atacar, é raríssima”) para fundamentar a necessidade de criar um serviço de intervenção ao longo da vida para ajudar os agressores sexuais.
O que mudou, afinal, em 2023 para tornar possível esta conversa? Logo no início do ano, uma comissão independente, criada por iniciativa da Igreja, estimou que pelo menos 4815 pessoas foram, enquanto crianças, alvo de abusos no contexto eclesiástico nos últimos 70 anos. Na sequência desta dura revelação, a Igreja criou o grupo Vita, que identificou 64 pessoas que terão passado pelo mesmo tipo de abuso nas últimas décadas.
Para o psicólogo, a criação deste grupo, do qual faz parte, abriu “um caminho especializado” para receber e encaminhar denúncias de vítimas e para as acompanhar ao longo do tempo. E este deve ser um caminho sem volta, segundo o especialista. A “complexidade, a perversidade” dos casos e das histórias que ouviu fazem-no defender a criação de um serviço de intervenção, à escala nacional e indo muito além da Igreja, para acompanhar as vítimas, mas também os agressores.
Nesta conversa com o PÚBLICO, Ricardo Barroso, que tem vasta experiência no acompanhamento de agressores sexuais, assegura ainda que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) está empenhada em tratar o problema dos abusos e em introduzir mudanças. Mas reconhece que em algumas dioceses esse processo é mais lento. E defende que os sacerdotes devem ter, desde o seminário, aulas de educação sexual.
Há um ano, esta discussão não seria possível, também porque não tínhamos dados em cima da mesa, como hoje, embora o psicólogo reconheça serem ainda escassos, como se representassem apenas a ponta de uma pirâmide. “O acesso que temos é àquele cume, mas depois há uma outra parte muito maior à qual vamos ter acesso só com muita paciência, depois de reafirmarmos às pessoas que podem confiar em nós.”
Foi assim ao longo dos últimos seis meses, depois da criação do grupo Vita, também por iniciativa da CEP. “O trabalho que a comissão independente fez antes foi um levantamento, um estudo, que revelou um conjunto de problemas. O grupo Vita vem a seguir numa tentativa de resolver esses problemas”, lembra o psicólogo, que é também professor associado do Departamento de Psicologia da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
Para chegar às vítimas — e também aos agressores — num caminho sem burocracias desnecessárias, o grupo Vita constituiu uma bolsa de profissionais, aos quais dá formação nesta área, dada a escassez de profissionais especializados neste assunto. Conta com 67 psicólogos e cinco psiquiatras e cobre quase todo o território, mas nas regiões da Madeira, Portalegre, Guarda e Évora tem havido dificuldade em recrutar profissionais.
Neste momento, o grupo Vita chega sobretudo às vítimas. Há 20 que estão a receber apoio psicológico e psiquiátrico e seis esperam esse encaminhamento, de acordo com o balanço de seis meses de actividade apresentado há dias por este grupo.
Mas o objectivo é chegar também aos agressores, sobretudo numa “lógica de prevenção” do abuso e da reincidência, o que nem sempre é bem compreendido. “É evidente que é preciso responsabilizá-los, mas é importante encontrar uma solução alternativa ao tipo de comportamento”, explica.
Nestes seis meses de actividade, houve um agressor que aceitou ajuda psicológica do Vita. O caso chegou-lhes por via da congregação a que pertencia. “Depois de todo o processo canónico, inclusive judicial, tratado, foi sugerida a intervenção e essa pessoa aceitou”, resume Ricardo Barroso.
É um trabalho que visa a prevenção da reincidência, para o qual, faz notar, faltam respostas. “Estamos a falar de um problema sexual”, nota o psicólogo, para lembrar que, “tipicamente, o crime sexual é um crime de preparação, de planeamento”. “Pode haver uma precipitação aqui ou acolá, mas tipicamente é planeado”, contextualiza.
E há “uma enorme probabilidade” de que muitos destes interesses sexuais se mantenham ao longo do tempo. “Em determinados momentos eles podem ser activados”, observa o psicólogo, reforçando a necessidade de haver esse acompanhamento.
“Queremos que alguém que esteja num seminário, numa diocese ou num instituto religioso, possa pedir ajuda, se em determinado momento tiver alguma ideia do ponto de vista da sexualidade desviante, algumas intenções de abuso. A ideia é que seja possível colocarmos essa pessoa em contacto com o psicólogo ou com o psiquiatra”, explica. “Há um ano não tinham esta resposta.”
É um trabalho que requer tempo, que não vai lá apenas pelas práticas espirituais, religiosas, destaca. “Em termos de intervenção, é importante a pessoa assumir a responsabilidade pelo seu próprio comportamento. Encorajamos muito esta reflexão sobre o impacto que teve nas vítimas. Tentamos também que fique consciente de que essa intervenção vai ajudar a prevenir comportamentos, já que vai desenvolvendo um conjunto de estratégias para evitar a repetição desse comportamento abusivo ao longo do tempo”, explica o psicólogo.
“Era importante haver um serviço de intervenção especializada ao longo da vida”, defende. “Não estou a dizer que façam terapia a vida toda, mas podem fazer terapia durante meses, anos, ficando depois com uma porta aberta no sítio A, B ou C, à qual podem recorrer em caso de necessidade, mesmo que seja dez, quinze anos depois”, refere.
Para Ricardo Barroso, o Vita está a criar um modelo de funcionamento que pode ser reproduzido noutros contextos. “É um trabalho que deve ser transversal na sociedade”, frisa.
No contexto da Igreja, a esmagadora maioria (90%) dos agressores sexuais denunciados pelas vítimas ouvidas pelo grupo Vita são padres, tendo os abusos ocorrido em locais como os confessionários, as sacristias, a casa paroquial ou mesmo o gabinete do sacerdote.
Ricardo Barroso sublinha não haver uma associação entre celibato e abuso sexual. A maior prevalência de abusos é em contexto familiar, onde não existe celibato, lembra.
E, apesar de haver mulheres entre os abusadores, as estatísticas demonstram que são tipicamente homens. “Ao longo das décadas, os homens — neste contexto da Igreja, mas também em geral — estão muito associados ao poder. Vão tendo mais oportunidades pelo seu exercício profissional, pelo seu exercício pela força, pelos contextos, até pelas relações de poder. No meio de todas estas circunstâncias, alguns aproveitam-se dessa vulnerabilidade”, enquadra.
Não ajuda que, no contexto da Igreja, a sexualidade seja vivida “com uma enorme culpa, com uma enorme repulsa, muitas vezes associada ao pecado”. “A forma como a sexualidade é pensada é negativa. De alguma forma como um problema. Isto tem de ser trabalhado, tem de ser resolvido.” Por isso, defende que os sacerdotes deveriam ter educação sexual desde o seminário.
“Nos Estados Unidos e no Canadá, onde estes assuntos foram mais trabalhados, isto já é discutido no seminário. E, com o tempo, as pessoas vão perceber que isto não é um drama, que não é uma complicação assim tão grande, que é um assunto como outro qualquer, que evidentemente tem as suas reservas, mas que pode ser abordado e conversado de uma forma normal”, diz. Em Portugal, acredita que a Igreja poderá estar aberta a fazê-lo, mas reconhece que será certamente um processo lento.
Apesar de este acompanhamento do Vita, também cabe ao grupo o encaminhamento dos casos, quer para as estruturas da Igreja, quer para as criminais: nos últimos seis meses, 45 casos de abuso foram sinalizados às estruturas eclesiásticas e 16 foram enviados para a Procuradoria-Geral da República (PGR) e para a Polícia Judiciária (PJ). A PGR já informou que 15 das 16 denúncias deram origem a outras tantas investigações, sendo que oito foram entretanto arquivadas, na esmagadora maioria dos casos por prescrição.
No balanço global das denúncias remetidas pelas diferentes instâncias relacionadas com abusos sexuais na Igreja, a PGR adiantou que arquivou 31 inquéritos e que 14 continuam sob investigação.
Ricardo Barroso reforça a autonomia e independência do grupo, apesar de este ter sido criado por iniciativa da CEP. E isso tem sido reconhecido pelas vítimas, acredita, o que motivou algumas a agora falar. Em média, demoraram 42 anos para o fazer. Muitas, diz, apenas queriam contar a sua história, numa tentativa de evitar que situações semelhantes aconteçam a outros.
“Foi importante passar essa noção de independência às pessoas, de que não estão a fazer essa denúncia à Igreja directamente”, sublinha o psicólogo.
Ricardo Barroso elogia a disponibilidade da CEP em acolher as propostas do grupo, mas reconhece que há dioceses em que os processos demoram a ser concretizados. “Creio que todas as pessoas estão interessadas em mudar a perspectiva, em fazer coisas diferentes para que os problemas não voltem a acontecer. O que me parece é que depois há algumas dioceses que são mais rápidas e outras menos rápidas na implementação dos processos”, diz.
Sobre as indemnizações, e sobre o facto de apenas quatro vítimas as terem, por agora, requerido à Igreja, o psicólogo faz notar que, para muitas, é suficiente falar do assunto ou receber um pedido de desculpas. Mas admite que quem as pediu as possa receber, independentemente de o crime já ter prescrito.
A Igreja ainda não revelou como o fará. Na sessão de apresentação dos resultados do Vita, D. José Ornelas, que preside à CEP, admitiu ser um processo complexo. “Não temos falado de indemnização porque grande parte destes casos não têm condições jurídicas [alguns já prescreveram e noutros o alegado abusador já morreu]. Mas são um processo de ajuda e reparação às vítimas. Não há uma tabela de preços para isto. A reparação depende do dano feito, do tempo, e é só para pessoas concretas. É através deste Grupo Vita e das comissões diocesanas que podemos ir ao encontro dessas pessoas. Um valor em concreto não tem sentido nestes casos”, sustentou.
O desafio do Vita é agora chegar a mais pessoas. Para tal, esperam que os municípios os ajudem a levar a informação até aos locais onde as pessoas têm mais dificuldade em aceder ao site ou mesmo em contactar o grupo por telefone.
O grupo foi pensado para ser um projecto a três anos. “Isto requer tempo. Mas estou convencido, até pelas experiências que vamos tendo, que será um caminho positivo nos próximos anos”, diz o psicólogo. “Não sabemos se depois irá haver continuidade”, ressalva. Seja como for, iniciado o caminho de desocultação dos abusos sexuais, dificilmente alguém se atreverá a repetir que esta realidade não existe.