Advogados estagiários sem receber? Lei das Ordens Profissionais pode vir a alterar essa realidade
10 de fevereiro, 2023
Estagiários não remunerados estão de "mãos e pés atados" com elevados gastos na Ordem dos Advogados. Mas a realidade pode vir a mudar com a LAP, já que Marcelo não a incluiu no pedido de fiscalização.
Beatriz e Carolina (nomes fictícios) são duas advogadas estagiárias que não auferem qualquer tipo de rendimento e que pagam centenas de euros à Ordem dos Advogados (OA). Como elas, existem centenas de outros casos no país. Apesar de a OA não querer — pelo menos sem financiamento do Estado –, o projeto de lei relativo às Ordens Profissionais pretende impôr os estágios pagos obrigatórios. Marcelo Rebelo de Sousa ignorou esta questão e não a levou ao Tribunal Constitucional no pedido de fiscalização preventiva que entregou no passado dia 1 de fevereiro. O que tudo indica que essa realidade do estágios pode vir a mudar ainda este ano.
A OA só em receitas de estágios com o pagamento da taxa de inscrição, estima receber em 2023 mais de dois milhões de euros (2.153.961 euros). Dados de 2021 apontam que em Portugal existem 3.951 advogados estagiários inscritos na OA, segundo a Direção-Geral da Política de Justiça do Ministério da Justiça, e nem todos com boas condições laborais, a par com elevados gastos para Ordem, desde inscrição, provas escritas e orais, seguros e togas. A única contribuição que estão isentos de pagar, enquanto realizam o estágio, é a para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores.Um estagiário tem de pagar, só no ato da inscrição, 700 euros. A que acrescem mais 300 euros a pagar até cinco dias antes do termo da primeira fase do estágio e ainda mais 500 euros, a pagar até 30 dias antes da data designada para a realização da prova escrita e da de agregação (que dita o final do estágio). Ou seja: do início ao fim do estágio, no espaço de ano e meio, um jovem licenciado tem de pagar dois mil euros. Além da inscrição, o estagiário ainda tem de pagar 15 euros por mês, de quotas à OA.
Exemplo disso é Beatriz que, sem receber ordenado, já gastou com o estágio 800 euros – entre inscrição e seguros – e tem uma despesa média mensal de 40 euros com deslocações, fora outros gastos.
De mãos e pés atados, Beatriz teve de arranjar uma solução: um part-time. “O escritório onde me encontro a estagiar não me paga qualquer tipo de montante de ajuda, razão pela qual sou obrigada a ter um part-time de fim de semana para poder pagar os custos que tive/tenho com a Ordem e ajudar nas despesas em casa”, referiu à Advocatus.
O segundo contacto que a Advocatus fez, a Carolina, explicou que os pais são a sua ajuda financeira porque os gastos no estágio são “incomportáveis”. Para além dos cerca de 800 euros acima referidos e do gasto com os livros, a estagiária, que se encontra na segunda fase, já voltou a pagar à OA mais 300 euros. Fora isto, acresce o valor da toga (195 euros), que é obrigatória. “Em junho de 2023, 30 dias antes de realizar o exame escrito, terei a pagar um novo emolumento no valor de 500 euros”, acrescentou.
Carolina utiliza para trabalhar no escritório o seu computador pessoal, sendo que apenas lhe deram um ecrã e material de escritório. “Faço o máximo para otimizar os custos em termos de deslocações, recorrendo a boleias ou, então, simplesmente indo a pé. O local onde estou a realizar o estágio não é provido de transportes públicos e o custo para uma avença mensal de estacionamento ronda os 180 euros, o que é simplesmente incomportável”, descreveu.
Mas o que levou estas duas estagiárias a aceitar um estágio não remunerado? A resposta é falta de oportunidades, mas não só. “Como só consegui concluir a licenciatura uma semana antes de terminar o prazo para inscrição na ordem fui obrigada a aceitar a única pessoa que respondeu aos e-mails e que me aceitou no seu escritório”, referiu Beatriz.
Já Carolina vê o “copo meio cheio” e defende que, apesar de ser não remunerado, o ambiente do escritório e as pessoas com quem trabalha são “muito agradáveis” e sente que aprende imenso, “diria até mais do que colegas com estágios remunerados que acabam por ser tratados como trabalhadores do escritório, e pouco como estagiários”.
“O facto de serem apologista de um regime misto de teletrabalho também foi muito aliciante. De resto, há uma série de pressões com as quais não tenho de lidar, ao contrário dos meus colegas com os estágios remunerados, nomeadamente a necessidade de adequar o meu horário tendo em conta o meu estudo e a realização dos relatórios a entregar em abril”, garantiu.
Um dos pontos que este projeto de lei relativo às ordens profissionais altera é a introdução dos estágios profissionais remunerados. Ponto esse que Marcelo Rebelo de Sousa ignorou ao não a incluir na fiscalização preventiva ao Tribunal Constitucional.
O Presidente da República enviou esse pedido de fiscalização preventiva para o TC no dia 1 de fevereiro. Uma provável violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da autorregulação e da democraticidade das associações profissionais – todos previstos na Constituição da República Portuguesa – foram os argumentos dados por Marcelo Rebelo de Sousa para justificar o pedido.
A bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, em entrevista à Advocatus, sublinhou que concorda e percebe a obrigatoriedade de pagamento dos estágios, mas não tem a “certeza absoluta que a esmagadora maioria dos profissionais liberais possa pagar um estagiário”.
“A não ser que o Estado crie meios de apoios, o que vai acontecer é que vão dificultar ainda mais a vida aos estagiários, porque não vão ter estágios. Não vão conseguir ter um patrono que lhes pague o vencimento todos os meses. Mesmo que queira dar apenas um ordenado mínimo nacional, é impossível”, referiu.
Carolina considera que a obrigatoriedade do pagamento de estágios pode ser um “pau de dois bicos”. “Prevejo que muitos estagiários vão acabar por ter dificuldades em encontrar um patrono que os aceite, pelo simples facto de isso implicar um custo acrescido, deixamos aqui de parte as grandes sociedades, claro. E é uma responsabilidade extra para o próprio advogado que acompanha o estagiário, ou pelo menos é expectável que seja“, referiu.
A estagiária deu como exemplo na Ordem dos Psicólogos em que licenciados e mestres em psicologia chegam a andar meses, muitas vezes até mais do que um ano, à procura de um psicólogo que os aceite orientar, “pelo simples facto de se tratar de um custo acrescido e de uma responsabilidade extra”.
Carolina levantou ainda uma outra questão: a remuneração teria um valor mínimo? “Vamos ser sinceros, se estivermos a falar numa renumeração de 150/200 euros não estamos propriamente a resolver problema nenhum, porque os custos do estágio são muito superiores. Se estivermos a falar em impôr um valor mínimo entre 700 e 800 euros, vejo desde logo muitos escritórios a fecharem as portas aos estagiários ou, no mínimo, a reduzirem drasticamente o número de estagiários que estão dispostos a aceitar”, referiu
Ainda assim, Beatriz, outra estagiária, considera que é essencial que os estágios sejam obrigatoriamente remunerados, “pelo menos através de uma bolsa dada pela própria Ordem, para que pessoas como eu que não podem dar-se ao luxo de não auferir qualquer tipo de remuneração não tenham que, além do estágio e tudo o que ele acarreta e das aulas da ordem, procurar um part-time para fazer face às suas despesas; o que, tudo somado, é ainda um fardo na nossa saúde mental”.
José Luís Moreira da Silva, sócio da SRS Legal, referiu que o decreto da Assembleia da República que aprovou alterações à Lei das Associações Públicas Profissionais deixou em aberto esta questão, que ainda necessita de ser regulada para cada uma das Ordens, o que implicará revisão dos respetivos estatutos
Exemplo disso, foi apenas fixada a regra geral dos 12 meses e dos estágios remunerados. “Mas deixou-se a cada Ordem justificar exceções. Tem de se seguir um processo legislativo de revisão de cada um dos Estatutos das Ordens a prever em concreto o regime. Ou seja, falta ainda regulamentar o regime para cada Ordem. O que significa que o assunto está longe de estar fechado”, explicou o advogado.
A bastonária da Ordem dos Advogados, em comunicado do Conselho Geral, defendeu que “nos termos da individualidade de cada Ordem, existem questões que se colocam de forma mais incisiva a umas que a outras, já que se prendem com a identidade do exercício da própria profissão, como é o caso da multidisciplinaridade e da incumbência da remuneração dos candidatos ao exercício da profissão”.
Para além dos estágios pagos, o projeto de lei relativo às ordens profissionais altera questões como as condições de acesso a algumas profissões (advogado, contabilista ou médico), cria uma entidade externa para fiscalizar os profissionais ou cria a possibilidade de existirem sociedades multidisciplinares. Que, na prática, significa que, por exemplo, advogados e outros profissionais, caso de consultoras, vão poder colaborar. Esta é uma prática que já se encontra regulada em vários países da Europa ocidental.
Segundo dados do Conselho Nacional das Ordens Profissionais, existem atualmente em Portugal 20 ordens profissionais. Estas ordens regulam a atividade de mais de 430 mil profissionais. Este decreto foi aprovado em votação final global com votos favoráveis de PS, Iniciativa Liberal e PAN e votos contra de PSD, Chega e PCP e abstenções de BE e Livre.
Para além dos estágios pagos, fora da apreciação constitucional enviada por Marcelo Rebelo de Sousa ficou ainda uma outra questão, a das sociedades multidisciplinares.
O Chefe de Estado enviou o diploma cinco dias depois de o ter recebido do Parlamento. O prazo de pedido de fiscalização preventiva de uma lei é de oito dias corridos. Agora, o TC tem até 27 de fevereiro para se pronunciar sobre este pedido que tem de ser sempre feito antes mesmo de os diplomas serem publicados e entrarem em vigor.