Governo revoga quase integralmente legislação do tempo da pandemia
O Governo prepara-se para revogar boa parte do quadro legal criado para responder à pandemia de covid-19. Em causa estão 51 diplomas considerados agora como desnecessários face ao evoluir da situação pandémica. Mas a revogação não abrange medidas ainda em vigor, como a obrigatoriedade de uso de máscara em estabelecimentos de saúde e lares. Ao DN, o Ministério da Saúde confirma que o uso de máscaras e viseiras se mantém “obrigatório em estabelecimentos e serviços de saúde, exceto farmácias comunitárias” e também “em estruturas residenciais ou de acolhimento ou serviços de apoio domiciliário para populações vulneráveis, pessoas idosas ou pessoas com deficiência, bem como unidades de cuidados continuados integrados da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados”. A tutela acrescenta também que está a “finalizar a reavaliação, através dos serviços competentes do ministério, dos contextos e das indicações de utilização de máscara”. De acordo com os serviços parlamentares, na nota técnica à proposta do Governo, a Assembleia da República aprovou, desde 18 de março de 2020, um total de 57 leis com medidas relacionadas com a situação de emergência de saúde pública causada pela Covid-19, pelo que apenas seis ficam agora excecionadas desta revogação expressa. Para o Governo trata-se de leis já “caducas, anacrónicas ou ultrapassadas pelo evoluir da pandemia”, pelo que com esta revogação expressa “ganha-se em clareza e certeza jurídica, permitindo aos cidadãos saber, sem qualquer margem para dúvidas, qual a legislação relativa à pandemia que se mantém aplicável”. Esta é já a segunda vez que o Executivo avança com a revogação em série de legislação da pandemia. Entre os 51 diplomas que serão agora expressamente revogados, num debate e votação agendados para a próxima semana, contam-se quer as medidas de combate à pandemia de âmbito sanitário, quer as medidas de apoio social e económico às famílias e empresas que foram então determinadas. É o caso do regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, as medidas fiscais de apoio às micro, pequenas e médias empresas ou o mecanismo extraordinário de regularização de dívidas por não pagamento de propinas nas instituições de ensino superior públicas. O diploma especifica que a revogação “não prejudica a produção de efeitos no futuro de factos ocorridos durante o período de vigência dos respetivos atos legislativos”. A revogação generalizada destas leis não é, no entanto, consensual. É o caso da lei que estabeleceu um regime transitório para a emissão de atestado médico de incapacidade multiuso para os doentes oncológicos, instituindo um procedimento especial para emissão do atestado. O próprio Governo determina que, neste caso em específico, a revogação só produzirá efeitos a 31 de maio deste ano, mas o Livre avança com uma proposta para manter este regime excecional até que esteja ultrapassada a atual situação de atrasos, que tem merecido vários reparos da Provedora de Jus-tiça, relatando queixas de utentes que apontam tempos de espera até dois anos. “A necessidade de um regime transitório para emissão de atestado médico de incapacidade multiuso mantém-se, porventura até agravada, atentos os atrasos que a pandemia, precisamente, foi impondo à realização de juntas médicas, muito por conta da afetação dos médicos ao seu combate”, argumenta Rui Tavares, defendendo que é essencial manter este procedimento especial “até que se verifique a recuperação daquele atraso, isto é, até que a nível nacional se verifique que o tempo que medeia entre o requerimento e a realização da junta médica se situa nos 60 dias, que é o prazo legal”. Outra medida que surgiu como resposta à pandemia e que o Livre pretende manter é a possibilidade das reuniões de órgãos das autarquias locais e das entidades intermunicipais decorrerem através de videoconferência. No caso deste diploma, o próprio Governo especifica que se mantém em vigor o artigo da lei que determina, em relação a órgãos colegiais, que “a participação por meios telemáticos, designadamente vídeo ou teleconferência de membros de órgãos colegiais de entidades públicas ou privadas nas respetivas reuniões, não obsta ao regular funcionamento do órgão, designadamente no que respeita a quórum e a deliberações”. E também que “a prestação de provas públicas previstas em regimes gerais ou especiais pode ser realizada por videoconferência, desde que haja acordo entre o júri e o respetivo candidato e as condições técnicas para o efeito”. Um “caos” legislativo Chamada a pronunciar-se sobre a proposta do Governo, a Ordem dos Advogados é taxativa: a proposta já vem tarde. “O caos legislativo que ocorreu em tempos pandémicos fica assim, com a presente proposta de lei, mitigado, se não mesmo dissipado”. Lembrando que “desde sempre se insurgiu contra este caos e contra medidas inconstitucionais tomadas pelo Governo”, a Ordem dos Advogados diz “não poder deixar de concordar que sejam revogadas estas 51 leis, algumas delas violadoras” dos Direitos, Liberdades e Garantias dos cidadãos. A Ordem adverte, no entanto, que o “caos criado por esta profusa produção legislativa não terminará completamente” com esta revogação, dado que o diploma determina que não fica prejudicada a “produção de efeitos no futuro de factos ocorridos durante o período de vigência dos respetivos atos legislativos”, pelo que “no futuro certamente existirão questões a dirimir sobre o tempo em que se encontrava em vigor” esta legislação. Recorde-se que a legislação produzida ao tempo da pandemia veio a merecer sucessivas declarações de inconstitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional. Em outubro do ano passado, o TC contava já 23 declarações de inconstitucionalidade de medidas tomadas durante a pandemia, com destaque para as restrições aos Direitos, Liberdades e Garantias.
Ordem dos Advogados saúda fim do “caos legislativo” da pandemia. Livre quer manter regime transitório nos atestados de incapacidade multiuso para doentes oncológicos.