“Com esta frontalidade dificilmente terei acolhimento num partido” - Entrevista a Fernanda de Almeida Pinheiro, Bastonária da Ordem dos Advogados

Nasceu nas Caldas da Rainha, mas vive em Lisboa há mais de 30 anos. Cerca de 10.500 advogados votaram nela para bastonária e Fernanda Almeida Pinheiro passou a ganhar €6 mil euros brutos mensais. Passou a ter à disposição carro e motorista, mas garante que vai para o trabalho de comboio — “quando não há greves, claro”.

 

Numa palavra como é que retrataria o anterior bastonário, Menezes Leitão?

Ausência.

 

E outros ex-bastonários como, por exemplo, José Miguel Júdice, Marinho e Pinto e Elina Fraga?

Não gosto de falar de anteriores bastonários. Eles tiveram o seu tempo e agora estou eu no cargo. Não tenho de os julgar, isso já foi feito pelo eleitorado quando alguns deles decidiram recandidatar-se e não foram reeleitos.

 

Como vê a ligação de anteriores bastonários a partidos políticos, antes ou depois de terem sido bastonários?

Acabei de lhe dizer que não vou comentar porque são opções individuais de cada um e não me cabe a mim...

 

A si chamam-lhe “a sindicalista”, certo?

É verdade.

 

Porquê?

Sabe bem porquê. Porque eu digo coisas que as pessoas não gostam de ouvir.

 

Os sindicalistas também dizem asneiras.

Mas eu nao sou uma sindicalista, comecemos por aí.  O que eu sou é pela justiça e pelos direitos humanos. E isso não me permite que eu assista a uma realidade injusta e que viola principios básicos do Estado de direito e que fique calada.

 

Pois, e tem evitado sempre responder sobre as suas preferências políticas. Refugia-se sempre no chavão que é humanista.

E sou, são essas as minhas preferências políticas, não tenho outras.

 

Votou em quem nas últimas eleições legislativas?

O voto é secreto e não tenho de o revelar, muito menos agora que sou bastonária. São questões minhas, pessoais. O que lhe estou a dizer é que não tenho nenhuma filiação política ou especial apetência por algum partido político.

 

Depois de ser bastonária não a vamos ver com algum partido político?

Em princípio, não. Com esta frontalidade dificilmente terei acolhimento em algum partido político.

 

Pode encaixar no BE ou no Chega, pois dizem-se muito frontais.

Ou posso ir para o PSD ou o CDS ou não ir para nenhum, que é provavelmente aquilo que vai acontecer. Não tenho nenhum interesse em frequentar o poder legislativo, mas quem o faz tem toda a legitimidade. Temos advogados como presidentes de câmara, no parlamento e...

 

Há quem considere isso um problema: advogados que estão no parlamento e a trabalharem em escritórios com certo tipo de clientes, o que pode levar a comportamentos pouco éticos.

Acha?! Não vejo porquê. Os advogados são legisladores natos e uma mais-valia para o parlamento.

 

Ou não, por causa das tais questões de incompatibilidades e...

Isso não tem a ver com incompatibilidades, mas sim com conflitos de interesse. Em termos legislativos, essa incompatibilidade nunca foi criada, mas se me pergunta, se deveria, ter sido, se calhar devia, mas não é uma vontade do parlamento. Olhe que na Assembleia não estão só advogados, mas muitas outras profissões, como médicos, engenheiros, arquitetos e outros que se calhar também podem ter conflitos de interesses.

 

Sabe que qualquer pessoa que vá ao Tribunal Constitucional consultar as declarações dos deputados advogados até a identificação do escritório onde trabalham ou são sócios é apagada por causa da lei de proteção de dados pessoais?

Eu sou pela transparência e acho que deveriam ser revelados esses dados quando desempenhamos um cargo público. Há aqui colegas meus que julgam que eu não devia estar neste cargo porque não auferia aquilo que ganho hoje como bastonária e isso nada tem a ver com a transparência. Eu ganho o que ganho porque o salário e inerente ao cargo, coisa diferente é...

 

Também poderia prescindir do salário, como sabe.

Poderia, mas eu acho que o salário deveria ser obrigatório para todos os bastonários. Para exercerem em regime de exclusividade até pela complexidade do cargo e para lhes ser exigida responsabilidade. Além disso, torna também o cargo mais democrático: qualquer advogado, independentemente da sua origem ou condição, pode assim exercer o cargo. Eu, para estar aqui hoje, deixei de ter escritório. Tive de entregar os meus clientes, delegar as minhas funções.

 

Qual é o seu ordenado bruto?

Ronda os 6 mil euros, é igual ao da procuradora-geral da República, sujeito a impostos.

 

É muito diferente daquilo que ganhava antes?

É, claro que é diferente.

 

Qual é a diferença?

Não há interesse em saber porque não tinha funções públicas. Não tenho de revelar.

 

Ganhava muito menos?

Não interessa.

 

Falando com uma advogada sugeriu-me que lhe perguntasse se a Ordem dos Advogados (OA) ainda tem razão de existir?

É verem como as coisas correm se a Ordem não existir. Ainda agora tivemos um problema na cadeia de Angra do Heroismo [advogadas obrigadas a tirar o sutiã à entrada] e resolveu-se logo devido a intervenção da Ordem. A OA é preponderante para o exercício da profissão. Por exemplo, esta casa garante que todos os cidadãos possam acionar um seguro de responsabilidade civil contra um comportamento menos rigoroso de um advogado e isso é inteiramente pago pela OA. O sistema Sinoa, onde estão registados os atos internos dos advogados na OA, existe porque somos nós que o suportamos. E...

 

O Sinoa não é o sistema de onde desapareceram cerca de 500 processos disciplinares do Conselho Superior (CS) da Ordem?

Desapareceram processos? Não, isso foi tudo averiguado e não desapareceram processos.

 

Eu li a auditoria e surgem lá dois dados irrefutáveis: que não se encontraram 26 processos físicos e...

Se calhar nunca existiram ou foram mal introduzidos no Sinoa.

 

Ou existiram e desapareceram mesmo. A auditoria estabelece apenas hipóteses.

Pronto, também no meio de tanto processo, se tivessem desaparecido 26 nunca seria algo muito grave. Mas não desapareceram.

 

A anterior presidente do CS, Paula Lourenço, escreveu que, apesar do resultado da auditoria, nunca viu os 500 processos e insistiu em pedi-los várias vezes.

Se calhar, foram para os sítios certos. O Conselho Superior é um órgão de recurso e, se calhar, quando é decidido, o processo regressa ao seu local de origem. Mas essas questões têm de ser colocadas ao anterior bastonário e à anterior presidente do CS, eu não estava cá.

 

A autorregulação como existe hoje não poderá ser vista como uma não regulação? A OA não quer gente externa a fiscalizar e...

O que não queremos é 60 por cento de gente externa. Se calhar, o legislador precisa que venha tudo abaixo para se perceber os erros cometidos. Se calhar, muitos advogados que estão a legislar não andam no terreno. Se conhecessem a realidade das ordens públicas, não fariam o que fizeram na questão do novo órgão de supervisão. Vamos também ver quem aparece a candidatar-se e em que circunstâncias, porque as funções não são remuneradas.

 

Também está previsto um provedor e esse é remunerado.

Sim, e é mais um órgão externo para vir aqui supervisionar um órgão executivo, que é o meu, que tem legitimidade eleitoral.

 

O provedor também não pode ser um não advogado?

Se existir, tem de ser um advogado.

 

Defende órgãos de supervisão, só não devem é ter gente fora da advocacia? O poder de regular mantém-se entre os advogados.

O órgão de supervisão tem 21 elementos. Vou repetir isto, e parece que estamos ambos a falar português e...

 

Estamos, estamos.

...eu entendo que devem participar membros, mas não devem ser a maioria.

 

Quando um advogado sócio principal de um grande escritório se cruza com advogados que vivem dos casos de apoio judiciário e do acesso ao direito, os dois ainda se sentem colegas?

Ora essa?! A diferença é só remuneratória.

 

E de estatuto. Na prática, uns não são o patrão e os outros os empregados?

Do ponto de vista do estatuto, todos os advogados têm iguais direitos e deveres. Claro que sei o que acontece nas grandes sociedades, eu digo isso há muito e por isso chamam-me sindicalista. O patrão tem de assumir responsabilidades sociais com os empregados, como acontece em qualquer empresa. Eu vou propor um regulamento que clarifique essa situação. Um profissional não é liberal se estiver a trabalhar por conta de outrem, com horário e subordinação hierárquica e em exclusividade ou quase. Isto só não é óbvio e claro para quem não quer pagar as contribuições sociais. Se eu tiver um escritório com 100 advogados e tiver de pagar 23,75% da remuneração para a Segurança Social, se tiver de lhes pagar subsidio de refeição, férias e Natal e horas extraordinárias, também vou achar que está muito mal.
Mas é isto que tem de acontecer.

 

O que pensa de algo que vemos todo os dias passar-se na justiça portuguesa, como o facto de surgirem advogados a colocarem 23 recursos que impedem o processo de ser julgado ou figuras mediáticas a conseguirem adiar quase até à eternidade julgamentos ou decisões judiciais?

Não é sistemático, é em alguns processos. Eu adoro essa conversa. Isso é feito porque está na lei que podem fazer. Essa pergunta tem de ser feita aos sucessivos governos da Nação. Há processos que chegam a estar 10 e 12 anos em investigação, como acontece agora, num caso que envolve Isaltino Morais. Isso tem sentido? Admiram-se que possa prescrever? E a culpa é do advogado, que tem sempre prazos para cumprir?

 

Qual acha que será a sua tarefa mais difícil durante o mandato?

É fazer compreender que se não tivermos um edificado da justiça forte e com meios, continuamos sempre com o discurso de dizer que a justiça funciona mal.

 

Sábado

António Vilela (texto), Raquel Wise (fotos)

 

18/04/2025 04:40:15