"A ministra e o Governo estão a tentar desmantelar a Justiça"

Na antecâmara do gabinete de Fernanda de Almeida Pinheiro há uma mesa com dez livrinhos dispostos em forma de árvore. São versões de bolso do estatuto da Ordem dos Advogados. O Governo quer mudá-lo radicalmente e há uma guerra por causa disso. A bastonária também quer liderar a luta das mulheres por mais destaque no mundo judicial.

Provocou-lhe algum sentimento os comentários do Presidente da República ao peso de uma mulher, ao decote de outra e à situação de assédio que ocorreu na seleção feminina de Espanha?

Gosto muito do Presidente e sei que não teve malícia. Mas esses comentários são inadmissíveis. Não se pode comentar na televisão o peso, o tamanho, a indumentária, seja de quem for. Porque isso diminui. E eu sei disso porque sou mulher. E sei bem os comentários que as pessoas que opõem a este Conselho Geral fazem a meu respeito. Comentam a minha dentição, se vou ou não dentista e se lavo os dentes. A minha indumentária é alvo de comentários na página da Ordem. Até a minha ida ao desfile de mordomas em Viana foi alvo de comentários. Este tipo de comentários de body shaming não podem acontecer e são feitos, normalmente, em relação às mulheres. É inconcebível que alguém queira desculpar aquele beijo que aconteceu na seleção espanhola. Temos um problema muito grave de direitos das mulheres do mundo. Mesmo num país como o nosso, livre e democrático, todos os dias há mulheres mortas e violadas.

Tem esperança em vencer a guerra dos estatutos da Ordem depois de o Tribunal Constitucional ter dito que está de acordo com a Constituição?

O Governo foi além do que está previsto na lei, porque a lei não manda mexer nos atos próprios das profissões. Pretendem deixar como ato próprio da advocacia apenas o mandato forense, isto é, os tribunais. Os contratos e as cobranças passam a poder ser feitas por pessoas que nada têm a ver com Direito e não são reguladas por ninguém.

Mas um licenciado não pode aconselhar uma pessoa a recorrer ou não aos tribunais?

Não. Pode saber de lei, mas não sabe nada sobre a aplicabilidade da lei. Se eu quiser instaurar uma ação de responsabilidades parentais, não me chega saber como se regula aquela matéria. Tenho de saber onde interponho a ação, de que meios de prova necessito, quanto é que vai gastar. A licenciatura em Direito não está feita para praticar profissões.

Mas um jurista pode dar pareceres.

Não é o mesmo que uma consulta. Numa consulta, a pessoa está a pedir uma solução para o problema que tem na sua vida. O profissional vai ter de apresentar os vários cenários de que dispõe para resolver o problema. E é isso que o licenciado em Direito não sabe e tem de aprender. Eu aprendi Direito Administrativo na faculdade, mas não posso dar uma consulta sobre isso porque, na prática, não sei nada daquilo.

A lei já foi aprovada no Parlamento.

Falta aprovar na especialidade e eu espero que as pessoas tenham o bom senso de perceber que estão a criar problemas aos cidadãos porque as pessoas com capacidade financeira vão continuar a recorrer a advogados.

Além de confiar no bom senso de outrem, o que é que se propõe fazer para evitar que lei vá mesmo para a frente?

O Estado em vez de estar preocupado em criar associações de licenciados em Direito, tem de se preocupar em resolver os problemas que criou com esta lei. Como é que os advogados vão conseguir pagar €950, mais subsídios, aos estagiários? Não conseguem. E isso vai acabar com os estágios.

Qual é a solução?

O Estado tem de pagar os estágios, têm de ser criados mecanismos de financiamento. Isto vai criar um problema enorme para quem quer entrar na advocacia; nós já fizemos a nossa parte e retirámos €550 aos emolumentos que os jovens têm de pagar para se inscreverem. E fizemo-lo com sacrifício.

Mas o que vai fazer para impedir que a lei seja posta em prática nos termos que o Governo quer?

A Ordem usará todos os mecanismos legais para o fazer. Vamos esperar para ver o que vamos conseguir nas negociações para a especialidade.

No dia em que a lei foi aprovada, disse que iria parar a Justiça. Vão fazer greve?

Se não comparecermos nos atos em que nos é solicitada a presença, a Justiça pára. Não é uma greve, é um protesto.

Nas eleições, uma das suas bandeiras foi dar aos advogados a possibilidade de optarem entre a CPAS (Caixa de Previdência de Advogados e Solicitadores) e a Segurança Social. Não aconteceu. Porquê?

Os advogados já votaram no sentido dessa alteração, mas o Governo não quer cumprir a Constituição e quer deixar os advogados e solicitadores sem previdência digna desse nome. Já tivemos uma promessa dos ministérios da Justiça e do Trabalho de que iriam constituir um grupo de trabalho para saber se pode ou não haver essa escolha — em Espanha, por exemplo, é possível — e ainda nada foi feito. E porquê? Porque para as pessoas que ganham muito dinheiro, a CPAS é a solução perfeita porque pagam o que quiserem.

Sente alguma frustração por terem passado oito meses e não ter conseguido mudar nada do que queria?

Não. Sinto ainda mais motivação para continuar a lutar. Já fizemos uma queixa contra o Estado português na Fédération des Barreaux d’Europe que a vai apresentar junto da Comissão Europeia se o problema não se resolver.

A greve interminável dos funcionários judiciais faz algum sentido para si?

Faz. Já viu alguma resposta da ministra às reivindicações dos funcionários? Diz que já tem o estatuto pronto, mas alguém o conhece? Os funcionários conhecem? Ninguém conhece e, no entanto, a ministra diz que vai aprovar aquilo, A greve dos funcionários está a desgraçar a Justiça, a levar-nos para um precipício e a ministra da Justiça faz de conta que isto não existe.

Há algum paralelismo com a situação dos advogados?

Os funcionários estão a parar a Justiça porque não têm alternativa. E mais uma vez voltamos às incongruências do Governo: quer obrigar os advogados a pagar €950 aos estagiários, mas depois contrata funcionários judiciais a quem paga €843 por mês. E são quase todos licenciados em Direito. É este o valor que dá aos 200 funcionários que contratou quando precisava de 1000. A ministra da Justiça e o Governo estão a tentar desmantelar a Justiça.

Porque é que a ministra haveria de querer fazer isso?

Porque é mais fácil que a Justiça seja privada e não tenha advogados e magistrados que são muito incómodos.

Mas não há Justiça sem magistrados e advogados.

Não? Olhe para os julgados de paz.

São formados por juízes e advogados.

Não são todos. Mas é um sistema privado que proíbe o cidadão de ter escolha. Se desmantelar a Justiça o que é que está a fazer senão a forçar as pessoas a recorrerem à justiça privada?

Mas acredita que há um plano do Governo para acabar com a Justiça?

Às vezes pergunto-me se estas pessoas não querem acabar com o sistema público de justiça tal é a falta de respeito e de noção. Não é possível que tenha havido tão pouco investimento na Justiça. É um desastre. O edificado está uma lástima, não há meios humanos e os discursos continua a ser “investimos milhões”. Tenho a certeza de que não sou a única a preocupar-se com isto. Os magistrados, os funcionários, estão preocupados.

 

Entrevista da Bastonária da OA ao jornal Expresso

02/12/2023 21:25:10