Nomes neutros, eutanásia, habitação, metadados. As leis da legislatura que hoje termina - Público

Interrompida a mais de dois anos do fim, a actual legislatura permitiu aprovar leis como a da eutanásia, a do acesso aos metadados, a do pacote Mais Habitação, os nomes neutros ou a reforma das ordens profissionais. O ciclo de maioria absoluta deu luz verde a alterações no regimento da Assembleia da República que permitiram o regresso dos debates quinzenais com o primeiro-ministro. Com a dissolução do Parlamento prevista para hoje, há leis que ficam para trás, tais como a regulamentação do lobbying. Eis alguns dos diplomas aprovados no Parlamento desde final de Março de 2022:

 

Nome neutro e WC nas escolas

 

Em dois recentes momentos, o Parlamento aprovou diplomas relacionados com a autodeterminação da identidade de género, que ainda não foram promulgados pelo Presidente da República. Um deles permite às pessoas escolher um nome neutro, eliminando a actual obrigatoriedade de os nomes próprios terem de ser identificados com o sexo masculino ou feminino.

O outro decreto prevê que as escolas devem definir “canais de comunicação e detecção”, bem como um responsável “a quem pode ser comunicada a situação de crianças e jovens que manifestem uma identidade ou expressão de género que não corresponde ao sexo atribuído à nascença”. As escolas terão também de garantir que os alunos, “no exercício dos seus direitos e tendo presente a sua vontade expressa, acedem às casas de banho e balneários, assegurando o bem-estar de todos, procedendo-se às adaptações que se considerem necessárias”. Este ponto do texto tem gerado polémica.

 

Ordens profissionais à pressa

 

As alterações aos estatutos das ordens profissionais, envoltas em grande polémica, acabaram por ser aprovadas no Parlamento, embora em sete casos a maioria absoluta do PS tivesse de confirmar os textos para superar os vetos do Presidente da República. O Governo anunciou a reforma das 20 ordens profissionais como uma das mais relevantes para o desenvolvimento económico e a sua aprovação no Parlamento permitia desbloquear verbas do Plano de Recuperação e Resiliência. A reforma acabou por ter “luz verde” com atraso, depois de um processo legislativo apressado e que foi considerado atabalhoado, o que levou o PS a admitir voltar à legislação na próxima legislatura.

 

Às voltas com os metadados

 

Depois de o Tribunal Constitucional (TC) ter declarado inconstitucional a conservação de metadados de todos os utilizadores de telecomunicações para efeitos de investigação criminal, o Parlamento demorou um ano e meio para chegar a uma revisão do regime sobre os dados de tráfego e localização de chamadas, mensagens e ligações de Internet. Reduziu-se o prazo de 12 para três meses, obrigou-se à guarda num país da UE e à comunicação ao titular do uso dos seus dados. Solução que o TC voltou a chumbar, por se manter a recolha e conservação indiscriminada.

Quase in extremis, os deputados optaram pela solução mais radical: só pode ser feita a conservação de metadados para os casos específicos de pessoas envolvidas em crimes graves sob investigação e por autorização de uma composição de juízes do Supremo. O diploma ainda não foi enviado para Belém.

 

Eutanásia sem regulamentação

 

O dossier já vinha desde a primeira legislatura de António Costa e foi alvo de duas declarações de inconstitucionalidade e de quatro vetos do Presidente da República (dois por inconstitucionalidade, dois políticos). Marcelo Rebelo de Sousa acabou por ser forçado a promulgar depois de o Parlamento confirmar (com votos do PS, IL, BE e PAN) a quarta e última versão do diploma que estabelece a primazia do suicídio assistido sobre a eutanásia.

Só poderá aceder à eutanásia (morte assistida pela mão do médico) quem não puder dar a si próprio o fármaco letal. O doente tem que ser maior de idade, residir em Portugal, demonstrar vontade actual e reiterada, séria, livre e esclarecida, e estar em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável.

O PSD já pediu ao TC a fiscalização sucessiva da lei e o Governo, que tinha até Outubro para a regulamentar, não o fez, colocando o assunto no dossier de transição para o próximo executivo.

 

Vistos facilitados na CPLP

 

Na sequência do acordo sobre a mobilidade entre os Estados-membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, o Parlamento aprovou, no Verão de 2022, o novo regime que criou um visto de quatro meses para procura de trabalho e os imigrantes da CPLP deixaram de precisar de visto prévio do SEF. O diploma também acabou com o regime de quotas para a imigração, facilitou o visto de residência para estudantes estrangeiros em Portugal e permitiu a atribuição de visto de residência ou estada temporária aos nómadas digitais.

 

Drogas sintéticas descriminalizadas

 

Entrou em vigor em Outubro a nova Lei da Droga que descriminalizou as drogas clássicas e as sintéticas e introduziu uma nova distinção entre o tráfico e o consumo das novas substâncias sintéticas. Além disso, acabou com o limite da quantidade máxima admissível de posse, passando a permitir que se tenha mais do que o consumo médio individual para dez dias, e passando para as polícias o ónus de provar que a quantidade identificada na posse de alguém não se destina a consumo próprio, mas a tráfico.

 

Mais Habitação com veto de Belém

 

Com os votos apenas do PS, o Parlamento confirmou o pacote Mais Habitação que tinha sido vetado (com críticas de “irrealismo” sobre os resultados projectados) pelo Presidente da República no Verão de 2023.

O arrendamento forçado (ainda que mais recuado face ao inicialmente previsto), a contribuição extraordinária para o alojamento local e a introdução de benefícios fiscais para o arrendamento são algumas das medidas aprovadas. Foram, ainda, criados limites às rendas de novos contratos de arrendamento, ao mesmo tempo que os inquilinos com contratos antigos são protegidos de forma definitiva. Os processos de despejo tornam-se mais simples e mais céleres.

 

Fim dos “vistos gold” no imobiliário

 

No âmbito do pacote Mais Habitação, acabou a atribuição da autorização de residência para actividade de investimento em imobiliário, uma medida que era reclamada pelos partidos à esquerda. Quem já tinha feito o pedido antes da nova lei poderia ser aprovado e mantêm-se também as renovações dos “vistos gold” já atribuídos e a concessão de autorizações para reagrupamento familiar.

 

Novas regras laborais

 

Com os votos contra do PCP, BE e IL, o Parlamento aprovou, em Fevereiro de 2023, mais de uma centena de alterações ao Código de Trabalho num pacote que o Governo designou por Agenda do Trabalho Digno.

As alterações fixaram novas regras para o trabalho em plataformas digitais (como os estafetas ou motoristas), estabeleceram a possibilidade de haver um valor fixo de despesas por teletrabalho que ficará isento de IRS e a proibição de os trabalhadores renunciarem a direitos no final do contrato. Ficou também consagrado o teletrabalho, desde que possível, para quem tem filhos com deficiência, doença crónica ou doença oncológica, e foi simplificado o acesso às baixas médicas até três dias.

 

Restrição à partilha de conteúdos íntimos

 

Partilhar de forma não-consentida imagens íntimas de alguém passou a ser punido com uma pena até cinco anos de prisão, e também adquiriu a natureza de crime semipúblico (não necessita de queixa) se “resultar em suicídio ou morte da vítima ou quando o interesse da vítima o aconselhe”. Foram agravadas as penas para quem capte ou divulgue imagens de pessoas ou espaços íntimos ou partilhar factos sobre a sua vida privada ou doença grave. E os prestadores intermediários de serviços de rede têm que denunciar ao Ministério Público os conteúdos que detectem que configurem o crime de devassa da intimidade sexual ou corporal (se existir divulgação não-consentida de nudez), e bloquear esses sites em 48 horas.

 

Abusos de menores com maior prazo de prescrição

 

Apesar de ter chumbado o aumento das penas, o Parlamento acabou por aprovar o aumento do prazo de prescrição dos crimes de abuso sexual contra menores, para dar resposta aos pedidos da comissão que investigou os abusos na Igreja. Foi aumentado o prazo-limite da prescrição da responsabilidade criminal dos 23 para os 25 anos e também alterado o momento a partir do qual se começa a contar o prazo, o atinge a maioridade, o que faz com que, consoante a gravidade do crime, ele se estenda até aos 33 anos.

 

Regresso dos debates quinzenais

 

No início da actual legislatura, o PS abriu a porta ao regresso dos debates quinzenais com o primeiro-ministro, deixando de se realizar a cada dois meses. Ainda em meados de 2022 arrancaram as conversações com o PSD para alterar o regimento, mas só mais de um ano depois foram aprovadas as alterações. O novo modelo, com um limite de réplicas em cada bancada, só arrancou a 18 de Outubro.

 

Alterações à lei da nacionalidade

 

Já este ano, o Parlamento aprovou um diploma que permite que os descendentes de judeus sefarditas possam vir, a partir de 2025, a aceder à nacionalidade portuguesa se residirem em território nacional durante três anos seguidos ou interpolados (ao invés dos cinco anos que são exigidos a outro estrangeiro).

Como forma de prevenir novos abusos como os que aconteceram com a Comunidade Israelita do Porto, está prevista a criação de uma comissão de avaliação a quem compete a “homologação final” da “certificação da demonstração de tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa com base em requisitos objectivos comprovados de ligação a Portugal”.

 

Amnistia decretada por vinda do Papa

 

Para assinalar a vinda do Papa a Portugal por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, foi feita uma lei que amnistiou parte das penas de crimes e infracções praticados até 19 de Junho de 2023 por jovens entre os 16 e os 30 anos. Perdoou-se um ano em todas as penas até oito anos de prisão, amnistiaram-se as contra-ordenações com coima máxima de mil euros e as infracções penais até um ano de prisão ou 120 dias de multa. Terá beneficiado quase 900 reclusos. Ficaram de fora crimes como homicídio, infanticídio, violência doméstica, maus tratos, ofensa à integridade física grave, mutilação genital feminina, ofensa à integridade física qualificada, casamento forçado, sequestro, contra a liberdade e autodeterminação sexual, extorsão, discriminação e incitamento ao ódio e à violência, tráfico de influência, branqueamento ou corrupção.

 

Fim dos internamentos forçados

 

A revisão da Lei da Saúde Mental acabou com uma regra de muitos anos relativa aos chamados inimputáveis, obrigando ao fim dos internamentos forçados. Agora, depois de cumprirem a pena por um crime que cometeram, os inimputáveis são obrigatoriamente libertados, não se podendo prorrogar a sua medida de internamento de segurança automaticamente. E se alguém necessitar urgentemente de cuidados de saúde mental e se recusar a recebê-los, pode ser alvo de internamento compulsivo.

 

Redução do IVA à taxa zero

 

Perante a subida da inflação, o Parlamento aprovou, em Março do ano passado, a redução do IVA à taxa zero em 46 tipos de bens alimentares durante seis meses. A medida foi prorrogada até ao dia 4 deste mês, data em que foi revogada, pois não consta do Orçamento do Estado para 2024.

 

Lobbying adiado

 

O mais recente dossier que acabou por morrer na praia novamente foi o da regulamentação do lobbying, nesta semana, mas outros houve que tiveram que ficar para trás. Como a revisão constitucional e as restrições polémicas sobre locais de venda e consumo de tabaco, acabando o Parlamento por se limitar a fazer a transposição da directiva que equipara totalmente as regras dos cigarros electrónicos aos tradicionais. Mas também ficaram pelo caminho outras transposições de directivas como a do Plano Poupança-Reforma pan-europeu e das regras para o crowdfunding. E ainda propostas sobre ofensa à integridade das forças de segurança, o estatuto da PJ, sobre difusão de conteúdos terroristas na Internet, revisão da Lei das Armas, da Lei de Bases do Ordenamento Marítimo.

Na gaveta, para recuperar noutra oportunidade, ficam as propostas do PSD, já aprovadas na generalidade, para rever regras do financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais.

 

10/07/2025 20:34:33