“Intolerável”: provedoria quer que PSP deixe de “imediato” de pôr migrantes a dormir no chão
Depois de visitar, em final de Novembro, o centro de detenção do aeroporto de Lisboa e encontrar requerentes de asilo a dormir no chão na zona internacional, a Provedoria de Justiça disse à PSP que aquela situação era “indigna” e “intolerável” e pediu o seu “fim imediato”.
Quem o afirma, em entrevista ao PÚBLICO, é Miguel Feldmann, coordenador do Mecanismo Nacional de Prevenção (MNP) —? que está na dependência da Provedoria. A recomendação está também num relatório que foi entregue à PSP no dia 8 de Janeiro, acrescenta.
Contactada, a PSP não quis comentar esta recomendação e remeteu para resposta anteriormente dada ao PÚBLICO em que afirma que só aloja cidadãos na zona internacional em último recurso. Como foi noticiado em Dezembro, houve um cidadão marroquino que esteve 19 dias a dormir no chão.
A Provedoria de Justiça é, desde 2013, a entidade responsável pelo MNP, um instrumento de monitorização da aplicação da Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Degradantes ou Desumanos (CAT) da ONU. Periodicamente, este organismo inspecciona os locais com pessoas detidas ou condicionadas na sua liberdade —? das prisões a centros educativos ou ao espaço equiparado a centro de instalação temporária (EECIT) do aeroporto de Lisboa.
Foi numa dessas visitas, a 24 de Novembro, por sua iniciativa, que o coordenador do MNP se deparou com aquele cenário: “Falámos com pessoas que estavam na zona internacional, em que ao lado entram e saem os passageiros dos aviões. Estavam sentadas nos bancos, algumas com cobertores. Falei com pessoas que estavam lá há cinco dias. E isso não é digno. Há normas que têm de ser seguidas”, sublinha. “Transmitimos, logo na altura, à PSP a impossibilidade de manutenção” desta situação, acrescenta.
Esta situação verifica-se desde 29 de Outubro, altura em que a PSP passou a tomar conta das fronteiras do aeroporto, substituindo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que foi extinto. Depois da morte do cidadão ucraniano Ihor Homenyuk em Março de 2020, o SEF tinha deixado de deter requerentes de asilo no aeroporto, deixando-os entrar com visto temporário e tratar do seu pedido já em território nacional.
Também o Conselho Português para os Refugiados (CPR), que presta apoio jurídico aos requerentes de asilo e gere o seu acolhimento, defendeu que, enquanto a situação se mantiver e não existirem condições de acolhimento, a PSP deve suspender o procedimento. A comissão de direitos humanos da Ordem dos Advogados foi nesta terça-feira fazer uma visita ao local, depois de receber várias queixas de cidadãos, como o PÚBLICO noticiou.
O EECIT tem duas alas, cada uma com capacidade para dez pessoas e dois quartos familiares. Tem estado sempre lotado —? razão pela qual a PSP envia os requerentes de asilo para outros espaços no aeroporto de Faro e Porto ou para a zona internacional do aeroporto de Lisboa.
A PSP não quis dar ao PÚBLICO o número de requerentes de asilo que ficaram a dormir no chão pelo menos uma noite na zona internacional do aeroporto, mas Miguel Feldmann refere que foram cerca de 80 cidadãos que passaram pelo menos uma noite ali no prazo de um mês, entre 30 de Outubro e 30 de Novembro.
Embora reconheça que existe “vontade da PSP e da AIMA [Agência para as Migrações e Asilo, que assumiu uma parte das funções do extinto SEF] em resolver o problema”, Miguel Feldmann refere que “tem de ser mais rápido e não podem ser medidas paliativas”.
O coordenador do MNP refere que as recomendações daquele relatório entregue a 8 de Janeiro foram “globalmente bem aceites” pela PSP, nomeadamente a necessidade de “garantir a presença de um mediador sociocultural", e realizar reuniões de trabalho para ultrapassar as questões sinalizadas pelo MNP. Sobre a pernoita de cidadãos na zona internacional, embora a PSP reconheça que não é adequada, o MNP diz que transmitiu que "mesmo em casos excepcionais, é indigna e inadmissível”.?
Em Dezembro, o superintendente Hugo Palma, indigitado director do Departamento de Gestão Integrada de Fronteiras, reconhecia que as condições em que estão os migrantes “não são dignas”. A AIMA, que descarta responsabilidade pelas condições em que as pessoas são alojadas naquele local, diz que encurtou os tempos de resposta dos pedidos de asilo para três dias.
Recentemente, os requerentes de asilo passaram a dormir em camas de campanha dos bombeiros, atrás de biombos. “Não consideramos que a resposta da PSP esteja a ser adequada”, afirma o coordenador do MNP. “Por muitas camas de campanha que coloquem, por muitos paliativos que se procurem encontrar, aquelas pessoas estão privadas da liberdade em condições que não podem ser admitidas pelo direito internacional e nacional”, refere.
Portugal está a infringir o direito internacional e nacional? Miguel Feldmann responde: “Sim, pelo menos os princípios. Ainda que seja difícil identificar uma norma concreta, o resultado nunca pode ser esse. Há princípios de dignidade humana que não podem ser atropelados.”
Questionado sobre a razão pela qual o MNP e a Provedoria têm sido discretos no comentário a esta matéria, afirma: “O nosso mandato é preventivo, não somos reactivos. Quando vamos aos locais que consideramos que podem ter as pessoas em situação de maior vulnerabilidade, a nossa situação preventiva é fazer um relatório, que levamos à hierarquia responsável pela solução do problema.”
Neste momento, aguardam resposta da PSP, que, como referido, não quis fazer comentários ao PÚBLICO.
Apesar de o MNP não ter por função indicar alternativas —? “aponta situações que são indignas” e como “actuar perante isso” —?, apresenta “dois caminhos”, sublinha o coordenador. “O Governo comprometeu-se, no plano de implementação do Pacto Global para as Migrações, a reforçar o uso de medidas não privativas de liberdade no caso de detenção administrativa de cidadãos estrangeiros —? Portugal foi dos primeiros países a implementar este plano. No seu objectivo 13 diz-se: ‘Utilizar a detenção como último ratio e trabalhar no sentido de encontrar alternativas não privativas da liberdade para fins de migração.’ O Governo assume este objectivo”, refere.
Por outro lado, se houver situações que justificam a detenção, tem de ser por “períodos muito curtos” e “é preciso ter espaços dignos". “As pessoas não podem ficar detidas numa zona internacional de embarque onde não tenham acesso a banho, cuidados médicos.”
A PSP alega que vários cidadãos só pedem asilo depois de lhe ser recusada entrada. O coordenador do MNP sublinha: “Essa pessoa tem direito a ser tratada de forma digna e adequada. É óbvio que isso pode suscitar alguma desconfiança. Mas não podemos generalizar. Pode haver pessoas que venham com tanta falta de conhecimento. A palavra help pode ser interpretada como pedido de asilo”, exemplifica. “A minha preocupação não é tanto se essas pessoas são idóneas ou não, mas se estas pessoas enquanto estão privadas da liberdade e à guarda do Estado português têm de ter condições dignas de tratamento, quer de alojamento quer de assistência a cuidados médicos."
Na semana passada, contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Administração Interna referiu que “nem sempre é possível garantir a rotatividade naqueles espaços internacionais”. Mas, “em todo o caso, a PSP tem vindo a garantir a estes cidadãos os cuidados de higiene, saúde e alimentação, bem como assegura, sempre que solicitado, o exercício de actos de culto”. Questionado sobre a recomendação da Provedoria, o ministério não deu resposta até à hora de publicação desta notícia.