A culpa é da doença mental? Não, a culpa é nossa

No dia 10 de outubro comemora-se o Dia Mundial da Saúde Mental. Múltiplas iniciativas assinalam a efeméride, que pretende sensibilizar e melhorar o conhecimento sobre saúde mental para que, nos restantes dias do ano, quem enfrenta problemas de saúde mental sinta mais apoio e menos estigma ou discriminação negativa.

Recentemente, um homicídio múltiplo gerou compreensível alarme mediático, tendo em conta a natureza do crime e o facto de se tratar de um acontecimento inabitual no nosso quotidiano. Rapidamente surgiram narrativas simplificadas, a mais recorrente sendo que a culpa seria da doença mental de que alegadamente padeceria o homicida. Questões como os antecedentes de comportamento violento do agressor (a história de violência prévia é o principal preditor de violência futura), a existência de familiares próximos com comportamento criminal ou outros determinantes sociais de relevo ficaram perdidos. E que ter história de doença mental pouco nos diz sobre a situação clínica atual e sobre a relevância de uma doença mental para um qualquer ato praticado. A culpa é da doença mental? Na verdade, a culpa desta narrativa simplista e deturpada é nossa.

A associação frequentemente espúria de perigosidade à doença mental é algo quase tão antigo quanto a nossa organização em sociedade, e esse estigma e preconceito estão profundamente infiltrados no tecido social, mesmo onde seria expectável uma visão mais esclarecida do mundo e da sociedade, pelo que, num episódio passado, o Colégio da Especialidade de Psiquiatria (CEP) entendeu ser oportuno lembrar que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.” – pelo menos no Artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. No dia a dia a doença mental é utilizada como insulto e ataque, nas conversas com que nos cruzamos e no debate público. Sempre que o estigma perante a doença mental é assim aprofundado, nas escolhas em urna de voto ou no balcão do café, também a culpa é nossa.

O investimento em saúde mental é incompreensivelmente inferior ao impacto da doença mental na economia, na sociedade em geral e na qualidade e esperança de vida. As pessoas com doença mental grave têm pior acesso a cuidados de saúde de qualidade, embora, em boa hora, tenham sido justificadamente priorizadas na campanha de vacinação Covid-19, quando o CEP alertou para a sua particular vulnerabilidade. Apesar dos avanços na reforma da saúde mental liderada pela Coordenação Nacional para as Políticas de Saúde Mental, limitada por hesitações recorrentes de sucessivos governos, os investimentos demoram a ser executados. Terapêuticas inovadoras tardam em chegar à Saúde Mental, sendo despesas bem mais significativas (e com ganhos tão ou menos bem comprovados) mais facilmente autorizadas em doenças onde o estigma não pesa. Também aqui, a culpa é nossa.

As pessoas com doença mental carregam um fardo pesado. Grande parte dele é nossa responsabilidade coletiva. Em 2024, a Federação Mundial para Saúde Mental escolheu como tema para o Dia Mundial da Saúde Mental “It is time to Prioritize Mental Health in the Workplace”. Seria um passo muito importante que entidades patronais e colegas de trabalho deixassem de olhar de soslaio quem apresenta a ida a uma consulta de Psiquiatria ou Psicologia como justificação de absentismo. É uma escolha nossa – colegas de trabalho, jornalistas, profissionais de saúde, políticos, familiares, vizinhos, espectadores – não acrescentarmos um grama que seja ao peso do estigma com que ainda hoje vivem os que têm uma doença mental.

Neste Dia Mundial da Saúde Mental lembremo-nos que é fácil e possível optar por gestos que podem ajudar a construir justiça social e, sobretudo, que é imperioso o respeito pelos direitos de todos enquanto cidadãos. A literacia e o conhecimento são também formas de respeitar quem tem experiência de doença mental e de sensibilizar para os seus direitos. O CEP procurará sempre dar voz e apoiar, com fraternidade e igualdade, quem experiencia doença mental e quem luta pela sua inclusão na sociedade.

Nuno Madeira e Manuela Silva, Direção do Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos



06/11/2024 23:41:37