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“Os pais e a pobreza são os principais incentivadores”: pelo menos 126 crianças entre os 10 e 14 anos casaram-se em Portugal desde 2015 - Expresso online

A “amostra não é significativa” e “muito pequena”, o que pode indicar que a realidade seja maior do que aquela que o inquérito agora realizado mostra. Grupo de trabalho pede ação do Estado para travar o fenómeno que tem crescido desde 2020. Na última década nunca se denunciaram tantos casamentos infantis, precoces ou forçados

Mais de uma centena (126) de crianças com idades compreendidas entre os dez e os 14 anos casaram-se em Portugal nos últimos anos. O dado é revelado agora pelo “Livro Branco: Recomendações para Prevenir e Combater o Casamento Infantil, Precoce e/ou Forçado” que revela os resultados de um inquérito às organizações envolvidas no combate e prevenção deste fenómeno. Os casos considerados aconteceram entre 2015 e 2023. No total, no mesmo período e em todo o país, foram registados 836 casos de uniões com menores de idade.

“Ainda que a amostra do inquérito não seja significativa porque é muito pequena, são muitos casamentos para muito poucas entidades. Estes números mostram uma realidade até agora invisível, que as organizações sempre souberam que existiam”, diz ao Expresso Francisca Magano, diretora de Políticas de Infância e Juventude da UNICEF Portugal, defendendo a necessidade de dados mais gerais e a realização de um inquérito nacional e em todas as escolas.

“Este é o melhor número que temos e não é surpreendente, embora seja um dado por defeito, porque sabemos que há cifras negras. Ainda assim, são dados que vão ao encontro do esperado e àquilo que é nossa experiência empírica”, continua Nuno Teixeira, coordenador regional da Associação para o Planeamento Familiar (APF), que a par com a Unicef, são duas das organizações que fazem parte do grupo de trabalho.

Entre os 836 casos reportados entre 2015 e 2023, torna-se evidente que as meninas e raparigas são as maiores vítimas destas uniões. Além dos 126 casos que envolvem crianças entre os 10 e 14 anos, há conhecimento de 346 com jovens entre os 15 e 16 anos, enquanto os restantes dizem respeito a casamentos entre os 16 e 18 anos (os que, com uma autorização parental, podem acontecer de forma legal).

Estas uniões aconteceram nos distritos de Lisboa (246), Castelo Branco (239), Beja (155), Faro (57) e Setúbal (24). “Há zonas onde não foi reportado qualquer caso, mas isso não significa que não aconteceu, só significa que não foi reportado”, defende Francisca Magano.

O “Livro Branco: Recomendações para Prevenir e Combater o Casamento Infantil, Precoce e/ou Forçado” foi apresentado esta terça-feira, apresentando resultados de um inquérito realizado entre março e abril deste ano, que foi respondido por 224 organizações públicas e privadas pertencentes à Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica, à Rede de Apoio e Proteção a Vítimas de Tráfico, à Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CPCJ), assim como aos municípios, às entidades da área da Saúde, associações relacionadas com direitos das mulheres, imigrantes, comunidades ciganas, LGBTI, infância e juventude, Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), Instituto do Desporto e Juventude (IPDJ), Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), universidades e centros de investigação.

“De um total de cerca de 1400 contactos de diferentes entidades convidadas a participar, foram recebidas 224 respostas, fixando-se em 16% a taxa de participação”, pode ler-se no relatório. Desde, 48 organizações deram conta de pelo menos um caso de casamento infantil desde 2015. O ano passado regista o maior número alguma vez de situações reportadas (202).

“Numa situação de crime de violência doméstica ou tráfico, por vezes, por trás havia uma situação de casamento infantil mas no crime não era considerado"

Francisca Magano, UNICEF Portugal

Francisca Magano recusa que seja linear que este número signifique necessariamente um aumento do fenómeno, ainda que “seja muito preocupante”. “Temos que considerar que há um crescimento na sensibilização para estas situações, mais registos e uma maior consciência. Muitas vezes são situações em que há muitos crimes a acontecer ao mesmo tempo”, diz. “Numa situação de crime de violência doméstica ou tráfico, por vezes, por trás havia uma situação de casamento infantil, mas no crime não era considerado. Precisamos de compreender estes detalhes e perceber as explicações: é o aumento da pobreza que está a fazer com que famílias incentivem a união”, questiona. Os dados confirmam o fenómeno, agora é “urgente entendê-lo em maior escala”. “Este é um aumento porque há mais casos reportados ou porque efetivamente o fenómeno está a ficar mais grave?”

Também Nuno Teixeira evita encontrar explicações para esta evolução, mas acredita que a pandemia pode ajudar a explicar. “O impacto do confinamento afetou muito o trabalho da prevenção, principalmente o trabalho de proximidade, com crianças e jovens em contexto escolar. Por outro lado, também isolou muito as pessoas, os grupos de pessoas que já estão por si marginalizadas e que se encontram em situação de desigualdade. A exclusão social é mais evidente.”

“Pais são maiores incentivadores”

É frequente os pais ou tutores legais dos menos são muitas vezes os “maiores incentivadores” do matrimónio, revelam as conclusões do inquérito. “São as famílias que potenciam muito estes casamentos, daí a importância do contexto escolar na prevenção também”, diz Nuno Teixeira. “São os pais os principais responsáveis por incentivar o casamento, segue-se depois o sistema patriarcal que impõe o casamento como destino”, acrescenta Francisca Magano.

“São consequências gigantes que condicionam em termos escolares, de liberdade sexual, há gravidezes precoces, situações de abuso sexual…”

Nuno Teixeira, APF

Os motivos apresentados para a concretização do casamento passam pela pertença a um “grupo étnico, cultural, religioso, ou casta” (374 casos, 62% das pessoas afetadas são raparigas), pelas normas sociais e restritivas habitualmente associados ao papel da mulher que deve casar-se cedo (142 casos, 98% são raparigas), por necessidade de controlar comportamentos sexuais (130 casos, 100% raparigas) ou desejo de independência e autonomia (107 casos, 62% raparigas) e ainda com a garantia que a propriedade e a riqueza permanecem na família (102 casos, 63% raparigas).

Depois, sobretudo através de pressão familiar e afastando os menores da escola, as uniões concretizam-se seja num casamento ou por união equiparável. As consequências mais comuns são o abandono escolar, a gravidez precoce e o controlo e isolamento social.

“São consequências gigantes que condicionam em termos escolares, de liberdade sexual, há gravidezes precoces, situações de abuso sexual…”, enumera Nuno Teixeira. “Isto são violações de direitos humanos, queremos que estas crianças cresçam e se desenvolvam plenamente, o casamento corta todas essas possibilidades”, acrescenta ainda Francisca Magano.

Na amostra em causa, a disparidade entre os cônjuges não é muito grande - “três ou quatro anos, com um caso ou outro onde a discrepância é muito grande” -, no entanto, continua Nuno Teixeira, “não quer dizer que não existam casos de união entre crianças com pessoas adultas.”

Proibir casamento antes dos 18

“Estamos a falar de situações com crianças desde os 10 anos, que é muito preocupante. Com estes dados nas mãos não podemos não agir, é preciso uma ação por parte do Estado na proteção das meninas e raparigas por que a maioria das vítimas são do género feminino”, sublinha Francisca Magano. Uma das primeiras principais recomendações deste grupo de trabalho passa por excluir da legislação portuguesa a exceção que permite que um jovem de 16 ou 17 anos contraia matrimónio com a autorização dos pais. “Aos 16 ou aos 17 são crianças mesmo perante a lei. Uma série de países já acabaram com essa permissão e Portugal deve seguir essa linha”, continua, lembrando que o mesmo contexto que autoriza a união é, muitas vezes, o mesmo que a incentiva.

"Quando há uma menina afastada do sistema educativo formal toda a sociedade perde”

Nuno Teixeira, APF

Outro dos pedidos do grupo de trabalho passa pela avaliação nacional do fenómeno, assim como o casamento infantil passar a considerado como ‘situação de perigo’ pela CPCJ, obrigado ao seu registo sempre que aconteça. “Algo que até agora ainda não acontece”, vinca a responsável da UNICEF Portugal.

“O mais importante é que exista uma intervenção e política integrada, de forma a combater e prevenir de forma intersecional, multifacetada e multidirecional. Ter um plano articulado com as várias áreas da sociedade e chamar a este trabalho mais pessoas além das potenciais vítimas”, defende Nuno Teixeira. “Temos que envolver os rapazes, os homens, a sociedade, temos de envolver a sociedade e desocultar o fenómeno”, continua, defendendo a importância do contexto escolar nestas situações. “Passa por possibilitar o acesso à saúde sexual redutiva, educação sexual, a uma educação integra e abrangente sobre a sexualidade que permitam o desenvolvimento de competências para lidar com os riscos, tal como se faz na disciplina de cidadania e desenvolvimento. Quando há uma menina afastada do sistema educativo formal toda a sociedade perde.”

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10/11/2024 15:06:40