Trabalho envenenou-lhe os pulmões, mas juízes dizem que patrão não tem culpa
Um motorista de transporte de combustíveis teve de se submeter a um transplante pulmonar depois de década e meia de serviço. Apesar de ter ficado provado em tribunal que a patologia que desenvolveu se deveu à sua actividade profissional, o Tribunal da Relação de Lisboa ilibou os patrões do trabalhador, que reivindicava uma indemnização de 410 mil euros.
Depois de ter estado ao serviço da Shell e da Repsol, Eurico, hoje com 50 anos e a morar na Margem Sul, passou a trabalhar para o grupo Paulo Duarte, uma das maiores empresas de transporte de mercadorias em Portugal, com uma frota de 1300 veículos e um volume de negócios na ordem dos 120 milhões de euros. Até essa altura jogava futebol nos tempos livres. Deixou de abastecer postos de combustível, cujos tanques no subsolo dispõem de mecanismos de extracção dos gases e vapores, e passou a trabalhar com depósitos de particulares, cujo abastecimento o obrigava a contactar mais de perto com o gasóleo que transportava no camião-cisterna.
“Entre 2009 e 2014 abastecia cerca de dez depósitos de clientes particulares por dia, tendo cada abastecimento a duração de 20 minutos, acarretando a necessidade de se aproximar da entrada do depósito no início e próximo do período de conclusão do abastecimento para evitar potenciais derrames”, descreve o tribunal na sentença.
Sucede que o equipamento de protecção individual standart exigido por lei para o exercício destas funções inclui botas, capacete, luvas, viseiras e aventais, mas não máscara respiratória que evite a inalação de gases e vapores tóxicos. Supostamente o gasóleo não emana, ao contrário da gasolina, gases perigosos.
Em finais de 2014, tinham os filhos gémeos dois anos, surgiram-lhe os primeiros sinais do pesadelo, uma infecção respiratória que passou a pneumonia.
Ficou quatro meses de baixa mas regressou ao serviço, mesmo depois de lhe ter sido diagnosticada uma fibrose pulmonar. Os pulmões tinham começado a morrer. Em Setembro de 2016 o cansaço extremo e a dificuldade em respirar atiraram-no outra vez para casa e no início do ano seguinte foi-lhe prescrita terapia de oxigénio 24 horas por dia. Seguiu-se um internamento hospitalar e uma intervenção cirúrgica.
Há cinco anos Eurico recebeu dois pulmões novos. O Departamento de Protecção contra os Riscos Profissionais da Segurança Social fixou-lhe uma incapacidade de 100% e uma pensão de 528,84 euros, correspondente ao salário-base que auferia, e que quando ainda conseguia conduzir o camião-cisterna engordava com ajudas de custo, subsídio de risco e horas extraordinárias. Entre 2017 e 2020 recebeu um subsídio por doença profissional de 614 euros.
Não existem quaisquer dúvidas médicas sobre a origem da doença. “Decorreu da exposição do trabalhador a hidrocarbonetos derivados do petróleo devido à actividade profissional que exerceu ao longo de 16 anos”, escreve os três juízes do Tribunal da Relação de Lisboa responsáveis pela decisão proferida no início deste mês, baseando-se nos relatórios clínicos que chegaram ao processo judicial.
Porém, não estando o uso de máscara previsto para os tripulantes dos veículos que transportam gasóleo, por este combustível não ter efeitos tóxicos por inalação, o patrão acabou por ser desresponsabillizado pela justiça.
“A exposição a hidrocarbonetos derivados do petróleo a que se mostra sujeito o motorista do camião-cisterna de transporte de gasóleo não é valorada pelo legislador nacional e da União Europeia como um risco para a segurança e saúde do trabalhador, que deva ser eliminado, ou minimizado, com a atribuição de uma máscara respiratória”, explica o acórdão.
A transportadora de combustíveis alegou, aliás, que em 50 anos de actividade nunca se tinha deparado com um caso destes, fosse com um trabalhador seu ou alguém de outra companhia. Foi também provado em tribunal que o motorista ficou a padecer de vários condicionamentos físicos depois do transplante. Eurico queixa-se de não poder jogar à bola, passear, brincar ou simplesmente pegar ao colo dos filhos. Devido à medicação que tem de tomar teme que os amigos com quem acamaradava antes lhe transmitam vírus que lhe provoquem infecções. Angustia-o a perspectiva de poder vir a morrer antes de os filhos se tornarem adultos.
De nada valeu ao advogado do trabalhador, Afonso Duarte, alegar que as fichas de segurança do gasóleo agrícola e para aquecimento, que eram fornecidos à transportadora de mercadorias pela Repsol, diziam tratar-se de produtos “nocivos por inalação’", “suspeitos de provocar cancro", e susceptíveis de "afectar os órgãos após exposição prolongada ou repetida", além de “mortais por ingestão e penetração nas vias respiratórias".
O representante legal do motorista equaciona agora apresentar um recurso excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça, dada a relevância social que entende que o caso tem. "Foram dados como provados factos suficientes para se concluir pela responsabilidade agravada do empregador, por violação do dever de avaliação e prevenção do risco decorrente da exposição ao gasóleo para sua a saúde", argumenta.
"O acórdão viola a garantia constitucional de trabalho em condições de higiene, segurança e saúde, abrindo a porta a interpretações do direito que desprotegem o trabalhador e desresponsabilizam o empregador do seu dever fundamental de garantir a segurança e saúde do trabalhador, o que se traduz num retrocesso social de décadas", conclui.
Os desembargadores da Relação de Lisboa, esses foram taxativos: "Importa não esquecer que qualquer actividade laboral comporta riscos".