Tribunal decide que caução de rendas está isenta de IRS
“A caução não é verdadeiramente um rendimento, nem na perspetiva civilista, nem na perspetiva económica, sendo que não se integra verdadeiramente no património do seu beneficiário” e, nesse sentido, não deverá incidir sobre ela IRS. O entendimento é do tribunal arbitral e vai totalmente contra aquela que tem sido a orientação da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) nesta matéria. A decisão foi proferida no âmbito de um processo interposto no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e um dos árbitros votou vencido, mas o contribuinte acabou mesmo por sair ganhador, recuperando imposto no valor de 180 mil euros.
Em causa estava uma empresa agrícola proprietária de um prédio rústico que fez um contrato de arrendamento do mesmo. Com o contrato recebeu uma caução de cerca de 570 euros, tendo ficado acordado que, no final do contrato, e se não houvesse algum tipo de incumprimento do inquilino, a caução seria devolvida.
A dita empresa foi, entretanto, alvo de uma inspeção por parte do Fisco que detetou que o valor da caução não tinha sido incluído na declaração de IRS desse ano ao contrário do que, de acordo com o entendimento da AT, devia ter feito. O resultado foi uma liquidação adicional exigindo ao contribuinte mais 160 mil euros de imposto, acrescidos de juros compensatórios no valor de 21 mil euros.
Basicamente, o Fisco entende que o valor recebido a título de caução configura um rendimento predial sujeito a IRS, devendo aplicar-se-lhe a taxa de 28% aplicável às rendas. Já o contribuinte defendeu que a caução não está abrangida pelas normas de incidência do IRS e decidiu levar a questão a tribunal, que acabaria por lhe dar razão.
Os árbitros – Francisco Carvalho Furtado, Nuno Maldonado Sousa e Guilherme W. d’Oliveira Martins, que votou vencido – concluíram que “a caução não é verdadeiramente um rendimento, nem na perspetiva civilista, nem na perspetiva económica”. Desde logo porque “não se integra verdadeiramente no património do seu beneficiário” e, para além de um depósito em dinheiro “pode ser prestada por meio de títulos de crédito, pedras ou metais preciosos, ou por penhor, hipoteca ou fiança bancária”, prosseguem, citando o Código Civil. “Mesmo quando é prestada de forma pecuniária, não se trata de um verdadeiro recebimento de dinheiro, mas antes de ‘depósito de dinheiro’”.
De 2018 para cá, há várias informações vinculativas prestadas pelos serviços da AT que concluem sempre que quem recebe caução tem mesmo de pagar IRS sobre ela, mesmo que depois a venha a devolver. Em junho do ano passado, o Fisco optou por elaborar um ofício circulado, assinado pela subdiretora-geral Helena Pegado Martins, com o objetivo de “harmonizar procedimentos”.
Direito fiscal vs direito civil
O ofício circulado refere que para efeitos fiscais, o conceito de renda é mais amplo do que aquele que se aplica no direito civil. Quer isto dizer que os rendimentos prediais incluem, não só as rendas propriamente ditas, como “os serviços relacionados” com “a cedência do uso do prédio ou de parte dele”. Desta forma, a caução que o proprietário recebe é ela própria um rendimento, na medida, até, que se traduz num “acréscimo de valor ao património de quem cede o uso ou o gozo temporário do bem locado”. Se for devolvida no final, “é passível de ser considerada um gasto suportado e pago para o locador/senhorio, no anexo F da declaração modelo 3 do ano em que ocorrer a devolução”.
A decisão arbitral contraria totalmente este entendimento, mas também não ignora o ofício circulado. Diz mesmo, aliás, que o mesmo viola a lei “por ofensa do princípio da igualdade e da capacidade contributiva” previsto na Constituição da República, “ao qual a AT se encontra subordinada em toda a sua atuação”. Os árbitros dão aqui um exemplo: se no fim do contrato o senhorio já não quisesse arrendar o imóvel outra vez, “acabaria por ser tributado pela caução que tinha devolvido”.
O árbitro que votou vencido, Guilherme W. d’Oliveira Martins, deu razão à AT, considerando que para efeitos de IRS o conceito de renda tem uma “amplitude maior” do que a que resulta do direito civil, englobando todas “as importâncias relativas à cedência do uso do prédio ou de parte dele e aos serviços relacionados com aquela cedência”, incluindo-se aqui a caução, a qual é “um acréscimo de valor ao património” de quem a recebe.
A decisão arbitral é de outubro passado e já transitou em julgado sem que o Fisco tenha recorrido, o que poderia ter feito para o Tribunal Central Administrativo invocando aspetos formais relacionados com o processo; para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), invocando a existência de jurisprudência contraditória ou para o Constitucional, com argumentos de inconstitucionalidade.