Atendimento presencial nos serviços públicos foi “fortemente” afetado pela pandemia, alerta Provedora de Justiça
O atendimento com marcação ganhou “considerável expressão” nos últimos anos, ultrapassando atualmente em quase todas as entidades de serviços públicos o número de atendimentos sem marcação. Esta prática, acentuada no pós-pandemia, afeta a vida dos cidadãos, não permite melhor resposta a situações de urgência e de especial vulnerabilidade, e alterou a perceção da disponibilidade dos serviços públicos. O alerta é da Provedoria de Justiça e consta do relatório sobre o atendimento nos serviços públicos no pós-pandemia publicado nesta terça-feira, 20 de fevereiro. O documento dá conta de que, após a pandemia, o Governo emitiu uma orientação para que todos os serviços disponibilizassem pelo menos metade da sua capacidade de atendimento presencial para o atendimento sem marcação, mas há entidades que não cumprem esta orientação, como o Instituto da Segurança Social (ISS), onde, em quatro anos, os atendimentos com marcação mais do que quadruplicaram para 1,3 milhões.
A Provedora Maria Lúcia Amaral apela à necessidade de garantir um maior equilíbrio entre o atendimento presencial com e sem marcação e avisa também que “o acesso aos serviços tem, nos tempos de espera prolongados, a face mais visível” e podem ter outras consequências graves como favorecer a existência de redes de facilitação – cujos alvos são, não raramente, os cidadãos mais vulneráveis, incluindo os estrangeiros – e gerar conflitos entre os que aguardam pelo atendimento.
“Embora não caiba ao Provedor de Justiça estabelecer o modelo concreto de relacionamento de cada serviço público com os cidadãos, há princípios basilares que devem ser, em todos os casos, respeitados. A abertura, a acessibilidade e a transparência dos serviços públicos são verdadeiras exigências constitucionais, importando ainda ter presente que uma Administração de ‘porta aberta’ é sinónimo da imprescindível presença do Estado no território”, salienta a Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral.
De acordo com o documento, as dificuldades relacionadas com o atendimento prestado pelos serviços públicos são, desde há muito, objeto de atenção da Provedoria de Justiça. “Todavia, a pandemia de 2020 e 2021 e a necessidade de confinamento da população alteraram profundamente as práticas existentes, e, passada a emergência sanitária, muitas dúvidas e queixas sobrevieram sobre como estão a ser retomados os canais entre os serviços públicos e os cidadãos”, frisa a Provedoria.
É com base neste enquadramento que a Provedoria de Justiça realizou, em 2023, uma análise das práticas de atendimento ao público, que incluiu visitas ao terreno, realizadas sem pré-aviso. A análise conclui que o atendimento presencial nos serviços públicos foi “fortemente” afetado pela pandemia.
Dá aqui os exemplos da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), com os atendimentos anuais com marcação a aumentarem 27%, de 65.064 em 2019 para 82.691 em 2022, e, inversamente, a diminuírem em mais de metade nos casos sem marcação, 15.592 para 4.628, no mesmo período. Já no ISS, os atendimentos com marcação dispararam de 294.634, em 2018, para 1.274.179, em 2022, um aumento de 333%. Em sentido contrário, diminuíram para menos de metade os atendimentos sem marcação: de 8.561.741 para 4.123.487.
No relatório agora publicado, Maria Lúcia Amaral conclui, pois, que a tendência da marcação prévia se acentuou com a pandemia e “veio para ficar”: são cada vez mais alargados os períodos de tempo e recursos destinados ao atendimento sujeito a marcação prévia. Esta prática, alerta, “tem um impacto sistémico na relação da Administração com o público porque afeta a vida dos cidadãos. Também alterou a perceção da disponibilidade dos serviços públicos, e o respetivo funcionamento”.
O documento dá conta de que “no universo do atendimento presencial, o atendimento com marcação ganhou considerável expressão nos últimos anos, ultrapassando atualmente, em quase todas as entidades estudadas, o número de atendimentos sem marcação”.
Esta circunstância, diz, tem “considerável” impacto na relação dos cidadãos com a Administração, mas também na perceção coletiva da disponibilidade e modo de presença dos serviços no território.
Maria Lúcia Amaral apela à necessidade de garantir um maior equilíbrio entre o atendimento presencial com e sem marcação, bem como ao reforço da capacidade de resposta dos serviços públicos, na realização de atendimento presencial com e sem marcação, nos grandes centros urbanos. O relatório salienta aqui que, após a pandemia, o Governo emitiu uma orientação para que todos os serviços disponibilizassem pelo menos metade da sua capacidade de atendimento presencial para o atendimento sem marcação.
“No entanto, no levantamento efetuado, a Provedoria de Justiça verificou que algumas entidades não cumprem esta orientação”, avança, destacando o exemplo do Instituto da Segurança Social: “No ISS, a relação entre o atendimento com e sem marcação é complexa, uma vez que vários serviços fazem exclusivamente atendimento por marcação. Só num cômputo nacional pode considerar-se cumprida a referida orientação. Existem profundas assimetrias regionais na celeridade e acesso ao atendimento presencial sem marcação”.
Para a Provedora de Justiça, o atendimento presencial com marcação deve tendencialmente organizar-se como uma faculdade ao dispor dos cidadãos e deve decorrer de exigências de interesse público.
O relatório conclui que o contexto territorial e populacional em que se inserem os serviços “afeta significativamente” o modo pelo qual decorre o atendimento ao público, tendo encontrado “assimetrias regionais significativas”, quer no que toca à flexibilidade para o atendimento sem marcação, quer quanto ao conhecimento efetivo das especificidades de atendimento dos vários postos.
Maria Lúcia Amaral considera, por isso, ser “desejável, para um melhor serviço ao cidadão, um mais adequado equilíbrio entre o atendimento com e sem marcação, face às dificuldades de resposta constatadas”, nomeadamente filas antes da abertura dos serviços; esgotamento das vagas para atendimento sem marcação e para o atendimento com marcação; reclamações pela impossibilidade/dificuldade de obter atendimento sem marcação. Ou seja, a maior parte do tempo e dos recursos é reservada para as marcações e quem chega sem agendamento arrisca a longas filas para depois nem conseguir senha.
A Provedoria de Justiça detetou ainda a necessidade de uma “maior e mais eficaz” divulgação pública dos casos em que é necessária marcação para o atendimento, com a “clara identificação” dos serviços em que esta é exigida.
O relatório salienta também que, nas entidades selecionadas, a definição dos parâmetros do atendimento ao público (horários, definição da duração dos slots, definição do arco temporal para o agendamento, valências de atendimento) é em geral centralizada, com algum espaço para uma autonomia de gestão pelos serviços locais.
Na análise aos dados relativos aos tempos médios de espera, a Provedoria de Justiça detetou que em alguns locais e serviços, as senhas para atendimento sem marcação para o próprio dia esgotam em escassos minutos após a abertura dos serviços. Tal, frisa, “induz à formação de longas filas antes do horário de abertura para a obtenção de senhas, que deixam de estar disponíveis durante praticamente todo o restante horário de atendimento”. Esta circunstância, conclui, “impede que se possa fazer qualquer leitura pertinente a partir do tempo médio de espera nesses serviços, que retrata apenas a situação de quem conseguiu obter uma senha”.
Maria Lúcia Amaral recomenda a adoção de práticas de gestão da afluência aos serviços públicos que diminuam os tempos de espera, assim contribuindo ainda para prevenir o aparecimento de redes de facilitação, bem como a necessidade de assegurar de forma generalizada informação quanto ao tempo de espera previsto até ao atendimento ou de que a capacidade de atendimento se encontra esgotada.
Outras recomendações passam por “garantir a completude, fiabilidade e adequada divulgação dos dados estatísticos quanto aos tempos de espera” e aferir o tempo real despendido pelos cidadãos até ao atendimento, considerando designadamente as filas de espera ou as chamadas telefónicas não atendidas.
O relatório alerta ainda para a falta de “clareza e atualização” na própria informação sobre o atendimento, realçando que é frequentemente “desordenada e pouco sistematizada, sendo, em alguns casos, desatualizada e, logo, não fiável”, o que, conclui, ” confusão e de insegurança nos cidadãos”.
A Provedoria destaca que na Segurança Social, o ‘site’ oficial “não presta informação segura, clara e transparente sobre os atos que, em cada serviço, exigem ou não agendamento prévio”, acrescentando que a informação sobre o atendimento se encontra “dispersa pelas páginas de cada serviço” e “não é totalmente clara quanto à possibilidade de atendimento por videoconferência no IGFSS [Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social]”.
Na análise, a Provedoria de Justiça conclui ainda que o telefone e os sites oficiais são os meios mais usados, sendo que o telefone, frisa, nem sempre permite esclarecer dúvidas ou obter “informações seguras” e nos sites “a pesquisa é pouco amigável” e tem muitas omissões.
Também o uso da tecnologia, apesar das “inegáveis vantagens e possibilidades de flexibilidade, eficiência e uniformidade”, é alvo de críticas: “as soluções de atendimento com recurso a tecnologia apresentam limitações que nem sempre são facilmente percetíveis, por não serem anunciadas de forma clara”.