Abertos 394 inquéritos-crime a lares de idosos em 2023. Segurança Social encerrou 118
Em 2023, entre Janeiro e Dezembro, foram instaurados 394 inquéritos-crime por suspeitas do crime de maus tratos em lares de idosos no Departamento Central de investigação e Acção Penal (DCIAP). Nesse mesmo período, foram encerradas 118 destas Estruturas Residenciais para Idosos (ERPI).
A abertura de um inquérito-crime a um lar de idosos no DCIAP pode ser precedida de uma denúncia anónima, de familiares dos idosos ou ainda dos cuidadores ou funcionários do lar. Seguem-se, habitualmente, as buscas policiais, a inquirição de testemunhas e outras diligências que justificam a abertura de um processo de investigação. Mas, a não ser que uma sinalização seja feita ao Instituto de Segurança Social, o lar investigado pode não ser encerrado.
Assim, os primeiros dados são da Procuradoria-Geral da República (PGR) e dizem respeito aos processos que passaram a estar centralizados no DCIAP, a partir de Março de 2023, data em que a procuradora-geral da República, Lucília Gago, determinou, por despacho, que a frequência e a gravidade destes crimes contra os idosos, qualquer que fosse o local, justificavam a sua prioridade e que estes fossem investigados no departamento central que investiga a criminalidade violenta e de especial complexidade, em Lisboa.
Os segundos dados são do Instituto da Segurança Social (ISS), que confirmou ao PÚBLICO ter havido um aumento do número de ordens de encerramento de lares para os (já referidos) 118 em 2023: tinham sido 117 em 2022 e 98 em 2021. Quando os idosos não podem ali permanecer mais tempo, os lares são encerrados com carácter de urgência: em 2023 houve 27 casos desses, e em 2022 foram 21. As inspecções de técnicos do ISS aos lares para vigilância da qualidade e do cumprimento das regras baixaram de 674 em 2022 para 537 no ano passado (dados até Novembro).
Questionado sobre o diferencial entre processos criminais abertos e residências para idosos com ordens de encerramento, o gabinete de imprensa da PGR refere que a informação por si prestada “diz respeito a inquéritos iniciados nos diversos departamentos do Ministério Público e, posteriormente, remetidos ao DCIAP”, antes de acrescentar que “relativamente ao encerramento das instituições”, se trata “de uma medida de carácter administrativo que pode, além do mais, não se enquadrar no âmbito dos processos-crime”. E conclui “que podem existir processos-crime por maus tratos e crimes conexos em que não estão em causa as condições de funcionamento dos lares”.
Os inquéritos que, em Março do ano passado, passaram a estar todos no DCIAP têm por objecto “maus tratos a idosos nos lares, licenciados ou não licenciados” ou ainda “apropriação indevida dos seus rendimentos e património” ou “outras condutas criminosas associadas ao funcionamento” destas estruturas, estando também abrangidas as infracções de natureza económico-financeira.
Até essa altura, não era reunida informação sobre processos exclusivos a maus tratos em lares: os crimes de maus tratos ou negligência contra idosos não surgiam, nas estatísticas da Justiça, discriminados de acordo com a actividade desenvolvida pelos suspeitos, não sendo possível saber se os visados eram proprietários ou funcionários de lares, explica a PGR.
Também contactado, o procurador da República, José Paulo Ribeiro de Albuquerque, defende que “não pode estabelecer-se uma relação” entre processos abertos por procuradores e lares encerrados por proposta de inspectores da Segurança Social. Pode dar-se o caso de haver vários inquéritos para um só lar, se existir mais de uma queixa contra essa estrutura residencial; pode também acontecer os crimes em investigação serem apenas imputados a um funcionário do lar, por exemplo, ou a um utente, se este, como aconteceu num caso há uns anos, importunar outras pessoas cuidadas na mesma residência, recorda o magistrado; pode ainda ser um caso relativo a um utente que reagiu violentamente contra os cuidadores.
Autor de bibliografia de referência, em publicações do Centro de Estudos Judiciários, incluindo na área da protecção dos idosos, José Paulo Ribeiro de Albuquerque diz que “quando abre um inquérito, o Ministério Público não tem responsabilidade, no âmbito desse inquérito, nem de impulsionar a averiguação das condições do lar em causa, nem de promover o seu encerramento, competência que é exclusiva da Segurança Social”. E sugere: "[O MP] pode comunicar à Segurança Social, se o entender.”
Não deveria sempre fazê-lo? “Terá que haver situações que justifiquem a existência de protocolos que, do meu conhecimento, não existem. Estes são processos de algum melindre, em segredo de justiça. Essa comunicação pode não ser sequer prioritária. Mas poderá haver um protocolo para a sinalização” automática de um caso à Segurança Social, admite.
O magistrado, actualmente em funções no Supremo Tribunal, confirma que estes crimes são de difícil prova. “Há que provar um nexo de causalidade entre negligência e dolo e o resultado na saúde e integridade física dos utentes. Existem dificuldades de estabelecer essa ligação de omissão dos cuidados previstos porque há uma debilidade acrescida. As pessoas, nalgumas circunstâncias, já estão em grande vulnerabilidade."
No mesmo sentido, Teresa Rodrigues, professora da Faculdade de Ciências, Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, diz ter a percepção dessas "dificuldades nestes processos”. E explica: “Muitas vezes quando os inquéritos são baseados em queixas da população idosa, pode alegar-se que as pessoas estão de má-fé por não quererem estar institucionalizadas, e que estão a acusar a instituição de uma coisa que não é verdade”.
A professora e autora do ensaio Envelhecimento e Políticas de Saúde da Fundação Francisco Manuel dos Santos (Maio 2018) fala também da eventualidade de a investigação ser aberta por testemunhos de funcionários que já saíram do lar. “Nestes casos, a defesa dos denunciados pode construir um discurso segundo o qual esta pessoa, que ali trabalhou, apenas lançou acusações infundadas por ter saído zangada”, acrescenta.
Teresa Rodrigues não exclui a possibilidade de existirem mais casos de maus tratos ou negligência do que os conhecidos através destes 394 processos: “Por vezes, também, os funcionários são coniventes porque vivem ali e precisam de um emprego”. E aí, os maus tratos e a negligência ou omissão de cuidados devidos, podem perdurar, indica o procurador Ribeiro de Albuquerque, porque “às vezes isso acontece com a cumplicidade dos familiares, o que é terrível, mas é verdade”.
Até Fevereiro deste ano, nenhuma acusação tinha sido proferida, "sendo de referir", como nota a PGR, "que a esmagadora maioria destes processos tem poucos meses". O gabinete de imprensa acrescenta ao PÚBLICO que "em 62 inquéritos foi proferido despacho final de arquivamento, com fundamento em insuficiência de indícios (...) e que 88 dos referidos 394 inquéritos foram juntos a outros processos". Assim, também no mês passado, permaneciam em investigação 244 inquéritos (alguns com outros apensados).
Alguns comunicados divulgados no site da PGR, ao longo deste ano, descrevem o contexto em que foram iniciados investigações: uma situação, em Sintra, denunciada pela filha de uma utente, “tendo a ocorrência de maus tratos sido corroborada pelo depoimento de testemunhas que exerceram funções na instituição”, lê-se; outro caso, na zona do Porto, com origem em denúncia igualmente apresentada pela filha de um utente, com os maus tratos sobre vários idosos a serem corroborados pela Autoridade de Saúde Pública, entre outras entidades, em vistoria conjunta com inspectores da Segurança Social.
No arquivo do MP, que pode ser consultado online também estão indicadas buscas num lar, em Vendas Novas, distrito de Évora, ao qual o ISS dera ordens de encerramento em 2019, mas que ainda se mantinha em funcionamento até à data da operação – 28 de Dezembro de 2023 – motivada pela denúncia apresentada pela Unidade de Cuidados Paliativos do Instituto São João de Deus, em Montemor-o-Novo.