“Há prisões que seriam impróprias até para animais”

Em fevereiro deste ano, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) condenou o Estado português a pagar 8300 euros a um recluso, além de 250 euros em custas e outras despesas. O caso reportava às más condições prisionais, mas também à falta de  recurso interno efetivo na cadeia para protestar contra a sua situação de detenção. O caso de Marques Ângelo, o recluso em causa, é o mais recente. Mas Portugal acumula sucessivas condenações e multas nos últimos anos, estimando-se que o valor que já saiu dos cofres do Estado (à conta do incumprimento) ronde um milhão de euros.

 

Neste caso, o TEDH considerou que a queixa revelou uma violação do artigo 13.º da Convenção dos Direitos Humanos no que respeita à falta de um recurso efetivo de queixa sobre condições inadequadas de detenção. Mas apontava, mais uma vez, um estado de degradação das cadeias há muito por resolver. Segundo o acórdão, citado pela agência Lusa, havia “falta de ar fresco, humidade, falta ou quantidade insuficiente de alimentos, má qualidade dos alimentos, cela com bolor ou suja, falta de privacidade nos chuveiros, infestação da cela com insetos e roedores, falta de produtos de limpeza, sobrelotação e temperatura inadequada”. Estas eram as queixas de Marques Ângelo, 58 anos, que esteve detido no Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL) mais de 11 meses, entre 2022 e 2023. De resto, é dali oriunda a maior parte das queixas e consequentes condenações. Alguns desses casos têm sido tutelados pelo advogado Vítor Carreto, certo de que “o Estado português vai ser condenado mais vezes”. A 18 de janeiro, o mesmo Tribunal condenara Portugal em mais de 36 mil euros por condições inadequadas de detenção, falta de recurso e duração excessiva do processo penal na justiça portuguesa num caso interposto por três reclusos.

 

E passados poucos dias o TEDH anunciou que Portugal terá de pagar 10 indemnizações a outros tantos reclusos. Os montantes a liquidar pelo Estado variam entre os 4500 e os 15.400 euros e, tudo somado, atinge um total de 159 mil euros.

 

 Prisões, creches e ‘asilos’: um mau cartão de visita

Há anos que a Associação Portuguesa de Apoio aos Reclusos (APAR) chama a atenção para o estado de degradação das cadeias portuguesas e para a necessidade de reforma de todo o sistema prisional. “Há um velho ditado de um grande pensador que nos diz que só conhecemos os Estados e os países quando visitamos as creches, os asilos e as cadeias. Ora, olhando para Portugal, dá bem a impressão do quanto atrasados nós estamos comparativamente a outros países”, afirma ao DN Vítor Ilharco, secretário-geral da APAR. “Com duas ou três exceções, as nossas cadeias são uma vergonha”, começando desde logo pelo EPL, situado numa zona nobre da cidade, ao cimo do Parque Eduardo VII. Vítor Ilharco descreve com pormenor as razões que têm levado o Estado a ser condenado: “Essa cadeia seria imprópria até para ter animais. São celas sem vidros nas janelas, fios elétricos descarnados, água a escorrer pelas paredes, uma cama de ferro que dista 80 cm da parede. Ao fundo da cama deveria ter um lavatório e uma sanita, mas a maior parte já só tem o buraco. Em muitos casos tem de ser tapado o buraco à noite com uma garrafa de água de litro e meio, para os ratos não saírem. Não tem nenhuma divisória da casa de banho para a cama. O problema (maior) é que essas celas individuais agora têm duas pessoas, que estão fechadas 18 ou 19 horas por dia, e que têm de fazer as necessidades fisiológicas em frente um do outro, sem nenhuma divisória”.

 

Além das condições físicas de a maior parte das cadeias coincidirem com este retrato, segundo o secretário-geral da APAR juntam-se outros problemas: a alimentação dos reclusos, por exemplo. “O estado paga 3,50 euros pelas quatro refeições de cada um deles. Isso dá 80 cêntimos por cada refeição. Ora, os reclusos queixam-se, principalmente os estrangeiros. Como o Tribunal Europeu tem sempre em conta os direitos humanos, vendo o que não existe, pune Portugal. Não há outra forma.”

 

Um dos últimos reclusos que apresentou queixa era um sem-abrigo romeno. O Estado foi condenado a pagar-lhe 16 ou 17 mil euros, porque ali, na prisão, “passava pior do que quando era sem-abrigo”.

 

O dobro dos presos, o pesado quadro de pessoal

Há 30 anos que a APAR sugere aos sucessivos governos “para venderem as cadeias que estão em zonas nobres das cidades. Por exemplo, com o dinheiro da venda do EPL dava para construir 18 cadeias no país, que são as necessárias”. Mas a verdade é que o Estado vendeu o EPL. “Mas como não tinha onde pôr os reclusos, está há que tempos a pagar renda e a fazer obras.”

 

Mas há vários outros casos de cadeias em zonas nobres: Coimbra, Guimarães, Guarda e Leiria são exemplos de edifícios que, segundo a APAR, poderiam ser alienados em troca de melhores condições. A última cadeia construída em Portugal foi a de Angra do Heroísmo, nos Açores. “O problema é que quando se vê as contas de quanto custa construir uma cadeia, cada cela fica mais cara do que uma vivenda de luxo”, afirma Vítor Ilharco.

 

A APAR mantém contacto permanente com a tutela, e por isso não tem dúvidas de que “os serviços prisionais estão no fim da pirâmide para o ministro das Finanças de um país pobre”. Quando chegou a pandemia, a associação pediu ao Estado que aumentasse a verba destinada à manutenção das cadeias, que não tinham máscaras, gel ou lixívia para desinfetar as celas. “Sabe o que aconteceu? Reduziram 60 milhões de euros, sendo que 80% dessa verba é gasta em salários”, afirma Vítor Ilharco. “Nós temos 12.500 presos, mas a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais tem 8700 funcionários. Toda a gente sabe que se fosse cumprida a lei de isenção de pena só deveria haver 6500 presos. E não havia como explicar isto. Não me esqueço de que, nessa altura, entrevistado numa TV, o partido PAN justificou que votara a favor do Orçamento do Estado porque conseguiram libertar 30 milhões de euros para o bem-estar animal. Este é o nosso país”, sustenta aquele responsável, certo de que “neste momento a estrutura do sistema prisional não tem ponta por onde se lhe pegue”. “O nosso número de telefone está junto a todas as cabines das cadeias. Recebemos centenas de chamadas diárias”, enfatiza o responsável da APAR, para quem a reforma tem de ser profunda: “7,6% são presos por homicídio, nas diversas formas. 7,8% estão presos por conduzir sem carta de condução. Outros 7% estão presos por não terem dinheiro para pagar as multas, nos casos de condenação remível. Vão para a cadeia e estão ali seis ou sete meses. Nós já propusemos que quem fosse apanhado a conduzir sem carta ficava em liberdade mas a fazer trabalho comunitário. O mesmo para quem não pagou as multas. Isso tornaria tudo mais fácil”, considera. Porém, dá o exemplo do Algarve, onde há três cadeias (Olhão, Silves e Faro). No seu conjunto, “essas cadeias têm mais guardas do que presos. Bastava uma”.

 

“Temos 49 cadeias e querem abrir mais, enquanto na Europa civilizada estão todos a fechar cadeias. Portugal é o país com mais baixa taxa de criminalidade da Europa e é o país que tem mais presos e onde as penas cumpridas são as mais elevadas”, exemplifica. Ainda assim, considera que os últimos diretores-gerais “têm feito um trabalho fantástico”. E ainda encontra coisas boas no sistema, como foi o caso do plano contra a covid-19. “O problema é que não têm dinheiro, não podem fazer mais.”

 

Feitas as contas, o Estado português já pagou perto de um milhão de euros de multas aos reclusos nos últimos anos. Mas só nos primeiros meses deste ano  os valores aproximam-se dos 200 mil euros.

 

Serviços prisionais estimam investimento de 90 milhões até 2027

O Ministério da Justiça garantiu ao DN que está em curso o Programa Plurianual de Investimentos nos serviços prisionais, definido no início de funções do atual Governo, em 2022. “Neste trabalho foram envolvidos os respetivos serviços prisionais e demais parceiros da área governativa da Justiça”, sublinha fonte do gabinete de Catarina Sarmento e Castro, ministra da tutela. “Foi igualmente definida como prioridade máxima deste Governo o encerramento do Estabelecimento Prisional de Lisboa (origem de várias das referidas condenações a que o Estado Português tem sido sujeito pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem), tendo, logo em julho de 2022, sido definida a respetiva estratégia que o permitiria”, refere a mesma fonte.

 

O trabalho de planificação em causa convergiu na aprovação de quatro Resoluções de Conselho de Ministros (RCM) que, no seu conjunto, identificam o investimento que a área governativa da justiça vai executar até 2027: diversas construções no parque penitenciário ao redor de Lisboa, tendo em vista o encerramento do Estabelecimento Prisional de Lisboa; requalificação do novo edifício da Diretoria do Sul da Polícia Judiciária, em Faro; construção, ampliação e requalificação de instalações afetas a tribunais e à Polícia Judiciária de Braga, e por fim o Plano Plurianual de Investimentos na Área da Justiça (2023-2027). No que respeita, em concreto, à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), o volume total de investimento aprovado é de 90 milhões de euros.

 

O gabinete da ministra refere diversas necessidades no sistema prisional, de reinserção social e tutelar educativo, relacionadas não só com a degradação das instalações, “mas também com a reorganização das redes de Estabelecimentos Prisionais e de Centros Educativos atualmente implementadas, numa lógica de otimização do edificado existente, de racionalização da despesa e de uma gestão mais eficiente dos recursos”.

 

De acordo com o MJ, o plano em causa “vem reforçar o investimento material nos sistemas prisional, de reinserção social e tutelar educativo, prevendo, designadamente, a reabilitação e substituição gradual de equipamentos mecânicos de cozinha, lavandaria e centrais térmicas existentes, bem como a renovação da frota automóvel, em particular das viaturas celulares e das viaturas de serviços gerais”.

 

Está ainda contemplada uma verba para a construção do novo estabelecimento prisional de São Miguel, nos Açores.

 

 “O investimento aprovado para o encerramento gradual do EP Lisboa é o que se encontra numa fase mais adiantada de execução, com 56% do valor aprovado já em procedimento e 50% já adjudicado”, adianta o gabinete da ministra. Estão atualmente em curso obras nos estabelecimentos prisionais de Tires, Alcoentre, Sintra e Linhó. “Prevê-se que os processos de transferência dos primeiros reclusos do EP Lisboa se iniciem a breve trecho. Relativamente às restantes intervenções (em Caxias e Tires), encontram-se a ser contratados os respetivos projetos de arquitetura e especialidades”.

 

Mas há obras em curso noutras cadeias: EP São José do Campo, Cadeia de Apoio da Horta, EP São Miguel, Centro Educativo Bela Vista, Centro Educativo Olivais, Centro Educativo Navarro de Paiva e Centro Educativo Padre António Oliveira.

 

O MJ sublinha ainda que, em paralelo, têm sido efetuadas diversas intervenções (algumas ainda em curso), além das previstas. Refere-se ao reforço das condições de privacidade das Instalações Sanitárias, tendo sido intervencionados cerca de 30 EP; melhoria do sistema de água quente de vários EP (centrais térmicas) e ainda obras no EP Faro (caixilharias, celas, camaratas e balneário); EP Ponta Delgada (Ala direita piso 2); EP Funchal (cozinha); HPSJD (ampliação da farmácia); EP Castelo Branco ( Serviços clínicos); EP Pinheiro Cruz -(sala de aulas); EP Lamego (caixilharias); EP Torres Novas (camarata) e EP Covilhã (celas e camarata).

07/12/2024 17:17:29