Família foge de casa para evitar filho. PGR diz que pais não podem escusar-se a serem tutores

A casa de acolhimento de crianças e jovens em risco atingiu o limite: expulsou o rapaz, que combina défice cognitivo com comportamento anti-social persistente. E a família tem tanto medo dele que fugiu de casa. “É demasiado angustiante”, diz a mãe.

Chamemos Gabriel a este rapaz, como noutro texto que o PÚBLICO lhe dedicou. E Paula e Dinarte ao casal que o adoptou aos seis anos. Aos 16, o comportamento agravou-se muito e o rapaz voltou ao sistema de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo.

Já maior, foi-lhe atribuído um grau de incapacidade de 80%. Para adultos incapazes de decidir sobre aspectos da sua vida, há o regime do maior acompanhado. O Tribunal Judicial da Comarca do Porto nomeou a mãe como acompanhante, sem lhe perguntar.

Embora a decisão caiba ao tribunal, a pessoa pode indicar quem deseja. Antes, Gabriel escolhera o pai. E o Tribunal do Porto nomeara-o, apesar de Dinarte ter dito que não queria assumir esse papel, atirando para a coordenadora da casa de acolhimento.

Nunca houve lugar para Gabriel numa das seis casas especializadas em saúde mental do sistema de protecção de crianças e jovens. Nem quando a perícia médico-legal lhe diagnosticou um “transtorno da personalidade anti-social persistente” — um “grau moderado de psicopatia”.

Passou pelo Centro Juvenil de Campanhã, no Porto — fugas, furtos, roubos, consumo de tabaco, bebidas alcoólicas, cannabis. Foi acolhido na Obra ABC, em Gondomar — fugas, furtos, roubos, agressões, consumos. Foi transferido para a Casa do Vale, no Porto — fugas, furtos, roubos, agressões, consumos.

Na última, esmurrou uma técnica, arremessou objectos contra a coordenadora, agrediu colegas, matou o hamster de um deles. Refreou o ímpeto de bater, mas não deixou de gritar, de dar socos na mesa, de pontapear qualquer coisa que lhe aparecesse à frente, de atirar objectos, de furtar, de roubar.

“Assusta toda a gente”, diz Ana Moutinho, coordenadora das casas da Crescer Ser — Associação Portuguesa para os Direitos da Criança e da Família, entre as quais a Casa do Vale. “Pega num portátil de 500 euros e vai vender por 5 euros para comprar uma dose [de haxixe].”

Nas suas fugas, praticou vários furtos em supermercados e roubos “a velhinhas”. Chamada a polícia, esta levava-o para a urgência psiquiátrica do Hospital de São João, no Porto. Nunca os psiquiatras consideraram que reunia critérios para internamento involuntário. Iam dizendo que "precisa de acompanhamento terapêutico especializado e de um espaço mais contentor”.

Só no último trimestre de 2023, a psiquiatra sinalizou Gabriel para uma unidade de saúde mental de longa duração. Até agora, nenhuma vaga se abriu para si.

O acompanhamento deve ter a medida das necessidades. Quando o tribunal nomeou Dinarte acompanhante, atribuiu-lhe só a tarefa de representar Gabriel “perante a Segurança Social e a instituição onde mantém conta bancária”, de “administrar as prestações sociais” que recebe e de “decidir quanto à fixação de residência”. Todavia, em Setembro de 2023, ordenou-lhe que procedesse “à oportuna transferência para instituição com valências adequadas”.

Dinarte ficou indignado. Como ia encontrar vaga, se os técnicos envolvidos não conseguiam? O problema é bem conhecido. Ainda há pouco foi admitido por Miguel Xavier, coordenador nacional das políticas de saúde mental. Escasseiam as vagas em unidades residenciais.

Como Gabriel já tem 21 anos e não adere a qualquer projecto de formação, em Maio deste ano o Tribunal de Família e Menores cessou a medida de protecção. Teria de sair da Casa do Vale. Desesperado, Dinarte ameaçou que matava Gabriel e que se matava.

Quer Dinarte, que é enfermeiro, quer Paula, que é educadora social, se desgastaram nestes turbulentos anos em que houve várias tentativas falhadas de regresso a casa e episódios traumáticos, como quando Gabriel ameaçou que partia as pernas ao irmão e que matava o cão. Quebrou-se o vínculo afectivo. Temem por eles - pelos pais e sobretudo pelo filho mais novo, de 12 anos.

Alertado para as palavras de Dinarte, o tribunal decidiu dispensá-lo de acompanhante. Paula foi chamada na qualidade de testemunha. Ninguém lhe perguntou se queria substituir o marido. Dias depois, recebeu uma notificação judicial. Era ela a nova acompanhante.

Aflita, Paula escreveu ao juiz. O casal não sabe o que aconteceu ao rapaz na família biológica nem na primeira instituição, mas garante tudo ter feito para ajudar nos dez anos que estivera consigo. Na adolescência, "começou a adoptar comportamentos agressivos e a verbalizar que pretendia regressar a uma instituição para não ter regras, não frequentar a escola, cometer crimes, iniciar consumos".

Na contestação, lembrou que a família adoptiva, “desde o início do processo de protecção, foi considerada incapaz e não salutar”. “A orientação e a tomada de decisões passaram a ser plenamente assumidas pelas estruturas/sistemas do Estado.” Como podia agora ser capaz?

Nos últimos cinco anos, perdeu a conta aos furtos, roubos, ameaças, agressões, actos de vandalismo. “A impunidade com que se tem deparado faz com que mantenha ou agrave este tipo de condutas”, argumentou.

Sempre que tomou conhecimento de crimes, a Casa do Vale enviou informação para o processo de promoção e protecção enquanto esteve aberto, para a Equipa Multidisciplinar de Apoio ao Tribunal, para o processo de acompanhamento de maior, para o Departamento de Investigação e Acção Penal, para o Serviço de Psiquiatria do Hospital de São João, para o Serviço Social de Psiquiatria do Hospital de São João. Ao que diz a coordenadora, “nos últimos seis ou oito meses”, fê-lo “uma a duas vezes por semana”.

Era como se ninguém quisesse saber. “O sistema não resolve”, observa aquela responsável. “Para além de não encontrar resposta adequada para ele, aumenta o perigo junto de outros jovens que precisam de um ambiente estável, seguro. Há aqui duas casas a arder.”

Naquela casa com lugar para 13, moram dois rapazes com transtorno do espectro autista e três com problemas de comportamento. “Algumas situações não precisariam de evoluir”, afiança Ana Moutinho. “Não há prevenção. O SNS não possibilita psicoterapia.”

Na quinta-feira, 15 de Agosto, como o impediram de sair com objectos furtados, Gabriel pôs-se a atirar cadeiras para uma parede envidraçada. Chamaram a polícia. “Se calhar, já devíamos ter dito basta há mais tempo, mas não conseguimos deixar de olhar para ele como ser humano. Queríamos que tivesse uma saída preparada.”

A polícia ainda telefonou a Paula a perguntar se tinha alternativa. Ela respondeu-lhes que não, imaginado que recorreriam à Emergência Social (144) e o levariam para um albergue. Levaram-no para a urgência psiquiátrica do Hospital de São João.

A Casa do Vale já antes contactara a Acção Social da Maia, a zona de residência. Não havendo vaga protocolada, esta propusera uma vaga particular por 1700 euros mensais numa comunidade terapêutica. Tinha convocado Paula para lá ir assinar os papéis segunda-feira, 19.

Como nunca tocaram na sua prestação para a inclusão, Gabriel tem 13 mil euros. “Para usar o dinheiro dele, não precisam de mim”, argui Paula. “Querem implicar-me na tomada de decisão tomada pelas entidades competentes. Quando acabar o dinheiro dele, vão querer responsabilizar-me. O Estado que assuma a responsabilidade.”

Desde que a nomearam, Paula está tão ansiosa que nem consegue trabalhar. Com o rapaz em parte incerta, entrou “em pânico”. “Só não fui às urgências ao São João porque tenho medo de me cruzar com ele ou com as pessoas que se dão com ele.”

Segunda-feira, 19, uns amigos de Gabriel foram à porta da família. Convencida de que seria alguma técnica, Paula ligou para o número que deixaram. “Fui intimidada, ameaçada. Fiquei a temer pela nossa segurança.” Chamou a polícia. Foi à esquadra. Quando falou em sair de casa, responderam-lhe que não era má ideia.

Dinarte não está melhor. “Vamos acabar os dois desempregados e malucos.” Não percebe como é que alguém que cometeu tantos crimes ainda não foi detido. “Um dia destes, aparece morto numa valeta.”

“Uma ala psiquiátrica de uma prisão seria consequência dos crimes que tem vindo a cometer, mas não é resposta para vida”, corrobora Ana Moutinho. “A rua muito menos, porque não tem capacidade para se autocuidar e auto-regular e vai colocar as pessoas em perigo.”

Gosta de pensar que “foi acautelada a segurança dos rapazes”, mas nem isso está ainda garantido. O grupo que intimidou a família também foi pedir satisfações à casa. “Se [o Gabriel] não estiver numa instituição, num espaço contentor, também vai aparecer. O problema não está resolvido, enquanto não integrar uma resposta na saúde mental.”

Na terça-feira, 20, o casal e o filho mais novo refugiaram-se em casa de uma amiga. “Ele é perigoso tomando a medicação, imagine-se agora que não toma”, diz Paula. “Ainda não pusemos a casa à venda, mas estamos a passar a palavra”, refere o marido. Um familiar está a fazer pequenos arranjos para que a possam vender.

A gestora de caso pediu uma solução ao tribunal. “Isto vai recair sobre mim. Vão dizer que não quero colaborar. Falhou a Segurança Social, a Saúde, a Justiça, e vão arranjar maneira de nos culpar.”

Questionada pelo PÚBLICO sobre o que leva o Ministério Público a forçar primeiro o pai depois a mãe a assumirem o papel de acompanhantes de um filho que lhes provoca pavor, a Procuradoria-Geral da República lembra que os magistrados não se pronunciam sobre processos concretos. Esclarece, ainda assim, que, de acordo com a lei, “o acompanhamento é deferido à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse do beneficiário”. E que, “apesar de eventuais circunstâncias concretas possam conduzir à designação de outras pessoas como acompanhantes, os ascendentes não podem escusar-se ou ser exonerados do cargo de acompanhante”.

“A lei não diz que tem de ser os pais”, salienta Inês Ferreira Leite, do Conselho Superior de Magistratura. Prevê que seja “o cônjuge; o unido de facto; os pais; uma pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em testamento ou em documento autêntico ou autenticado; os filhos maiores; os avós; a pessoa indicada pela instituição em que esteja integrada; o mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação; outra pessoa idónea”.

“Ser responsável por um maior acompanhado é um trabalho difícil quando há uma relação emocional intensa”, sublinha. “Só faz sentido se não for fonte de maiores problemas. Em situações em que há conflitos familiares, tem de se nomear uma terceira pessoa. A lei não é para acorrentar membros da família numa miséria conjunta.”

Conhece casos trágicos: “Estas situações dão origem a homicídios. A família pede ajuda ao Estado e o Estado falha sistematicamente. Este rapaz precisa de ajuda. É o Estado que tem de ajudar.”

Sofia Brissos, psiquiatra do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses e da Unidade Local de Saúde de São José, concorda: “A gente volta e meia vê tragédias anunciadas.” Não tem de ser assim. “Há muitos indivíduos institucionalizados por comportamento desadequado. Têm uma equipa médica que os medica e conseguem controlar o comportamento.”

Na segunda-feira, 26, a técnica da acção social voltou a contactar Paula. Queria pô-lo num quarto e perguntou-lhe se poderia pagar. Como lhe responderam que não, que para isso precisam de uma comunicação oficial, dia 27 puseram-no num dos albergues do Porto, onde tem acesso a refeições e a uma equipa que o pode alertar para a necessidade de tomar medicação. Na primeira noite, só apareceu de manhã. Segundo a autarquia, a técnica está “a agilizar procedimentos para que o jovem seja integrado, o mais rápido possível, numa instituição de saúde mental”.

Paula voltou a escrever uma carta ao juiz titular do processo, que menciona défice de atenção, hiperactividade, perturbação de desenvolvimento intelectual, não ignora a psicopatia. Falou-lhe do impacto na sua saúde mental e do filho pequeno, para quem foi reactivado o acompanhamento pedopsiquiátrico. Dia 29, foi notificada para estar presente na audição de Gabriel. “Inacreditável”, diz.

10/09/2024 16:01:42