“Precisamos de recursos tecnológicos, de pessoas, de melhor capacitação”
A Bastonária da Ordem dos Advogados avalia quais são os principais desafios a poucos dias da abertura de mais um ano judicial e chama a atenção para a falta de investimento em pessoal e recursos tecnológicos.
Como analisa o investimento na Justiça na área de recursos humanos?
É verdade que nos últimos anos tem sido feito algum esforço. Por exemplo, pela primeira vez em 20 anos abriu-se um concurso para conservadores dos registos, o que é uma coisa notável. Vinte anos sem contratar ninguém, o que é fantástico, não é? Mas não chega. Este Governo, pese embora esteja há muito pouco tempo em funções, tem de fazer mais, tem de fazer mais rapidamente, porque isto não pode continuar. Quando nós falamos em falta de recursos, eles são reais. Dou-lhe um exemplo dos registos e notariados. Na Avenida Fontes Pereira de Melo [Lisboa], uma das maiores conservatórias deste país, no registo comercial saíram para a reforma 20 funcionários. Se não os substituir, adeus. Vamos falar de outra coisa, juízes. Ainda na segunda-feira [dia 6], na tomada de posse do senhor presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, foi dito pelo senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça que, dentro de um ano, 90% dos juízes do Supremo vão poder jubilar-se. O que significa que se fica sem ninguém no Supremo Tribunal de Justiça. Se não for alterada a lei, essa proposta já foi feita – rejuvenescer o quadro de juízes conselheiros, ampliando (de um quarto, para um terço) o universo de concorrentes necessários para o concurso de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça –, mas está para ser aprovada pelo Conselho de Ministros há muito tempo. Isto foi dito logo que este Governo tomou posse, em abril do ano passado. Ou seja, de abril até agora há muitos problemas identificados.
Tomou posse no dia 9 de janeiro de 2023 e o ano judicial começou no dia seguinte. Que avanços viu neste período?
Infelizmente as questões que se colocavam naquela altura continuam todas em cima da mesa. Naquele dia foi feita uma manifestação dos senhores funcionários judiciais, porque não têm um estatuto e este ano vai acontecer a mesma coisa. É lícito e é justo que estas pessoas tenham um estatuto. Esse desinvestimento público tem sido feito durante décadas no que toca aos recursos humanos. Repare, vou ter de dizer isto, mas puxando pela memória, porque sou uma pessoa antiga. A última pessoa que fez um investimento sério nos recursos humanos da função pública foi o senhor primeiro-ministro Cavaco Silva, que terminou o mandato em 1995. Essas pessoas estão agora a sair para a reforma e durante estas décadas ninguém teve o discernimento de voltar a contratar. É evidente que a tecnologia alivia muita coisa e pode retirar muitos recursos humanos, mas a tecnologia é comandada por pessoas e existem situações que não podem ser feitas automaticamente pelas máquinas. Mas não há esse investimento na tecnologia, nomeadamente em ferramentas de inteligência artificial, em funcionários judiciais, no edificado, não há. Ainda há pouco tempo foi aqui colocada uma questão à Ordem dos Advogados. No Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra mudaram de instalações, mas o espaço não chega para o número de pessoas que trabalham no tribunal. Portanto, quando nós tomamos uma solução, temos de ter a noção de que solução é essa, se ela serve ou não serve. Ora, nós não podemos tomar uma decisão porque sim, sem ter um plano, sem pensar, sem ter uma estratégia. Temos de ouvir, acima de tudo, aquilo que nos dizem as pessoas, porque nós andamos a dizer, há uma série de anos, que precisamos de mais, precisamos de recursos tecnológicos, precisamos de pessoas, precisamos de melhor capacitação, inclusivamente dos próprios juízes.
Esta semana ficou conhecido o resultado do grupo de trabalho para os megaprocessos. Uma das conclusões é a necessidade da reformulação na fase da instrução criminal e também pedem mais investimento tecnológico. Acredita que são estas as saídas?
Eu não acho que seja a saída a questão da reformulação da instrução. Aliás, é uma divergência que tenho com os senhores magistrados, mas isso faz parte e não tem problema absolutamente nenhum. Nós não resolvemos o problema das pessoas retirando-lhes direitos, nós resolvemos o problema das pessoas criando meios para que as pessoas possam trabalhar. A solução que é proposta: que os processos não cheguem ao Supremo ou que a instrução tenha regras diferentes, isso é retirar direitos aos cidadãos O que nós precisamos é, primeiro, de recursos humanos, depois, de recursos tecnológicos. Se eu lhe disser, por exemplo, que no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes não têm assessores para poderem fazer aquele trabalho simples de pesquisas, são eles que as têm de fazer, o tempo que o juiz perde com isso faz com que o seu trabalho não desenvolva.
No ano passado assistimos ao inicio de um novo fenómeno: milhares de processos diários contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA). Os tribunais estão preparados para essa avalancha?
Essa enxurrada de processos continua. Quando nós vamos a tribunal fazer uma intimação vamos dizer que é absolutamente óbvia. Aquele cidadão precisa de uma resposta em tempo útil. As pessoas têm todo o direito de reivindicar os seus direitos, mas chegamos a um ponto em que isso é perverso, porque nós só vamos inundar o Tribunal Administrativo e Fiscal como está a acontecer. Entram aqui só no de Lisboa 14 mil processos por semana e o número de juízes não aumenta. O que é que acontece a seguir? Não temos nem resposta da AIMA, nem resposta do tribunal. Paralisou tudo. Portanto, isto não é a solução. Nós temos de encontrar uma solução do ponto de vista da estrutura de missão que consiga responder em tempo útil aos cidadãos. É por isso que a Ordem dos Advogados aceitou fazer aquele protocolo com a AIMA e eu estou confiante que em 2025 vamos conseguir dar um passo gigante nessa matéria. Vamos conseguir dizer que sim ou que não ao cidadão, que é aquilo que ele precisa de saber. As pessoas têm direitos, os cidadãos e imigrantes neste país são absolutamente fundamentais para a economia e para a vida na sociedade. Ficar sem direitos não pode acontecer num Estado de direito democrático.
A ministra da Justiça referiu há algum tempo que um dos obstáculos aos cidadãos no acesso à justiça são os custos processuais. Concorda?
É inteiramente verdade. O Governo diz que vai ser revisto, mas eu vou acreditando nas coisas à medida que elas aparecem, porque, de facto, há essa intenção. Por exemplo, um simples processo de regulação de responsabilidades parentais tem custas judiciais de 612 euros, que são pagos pelo pai e são pagos pela mãe. Os custos das perícias também são pagos pelas partes, portanto, isto é uma coisa que tem de ser revista. O serviço da Justiça é um direito constitucional. E eu percebo, todos nós temos de ter custos, mas nós já pagamos impostos, e, portanto, os impostos servem para isso, para garantir os direitos constitucionais das pessoas. Eu entendo que como o Serviço Nacional de Saúde não tem pagamento de taxas, e bem, também a Justiça não deveria ter. Nós podemos organizar-nos de outra forma. Entendo também que o investimento, que ainda não foi feito, mas que vai ser necessariamente feito, porque faz sentido, desde que tenha a presença dos advogados, é nos meios alternativos de litígio. Portanto, a resolução alternativa de litígio pode ser uma boa solução para alguns processos, como mediação e arbitragem, muitos comuns em toda a Europa.
Amanda Lima