Plano de combate ao racismo está a um ano de acabar, mas sofreu “travão a fundo”

Falta um ano para terminar e muitas das medidas não foram postas em marcha. Sob alçada da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), o Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025 (PNCRD) tinha, no final de Dezembro de 2023, apenas 16% de medidas executadas. Depois disso, a PCM não forneceu mais dados – não se sabe se por ausência deles, se porque não há mais medidas executadas. Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade do Governo PS até Março de 2022 e impulsionadora do plano, considera que houve "um travão a fundo" na concretização deste plano.

Segundo a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros (SGPCM), a entidade coordenadora e que faz a monitorização da execução do PNCRD, através de uma plataforma online usada desde o início, os últimos dados disponíveis sobre a execução global abrangem o período de Novembro de 2021 e Dezembro de 2023 e mostram que 21% das actividades estavam em fase de execução e 63% estavam por iniciar ou sem dados reportados. Apesar da insistência do PÚBLICO desde Maio, o gabinete do ministro Leitão Amaro não especificou a que correspondem estas percentagens, nem a que áreas se referem. Esta lacuna dificulta a avaliação do plano.

Activo desde 28 de Julho de 2021, o PNCRD surgiu depois de uma série de iniciativas e reivindicações de colectivos e foi resultado de propostas feitas por um grupo de trabalho criado pelo Governo nesse ano. Tem mais de 80 medidas e 200 actividades. Com quatro princípios transversais sob os quais se orienta — desconstrução de estereótipos; coordenação, governança integrada e territorialização; intervenção integrada no combate às desigualdades e interseccionalidade —, desenvolveu dez linhas de intervenção: governação, informação e conhecimento para uma sociedade não-discriminatória; educação e cultura; ensino superior; trabalho e emprego; habitação; saúde e acção social; justiça, segurança e direitos; participação e representação; desporto e meios de comunicação e o digital?.

Rosa Monteiro, ex-secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, refere que uma tabela de avaliação do que tinha sido feito em 2021 — e para avaliar cinco meses meses, porque o plano saiu em Diário da República em finais de Julho desse ano — dava conta de uma taxa de execução média por área governativa de 38,5% nesse período relativamente ao que estava previsto, ou seja, superior ao que está agora registado nos números globais. "A avaliar por esses números [do actual Governo], parece significar uma paragem de implementação", analisa. Nota, assim, que houve um “travão a fundo” na concretização do plano.

Há várias medidas que sabemos que não foram executadas. Por exemplo, estava prevista no ano lectivo de 2022-2023 a criação de 500 vagas extras no ensino superior e em cursos técnicos superiores profissionais para alunos de escolas do programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP), que operam em contextos sociais desfavorecidos, e que foi anunciada como uma medida de combate ao racismo. Mas não foi executada, tendo o ministério depois criado um contingente para beneficiários de acção social escolar, mas sem que tenha sido anunciada como enquadrada no PNCRD. Também não foi para a frente o concurso para Projectos de Investigação em Matéria de Memória da Escravatura e do Colonialismo, e Presença Histórica dos Grupos Discriminados, que desde 2022 a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) diz que vai lançar, mas que até agora não saiu da gaveta – ainda recentemente a FCT afirmou ao PÚBLICO que “se mantém empenhada na promoção e no lançamento” do concurso, mas facto é que nunca o lançou.

Foi criado o Observatório do Racismo e da Xenofobia, só que com várias críticas sobre a sua liderança não contar com ninguém racializado. Foram desenvolvidas várias acções de formação, abrangendo pelo menos 5000 pessoas, segundo contas feitas ao PÚBLICO pela anterior secretária de Estado da Igualdade, Isabel Rodrigues. Também o plano de combate ao racismo nas forças de segurança tem estado a ser desenvolvido pela Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI). Assim como cursos de literacia online sobre discriminação foram desenvolvidos. Há um ano, foram publicados os resultados do Inquérito às Condições, Origens e Trajectórias da População Residente em Portugal (pelo Instituto Nacional de Estatística), cujo objectivo era recolher dados para a prevenção e o combate ao racismo e à discriminação.

Isabel Rodrigues refere ao PÚBLICO que, quando deixou o Governo para o de Luís Montenegro tomar posse em Abril deste ano, o plano "estava em andamento e com execução de um conjunto de medidas”. Sem ter as percentagens, referiu que passaram a pasta com as medidas – algumas estavam em execução porque tinham continuidade no tempo. Estava planeada uma avaliação intercalar, mas entretanto o Governo caiu.

Uma das medidas do plano era a revisão do modelo da CICDR – antes na dependência do Alto Comissariado para as Migrações – algo que aconteceu com atrasos e que levou à paragem de mais de um ano daquela entidade que analisa as queixas de racismo, fazendo com que estas ficassem paradas. A actual presidente da CICDR é justamente Isabel Rodrigues.

Protocolo com advogados parado

Rosa Monteiro fala de várias medidas que não foram para a frente, tais como um protocolo com a Ordem dos Advogados, e o Alto Comissariado para as Migrações, através da CICDR e do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados – com várias acções de formação e um projecto-piloto numa junta de freguesia de apoio jurídico a vítimas de racismo. João Massano, presidente desse conselho, confirmou ao PÚBLICO que esse protocolo estava parado.

O PNCRD surgiu depois de uma aprovação pelo Parlamento de projectos de resolução que aconselhavam o Governo a adoptar medidas contra o racismo e de, em 2019, ter sido feito, com colaboração de todos os partidos, um Relatório sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-Racial em Portugal. Foi uma resposta do Governo ao primeiro Plano de Acção da União Europeia contra o Racismo 2020-2025, em que se pedia a cada Estado para desenvolver o seu projecto de combate ao racismo.

O esforço foi colocar no terreno os dispositivos políticos, burocráticos e administrativos fundamentais para que as medidas e o próprio plano pudessem ter uma dinâmica de trabalho multissectorial, coordenados pela PCM, sublinha Rosa Monteiro. “Isto era fundamental. Podem criar-se muitas medidas de política, mas é um engano pensarmos que criar a política é suficiente. Temos de olhar para a implementação e para as condições de implementação das políticas. E esse foi o nosso grande esforço nessa primeira fase.”

A ex-governante não acredita na ausência de um relatório mais detalhado sobre as medidas executadas do plano, o primeiro do género a nível nacional. E critica: “Deixámos de ter uma governança nesta área baseada em evidências, em produção de conhecimentos, na divulgação de vários estudos que ficaram em andamento.”

Rosa Monteiro aponta ainda o “desinteresse político” pelas questões do racismo, mas também de “alguma cobardia”: "Houve a ideia de que falar destes temas seria alimentar a extrema-direita. Trata-se de medidas concretas que melhoram o funcionamento das nossas instituições. Nós legislamos, criamos políticas boas, bem produzidas, temos políticas progressistas, mas depois não as implementamos e, portanto, criámos uma situação em que defraudamos as expectativas. É fundamental a liderança política nestas áreas.”

Tendo tido o contributo de dezenas de pessoas do grupo de trabalho e de áreas governativas diversas, o plano “é rico na diversidade da abrangência das áreas e do tipo de medidas que propõe”, considera. Muitas das medidas podem não ter “a espectacularidade que muitas vezes a própria opinião pública espera”, refere. “Mas é assim que se faz uma mudança estrutural, introduzindo mecanismos, capacidade de actuação, sistemas e procedimentos que permitam, a médio e longo prazo, produzir mudança. Há uma tendência a uma certa inércia se não há um trabalho contínuo e sistemático de acompanhamento, de apoio às diversas áreas governativas para que realizem, para que elaborem, para que façam as coisas”, referiu.

Até sobre o próprio Observatório do Racismo pouco ou nada se ouve falar, continua. O mesmo se aplica às áreas da Educação, que tinham várias medidas, da revisão dos manuais a formações, à produção de materiais pedagógicos. “Estes processos deixaram de ser discutidos com o espaço que merecem – são processos de governação como outros, que precisam de ser analisados com base em provas de discriminação que subsistem e que só são agitadas de forma muito incendiária em momentos críticos como aqueles que temos vivido em torno de homicídios e de situações de violência.”

Observadores falam de falta de vontade política

Da parte do grupo de trabalho que esteve na origem do plano, a mediadora cultural na associação Solidariedade Imigrante e presidente do Grupo Teatro do Oprimido de Lisboa, Anabela Rodrigues, lembra que o plano foi concebido por pressão dos movimentos e da criação, pela UE, de um plano seu. Considera que o plano português é reflexo de uma estratégia governamental para “evitar o desconforto de fazer o combate ao racismo”. “Os avanços e as condições criadas para finalmente começar-se a trabalhar as questões de combate ao racismo fica no papel para lermos, mas não executarmos”, lamenta, manifestando “tristeza” por isso.

O tema não é uma “prioridade porque o racismo institucional é a realidade do nosso país”, afirma. Dá exemplos recentes: a dificuldade de a CICDR começar a funcionar, o facto de não ter nos seus representantes imigrantes de outras origens que não apenas os da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, ou de a comunidade cigana ainda ficar sob alçada das migrações, na AIMA, bem como o facto de a maioria das pessoas do Observatório do Racismo não ser racializada. “Um plano é só um plano cheio de intenções, mas sem nada de concreto ou vontade política.”

Já Bruno Gonçalves, da associação activista cigana Letras Nómadas, lembra-se de que quando integrou o grupo de trabalho as suas expectativas eram razoáveis, porque este é um tema “com opiniões muito fragmentadas”: "Percebemos que a extrema-direita estava a crescer e sabíamos que era urgente que um plano ambicioso pudesse minimizar a situação. Nas redes sociais tentaram inflamar a sociedade e conseguiram."

De resto, considera que “há falta de compromisso, coragem e vontade política para abraçar este tema”, e isso não se restringe a este Governo. Aliás, até aponta o dedo ao Governo de António Costa: “Culpo mais o Governo anterior, apesar de não me identificar com este Governo, ideologicamente. O Governo anterior é o principal culpado de não ter posto em marcha este plano. Tendo uma maioria absoluta durante quase dois anos, não foram corajosos.” Para este activista, foi “uma oportunidade perdida” e tem dúvidas sobre se é possível recuperá-la. “Não é que seja muito céptico. Quero acreditar que possa haver coragem deste Governo para voltar a investir neste plano.”

Para a socióloga Cristina Roldão, que também fez parte do grupo de trabalho, a taxa tão residual de execução do PNCRD – que já tem alguns anos – é reveladora da "falta de vontade política e das nossas instituições em avançar na sua transformação no sentido de serem mais inclusivas". Acrescenta: "E o próprio plano nem previa medidas profundamente arrojadas – como as cotas étnico-raciais no acesso ao ensino superior." Conclui: "Olhando para as mudanças do Governo, não nos deixam grandes esperanças de que o PNCRD seja efectivamente executado".

14/01/2025 02:26:04