Estado acusado de discriminar crianças com deficiência

As horas de educação especial por semana são escassas e há dificuldades em cumprir os programas educativos individuais. Muitas vezes são excluídos de visitas de estudo e saem do recinto escolar sem que alguém se aperceba. Os relatos são feitos às dezenas por pais e familiares de crianças e jovens com deficiência, neurodivergência e surdez ao Movimento por uma Inclusão Efetiva (MIE), que está a preparar uma queixa contra o Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. 

“Recebemos muitos relatos, alguns muito graves, que envolvem violência psicológica e negligência”, revelou, ao JN, Filipa Nobre Pinheiro do MIE, sublinhando que há casos referentes ao ano letivo presente e anteriores que já foram participados às autoridades no setor da educação, mas caíram “num vazio”. Outros “têm receio de avançar por medo das consequências ou falta de apoio”, explicou a porta-voz. 

Na altura do Natal, “recebemos relatos de crianças que não foram às visitas de estudo com a desculpa de que se portaram mal no dia anterior, exemplificou Lourenço Santos. Os casos, segundo o fundador do MIE, mascaram muitas vezes a falta de pessoal para acompanhar e supervisionar estes alunos. “É discriminação pura e dura”, advertiu. 

Perante os testemunhos recolhidos, Lourenço Santos alertou ainda para “transferências forçadas de alunos” e uma intervenção mais recorrente da polícia nas escola, através da Escola Segura, nomeadamente em casos de desregulação de alunos com perturbações do espetro do autismo, que, por vezes,  acabam por agredir professores ou assistentes. 

O JN questionou o Ministério da Educação sobre se tem conhecimento destes casos, e que soluções podem sem adotadas, mas não obteve resposta. A Inspeção-Geral da Educação e Ciência também não revelou quantas queixas recebeu nos últimos anos, bem como os inquéritos abertos e inspeções realizadas. 

Falhas no decreto-lei

A ação surge como resposta às falhas na implementação do decreto-lei da Educação Inclusiva, em vigor desde 2018, face à falta de professores do ensino especial, terapeutas da fala e assistentes operacionais, meios materiais, apoios e formação para responderem adequadamente às necessidades dos alunos, bem como à falta de fiscalização. 

“Não há recursos para garantir o que está no decreto-lei. Enquanto o Estado não investir, não há como”, resume Lourenço Santos.

A ideia será formalizar a queixa ainda este ano, após validarem com apoio jurídico um “número razoável de testemunhos”, mas o caminho será longo.  “É um processo jurídico e emocionalmente pesado para as famílias, mas estamos determinados a avançar”, garantiu Filipa Nobre Pinheiro.

O movimento deverá ser ouvidos até ao final de janeiro no Parlamento, no seguimento de uma petição que moveram, admitida o mês passado com mais de 9 mil assinaturas.

Maria, avó de um menino autista severo, de 14 anos, e a família têm vivido meses emocionalmente muito difíceis. Em outubro passado, o aluno não-verbal, do 7.º ano, descompensou na sala do Centro de Apoio à Aprendizagem da escola da básica Delfim Santos, em Lisboa. Durante o episódio, terá alegadamente agredido a professora de educação especial que os acompanhava. A polícia foi chamada e a docente apresentou queixa. Os pais são agora alvo de uma ação no Tribunal de Menores.

Casos participados ao movimento

Família condena que a escola tenha chamado a polícia 

“A escola só é inclusiva no nome. De que serve chamar a polícia para uma criança como o meu neto?”, questiona Maria, contando que a mãe do menino só foi informada mais de 24 horas depois pela polícia. Ao final do próprio dia, a professora de educação especial do menino terá ligado, falando apenas de uma desregulação, à qual não tinha assistido. Até hoje, a família, que já se apresentou à CPCJ, não sabe ao certo o que aconteceu.

Acusa aquela escola, de referência para alunos autistas, de ter não ter cumprido com o previsto no plano educativo especial, e não compreende o porquê de não terem recorrido aos serviços de saúde, e tentando regular o menino numa sala sem estímulos.

O JN pediu esclarecimentos sobre o caso à direção do agrupamento de escolas, mas não obteve resposta.

Sem apoio, mãe viu a filha autista ser retirada  

Após muitos anos sem saber ao certo o porquê da filha ter dificuldades em socializar, Ana (nome fictício) viu a jovem de 16 anos ser diagnosticada com autismo leve (de nível 1), em 2023. O que era confundido com timidez na infância, fez com que a filha enfrentasse dificuldades logo no pré-escolar. “Era muitas vezes excluída e castigada injustamente”, relata ao JN. No 4.º  ano, a filha sofreu uma depressão grave, mas, apesar de medicada, a situação piorou com as faltas recorrentes no 9.º ano.

“Sempre foi uma excelente aluna, por isso, na escola, diziam que não precisava de ajuda”, relata, ao JN, a mãe solteira, que nestes tempos contou apenas com o apoio da avó e de uma tia da menina. Já no secundário, apesar do diagnóstico de autismo, Ana sentiu que a sua preocupação com a filha, que começou a desenvolver comportamentos autolesivos, era desvalorizada.

Apesar das dificuldades financeiras, Ana procurou ajuda especializada. “As escolas não estão minimamente capacitadas para dar resposta ao que saia do normal”, critica.  As faltas frequentes culminaram na intervenção da CPCJ.

Em abril passado, a jovem foi institucionalizada. “Se tivesse sido devidamente integrada, teria sido evitado muito sofrimento”, critica a mãe, que, com apoio jurídico, está a lutar pela filha.

 

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14/01/2025 03:37:02