"Lei da burca" pode violar a Constituição: pareceres negativos do Ministério Público e da Ordem dos Advogados
Conselho Superior do Ministério Público e Ordem dos Advogados alertam para o risco de violação dos direitos constitucionais da liberdade de religião e de culto e o direito à identidade pessoal contra quaisquer formas de discriminação. Em causa está também a possível "arbitrariedade" das coimas a aplicar
Aprovado na sexta-feira no Parlamento, o polémico projeto de lei do Chega que visa proibir a ocultação do rosto em espaços públicos, através do uso de burcas e de outro tipo de vestuário, foi alvo de pareceres negativos por parte do Conselho Superior do Ministério Público e da Ordem dos Advogados.
Os dois pareceres entregues na Assembleia da República alertam para riscos de inconstitucionalidade, apontando para a eventual violação dos artigos 26.º e 41.º da Lei Fundamental, que salvaguardam a liberdade de consciência, de religião e de culto e os direitos à identidade pessoal e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.
A avaliação do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) e da Ordem dos Advogados vai, aliás, ao encontro das preocupações que constam também na nota de admissibilidade do projeto na Assembleia da República, feita pelos serviços sempre que um projeto dá entrada, e no relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, assinado pelo deputado do PS Pedro Delgado Alves.
Para o CSMP, tanto os objetivos elencados, como as normas propostas levantam questões jurídicas que “comprometem a sua conformidade” e “respeito pelos preceitos constitucionais” e legais. “A forma como os cidadãos e cidadãs se apresentam no espaço público integra a sua identidade pessoal, constituindo expressão da sua autonomia individual e do seu direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Do mesmo passo, a liberdade religiosa é um direito, liberdade e garantia de natureza análoga aos direitos fundamentais clássicos, gozando, pela sua essencialidade de salvaguarda acrescida”, pode ler-se no parecer.
Segundo o CSMP, o projeto não detalha também no que consiste a “ocultação punível, prevendo coimas entre 200 e 2000 euros em caso de negligência e entre 400 e 4000 euros se houver intenção de violar a lei. “Sem esta concretização, o tipo definido afigura-se vago e sujeito a ampla subjetividade interpretativa, o que viola o princípio da tipicidade. Uma sanção não pode ser imposta com base em formulações genéricas ou indeterminadas, sob pena de redundar em arbitrariedade”, adverte.
O projeto de lei – que foi aprovado na generalidade com os votos a favor do PSD, Chega, IL e CDS – prevê a proibição do uso em espaços públicos de “roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição do rosto”, assim como forçar “alguém a ocultar o rosto por motivos de género ou religião”. Em causa estará, assim, a proibição de “burcas”, “niqabs” outros “trajes religiosos islâmicos”.
Invocando o princípio da “dignidade” e “respeito pelas mulheres”, a proposta do Chega defende a proibição de burcas face à necessidade também de garantir a segurança no país. Mas a CSMP nota a ausência de “qualquer dado factual ou fundamento lógico” que justifique a restrição de direitos fundamentais.
Na mesma linha, a Ordem dos Advogados deu um parecer desfavorável ao projeto de lei do Chega face a “fundadas dúvidas” acerca da sua constitucionalidade. A proposta “não respeita, na sua essência, o “direito de consciência de religião e de culto”,no qual se consigna que o mesmo é inviolável”, estipulando-se aí que “ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa”, escreve o vice-presidente do Conselho Geral da OA, Filipe Pimenta Trindade.
Também o socialista Pedro Delgado Alves - que elaborou o relatório sobre a proposta do Chega na 1ª comissão -, concordou que as reservas sobre o projeto de lei são “fundadas” e dificilmente serão ultrapassadas na discussão do projeto na especialidade. Tal como outras propostas do partido de André Ventura, vinca, é de notar a “intenção declarada” de dirigir as medidas a uma “comunidade religiosa”, o que é “especialmente grave” quando não há “qualquer evidência” de casos de ocultação de rosto” em Portugal que causem problemas.
Para Delgado Alves, a proposta do Chega visa “cultivar um conflito de índole religiosa artificial”, penalizador de “comunidades minoritárias” face aos “riscos de estigmatização”. “Junta-se ao discurso agressivo em relação a estas comunidades e a outras iniciativas que visam também dificultar sem fundamento adequado o exercício da sua liberdade religiosa – vejam-se os projetos destinados a proibir o abate de animais para consumo em conformidade com as respetivas crenças”, acrescenta.
Apesar destas conclusões, e de referir a existência de um "quadro bastante expressivo de riscos de violação da proteção constitucional dos direitos, liberdades e garantias em risco", existe uma prática parlamentar de apenas rejeitar liminarmente os projetos antes da discussão caso os projetos "apresentem uma violação flagrante, irremediável e insanável da Constituição, ou seja, aquelas cujos fundamentos não podem ser corrigidos ou sanados durante o processo legislativo”.
A direita juntou-se e deu luz verde ao projeto de lei do Chega na sexta-feira no Parlamento. PS, Livre, Bloco e PCP votaram contra a iniciativa, enquanto PAN e JPP se abstiveram. O Presidente da República recusou pronunciar-se para já sobre a proposta, aguardando a "versão final" em Belém. Mas admitiu que a mesma resulta de um "confronto de valores".
Ainda esta segunda-feira, por exemplo, houve mais opiniões, nomeadamente da Associação de Mulheres Juristas. Num parecer difundido, a associação considera que a lei “põe em causa, de forma ostensiva e notória, o direito à identidade pessoal e não discriminação”, previsto na Constituição, “e contende de modo frontal e evidente com o princípio da liberdade religiosa”.