"Deixei o meu pai sem olhos": quando os filhos destroem quem os criou

Nesta edição de "Além dos Títulos", analisamos casos recentes de violência filial que chocaram Portugal. Da confissão nas redes sociais ao assassinato em Vagos, exploramos as causas profundas desta tragédia social crescente e as soluções que Portugal continua a adiar

Quantas tragédias precisamos de testemunhar antes de admitirmos que algo está profundamente errado?

Há poucos dias, um rapaz de 14 anos foi detido por suspeita de matar a própria mãe, vereadora em Vagos.

Em Lisboa, uma mulher adulta esfaqueou o pai, ex-presidente do Observatório de Criminalidade Organizada, deixando-o gravemente ferido. Horas depois, escreveu nas redes sociais: "Acho que deixei o meu pai sem olhos." A mulher apresentava sinais de um quadro mental confuso, fazendo referências delirantes que sugerem perturbações psicológicas graves.

Casos separados por quilómetros e idades, mas unidos por um mesmo abismo: o da violência que se instala onde devia apenas caber amor e cuidado. E se a saúde mental não tratada explica parte destes dramas, não explica o padrão crescente de violência de filhos contra pais que atravessa todas as classes sociais.

Não são apenas tragédias familiares; são sintomas de uma fragilidade social. O pai ferido e o filho assassino são as duas pontas do mesmo falhanço — o de uma educação que se perdeu entre o desinteresse e a permissividade, mas também entre a sobrecarga, a falta de apoio e os traumas não tratados.

A cada nova notícia semelhante, perguntamo-nos como é possível.

Mas a resposta está diante de nós: está nas escolas onde há um psicólogo para cada 694 alunos quando a recomendação internacional é de um para cada 500, nas famílias sem tempo para os filhos, nos ecrãs que substituem conversas, na saúde mental infantil e juvenil negligenciada. Está no abandono de valores básicos — o respeito, a empatia, a contenção.

Causas Múltiplas, Não Apenas Educacionais

Não há violência mais cruel do que a que nasce dentro de casa. Durante séculos, falámos da violência dos pais contra os filhos. Hoje, assistimos ao reverso: filhos que agridem pais idosos, humilham mães, destroem quem os criou. Segundo dados recentes da APAV, os pedidos de ajuda por violência de filhos contra pais aumentaram 27% nos últimos três anos, com mais de 2.800 casos registados apenas neste período.

Este fenómeno não surge apenas do "mimo" ou da permissividade. Surge também de perturbações psicológicas não diagnosticadas — como evidenciam casos com sinais de delírio e confusão mental —, de exposição a violência doméstica na infância, de desigualdades socioeconómicas que fragmentam famílias e de uma rede de proteção social insuficiente. Compreender estas causas múltiplas não é desculpar; é encontrar caminhos reais para prevenir.

Soluções Concretas, Não Apenas Intenções

E esses caminhos existem. Nenhum Estado pode criar amor, mas um Estado responsável deve criar condições concretas para que ele floresça.

Isto significa: garantir um psicólogo escolar por cada 500 alunos, cumprindo as recomendações internacionais; criar programas obrigatórios de parentalidade positiva acessíveis gratuitamente através dos centros de saúde; reforçar os serviços de saúde mental comunitária com respostas rápidas a situações de crise; investir em centros comunitários intergeracionais onde jovens e idosos partilhem atividades e conhecimento.

Alguns municípios já desenvolvem programas intergeracionais que combatem a solidão e promovem o diálogo entre gerações. Estas iniciativas locais, quando bem implementadas e acompanhadas, mostram que é possível criar pontes entre diferentes faixas etárias e reduzir o isolamento social que alimenta conflitos.

O Estado precisa também de apoiar financeiramente famílias em risco, porque a pobreza e o stress económico são fatores comprovados de conflito familiar. Quando o Estado se demite destas responsabilidades práticas, a sociedade paga — e paga com vidas destruídas.

O Abandono dos Idosos

Estas soluções tornam-se ainda mais urgentes quando olhamos para o outro lado da equação: os pais envelhecidos, abandonados, maltratados. Em Portugal, milhares de idosos sofrem maus-tratos por parte de familiares, muitas vezes em silêncio e sem denunciar a situação às autoridades.

Uma sociedade que abandona os velhos à solidão e à violência está a hipotecar o seu próprio futuro. Quem não aprendeu a cuidar de quem o criou dificilmente saberá educar a próxima geração. O respeito pelos mais velhos não é nostalgia; é investimento na coesão social que ainda podemos recuperar.

Responsabilidade Partilhada

Nestes dias, ouvimos declarações de choque. Mas talvez seja tempo de transformar esse choque em mobilização. Os sinais estavam lá e podemos escolher vê-los agora. Entre pais feridos e filhos perdidos, ainda há tempo para recuperar o fio que sustenta a comunidade.

A educação — verdadeira, com limites mas também com afeto e apoio psicológico — é o caminho para recuperar esse elo. E não basta apontar o dedo às famílias: o Estado, as escolas, as autarquias e os serviços de saúde têm de reconhecer que são peças da mesma engrenagem e agir em conformidade.

Tudo começa e acaba na responsabilidade. Na que temos quando educamos e na que temos quando escolhemos investir na prevenção em vez de remediar tragédias. Os exemplos existem, as soluções são conhecidas, falta a coragem política para as implementar a nível nacional.

Uma sociedade que cuida e se responsabiliza educa para o futuro. E quando investimos em quem precisa de apoio, construímos gerações com referências sólidas, com empatia genuína, com humanidade partilhada. Esse é o horizonte possível — se escolhermos caminhar até lá.

João Massano, Bastonário da Ordem dos Advogados

14/11/2025 03:26:05