Morreu Laborinho Lúcio, antigo ministro da Justiça
23 de outubro, 2025
Antigo ministro tinha 83 anos e morreu na madrugada desta quinta-feira, 23 de Outubro. Assumiu vários cargos públicos, escreveu livros sobre Justiça e romances e fez parte de várias associações.
Morreu na madrugada desta quinta-feira Álvaro Laborinho Lúcio, antigo ministro da Justiça, aos 83 anos. O presidente da Câmara Municipal da Nazaré, Manuel Sequeira, confirmou a notícia da morte à agência Lusa. Numa nota de pesar, o município destaca o facto de ter continuado com uma "forte ligação à sua terra natal".
Além de ter sido ministro da Justiça em 1990, durante o Governo de Cavaco Silva, Álvaro Laborinho Lúcio foi ainda procurador e inspector do Ministério Público, Procurador-Geral Adjunto, director da Escola de Polícia Judiciária e do Centro de Estudos Judiciários (entre e juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça.
Desempenhou ainda o cargo de Ministro da República para os Açores, de 2003 a 2006, durante a presidência de Jorge Sampaio.
Natural da Nazaré, nasceu a 1 de Dezembro de 1941 e tinha no teatro uma das principais paixões. Actor amador, foi um dos fundadores do Grupo de Teatro do município. Quando acabou o sétimo ano, disse aos pais que queria ir para teatro, mas acabou em Direito, em Coimbra, onde se licenciou.
"A justiça interessava-me também, se calhar talvez um pouco pelo seu lado cénico. Mas havia, sobretudo, uma questão que sempre me intrigou muito – devo dizer que ainda hoje me intriga um pouco, mas intrigar não significa que não tenha resposta nem compreensão para isso – e que é: como é que nós organizámos um sistema em que há uma pessoa que julga outra em nome do Estado? Como é que isto se faz?", contou em entrevista ao PÚBLICO. "E então fui para Direito, e devo dizer que gostei francamente de ser jurista, mas gostei sobretudo de ser magistrado e de perceber, então sim, como é que se liga esta técnica [o direito] a essa realidade que é a vida. Isto trouxe-me sempre muita riqueza no conhecimento das pessoas. Tenho imensas memórias de pessoas extraordinárias, algumas mesmo que eu condenei por crimes sérios."
Laborinho Lúcio foi o sócio número um da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e é membro fundador da Crescer Ser. Aliás, fez parte de várias associações ligadas aos direitos da criança, presidindo a Assembleia-Geral da Associação Portuguesa para o Direito dos Menores e da Família, sendo também membro do conselho geral da Fundação do Gil.
Fez ainda parte da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa. A propósito desta última função, disse, em entrevista ao podcast A Beleza das Pequenas Coisas, do Expresso: “O problema não é a sexualidade dos padres, mas os actos sexuais criminosos, a castidade e o pacto de ocultação entre fiéis e Igreja. Isto é, também os fiéis querem continuar a manter a castidade dos padres, porque os coloca num plano superior. Gostaria que a Igreja estivesse preparada para essa desocultação."
Foi também aqui que confessou que "uma das primeiras dificuldades" que teve quando chegou ao Ministério da Justiça foi uma entrevista que deu em que lhe perguntaram se mantinha a frase "um jovem que não transgride é um adulto mal formado". "Eu disse que sim, que mantinha." Valeu-lhe críticas de apelo à transgressão, ao que o então ministro explicou que "a transgressão é uma coisa normal no processo de aprendizagem social e de socialização".
Professor de Direito Penal na Universidade Autónoma de Lisboa, foi também membro do conselho geral da Universidade do Minho, que lhe atribuiu o título de Doutor Honoris Causa em Ciências da Educação. O então presidente Jorge Sampaio condecorou-o, em 2005, com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Pai de dois filhos, deixa uma obra bibliográfica, entre romance e livros sobre justiça.
Sobre justiça, escreveu Sobre a aplicação do direito (1985), O sistema judiciário em Portugal: uma perspectiva da mudança (1986), Do fundamento e da dispensa da colação (1999), Palácio da Justiça (2007) e O julgamento: uma narrativa crítica da justiça (2012). Direitos humanos e cidadania (2002), Educação arte e cidadania (2008), Portugal e as suas gentes: crise e futuro (2017), bem como A justiça e os justos: conversas com Maria José Braga (1999) e Levante-se o véu! (2011) são outras das obras.
Laborinho Lúcio escreveu também ficção, género em que se iniciou já depois dos 70 anos. Dizia de si próprio, no Correntes d'Escrita em 2016, que era um jovem escritor com um grande futuro atrás de si. Escreveu, neste capítulo, O chamador, O homem que escrevia azulejos ou As sombras de uma azinheira. Fez também uma incursão pela fotografia com O mar da Nazaré: álbum fotográfico (2002), em parceria com Ana David e António Nabais. O mais recente livro, As Sombras de uma Azinheira, fazia uma reflexão sobre o 25 de Abril.
No livro A Vida na Selva, Laborinho Lúcio compila textos que fazem "o primeiro resumo de uma vida com a literatura - e o testemunho de um homem comprometido com as suas paixões e o diálogo com os outros", como descreve a editora. É um livro de memórias, que começou por ser uma redacção de escola, uma espécie de auto-biografia onde reflecte a sua opinião sobre temas como a Constituição. "Ninguém nasce de uma vez. Nascemos aos poucos, pelo tempo fora. Vamo-nos juntando à medida que nascemos. Vamo-nos desconjuntando à medida que vivemos. Nunca chegamos a estar inteiros. Eu, por exemplo, nasci um dia, estava então no primeiro ano do liceu", é uma das passagens.
O PÚBLICO, a propósito desta obra, explicava: "Procurei que não fosse um livro de dispersos, quis fazer a ligação entre os textos procurando quatro tempos dentro dos quais os textos vão surgindo [Tempo de Nascer, Tempo de Criar, Tempo de Lutar, Tempo de Partir].(...) Achei que o mais interessante seria recolher uma série de textos e tentar construir alguma coisa, fazer um livro em que as personagens fossem os próprios textos."
E descrevia assim a sua relação com a ficção e o seu papel na justiça: "Sempre tive a ideia de que num regime democrático as instituições valem mais do que as pessoas que as servem, e, portanto, sempre me adequei àquilo que achei que deveria ser a exigência da instituição. Como juiz, senti que tinha alguma dificuldade em escrever ficção porque não podia estar até às oito da noite a tratar a verdade e depois a partir daí dizer que a verdade era outra coisa. Eu tinha a ideia de que não podia assumir essa perspectiva. Até porque tenho, do ponto de vista pessoal e humano, a convicção de que a verdade está muito para lá daquela verdade a que temos de chegar nos tribunais. Não que uma seja boa e a outra seja má, são situações diferentes. Entendo que a verdade é muito aquilo que eu nos tribunais não podia permitir que fosse valorizado".