Bebés abandonados enfrentam "abismo social e legal". O que diz a lei?
Na semana passada, um bebé com menos de 24 horas de vida foi abandonado à porta do quartel dos Bombeiros Sapadores de Leiria. O caso reabriu a discussão sobre o que leva uma mãe a abandonar o filho. Enquanto alguns apontam o dedo a esta mulher, outros defendem que o problema vem de trás, da falta de apoio e de vínculo, e que, muito provavelmente, tratou-se de um ato de "desespero".
Mas, o que diz a lei? Como protege esta criança? E que consequências e direitos têm os progenitores que tiveram esta atitude? O Notícias ao Minuto foi tentar perceber junto do bastonário da Ordem dos Advogados, João Massano.
Quando um progenitor abandona o filho bebé, por exemplo, num quartel de bombeiros, incorre em que tipo de crime?
A pergunta obriga-nos a olhar para um abismo social e legal. Quem abandona um bebé — debaixo da omissão, da vergonha, da impotência — não está apenas a fechar uma porta: está a empurrar a criança para o vazio do perigo. No plano jurídico, este ato configura o crime de exposição ou abandono de menor sempre que esteja em causa a vida, saúde ou integridade da criança deixada sem assistência. Mas a resposta não se esgota no Código Penal. O abandono de um bebé é, também, uma 'situação de perigo' à luz da nossa Lei de Proteção de Crianças e Jovens (LPCJP). A jurisprudência é clara: abandono é fundamento para medidas tutelares urgentes, como o acolhimento imediato e, verificados os critérios legais, a confiança com vista à adoção. Aqui, a justiça não pode ser indiferente — tem de agir, e depressa.
Que tipo de processo e penas podem enfrentar?
Falamos sempre de dois mundos que colidem: o tutelar cível e o penal. No plano tutelar, o sistema move-se com urgência — processo de promoção e proteção, acolhimento residencial ou familiar, e até a confiança para adoção se estiver em causa o superior interesse da criança. Pode, inclusivamente, avançar-se para a suspensão ou perda das responsabilidades parentais. Já do lado penal, abre-se inquérito para apurar se houve exposição, abandono ou maus-tratos. O castigo, aí, depende dos factos: do perigo criado, da existência ou não de lesão e do que se fizer para reparar o dano. Os tribunais têm dito, vezes sem conta, que quando existe perigo real, o caminho da confiança para adoção é, por vezes, o único que resta para proteger quem não pode ainda pedir socorro.
Se o progenitor voltar atrás na decisão de abandonar o filho fica com 'cadastro'? Sinalizado? Ou tem direito ao esquecimento?
No registo criminal, só há 'cadastro' com condenação penal. Sem sentença transitada em julgado, não há registo. Já no universo tutelar, há registo enquanto subsistirem fundamentos de perigo, mas não é um cadastro — são processos necessários à avaliação do tribunal. Voltar atrás pode não apagar tudo: o tribunal avalia se, entretanto, a situação de perigo cessou, se há laços afetivos preservados e se as condições familiares foram reconstruídas. Mas em matéria de proteção de crianças, não há 'direito ao esquecimento' — prevalece sempre o superior interesse da criança. Aqui, a lei não protege memórias, protege futuros.
Que direitos têm sobre os filhos os progenitores que os abandonaram?
Os progenitores não perdem o direito de serem ouvidos, de participarem em processos, de reclamarem medidas menos gravosas, ou de pedirem apoio para reconstruir competências parentais. Podem, inclusive, ter direito a contactos com o filho, desde que tal não colida com o interesse do bebé.
E os bebés abandonados? Como são/devem ser protegidos?
Sobre as crianças, a lei é categórica: devem aceder à proteção integral e urgente — segurança, saúde, afeto, projeto de vida estável, preferencialmente em família. Mas a lei não é um menu à la carte: todos os caminhos de proteção são escolhidos com base na proporcionalidade e atualidade, sempre sob o olhar vigilante do interesse superior da criança. O que falha não é a falta de instrumentos, mas de coragem institucional para os usar. Porque enquanto houver bebés deixados à porta do esquecimento, o nosso sistema é cúmplice desse abandono. No fim, fica uma verdade difícil de engolir: o silêncio social e institucional não protege ninguém. Cada criança abandonada é uma cadeira vazia no futuro coletivo do país. E perante a evidência desse vazio, não é admissível baixar os olhos — é obrigatório agir.
Recorde-se que, segundo o Jornal de Notícias, em seis anos, 50 bebés foram abandonados à nascença ou nos primeiros seis meses de vida em Portugal, situações limite, em que as mães enfrentam grande dor e angústia, mas não vislumbram outra saída.
O caso mais recente - que se tenha conhecimento - ocorreu na passada segunda-feira, em Leiria. Uma mulher, de 27 anos, enfermeira de profissão, deixou o filho recém-nascido, com menos de 24 horas de vida e ainda com o cordão umbilical, à porta de um quartel de bombeiros.
Dentro do saco onde estava o bebé, deixou fraldas, uma manta e leite. O menino estava quente e bem cuidado. Antes de o abandonar, foi captada pelas câmaras de videovigilância a hesitar e em lágrimas.
De acordo com o Correio da Manhã, a mulher, apesar de ter sido constituída arguida, está a visitar o filho e poderá até ficar com ele. Para já, o recém-nascido foi entregue a uma família de acolhimento.
O mesmo jornal revelou no fim de semana que a suposta enfermeira teve outro filho há um ano, na maternidade do Hospital de Beja, e também não ficou com ele ao seu cuidado.
Nessa altura, a mulher residia e trabalhava em Sines, foi para o Hospital de Beja para lhe fazerem o parto, ainda acompanhou o filho nos primeiros dias, mas depois ausentou-se e deixou lá o recém-nascido para ser encaminhado para adoção.
Leia Também: Mães que abandonam bebés. "Não podemos julgar. Por trás, há desespero"