Ensaios clínicos: Conselho de Ética pede que nova lei permita a participação de presos
Para o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), as duas propostas de lei do Governo relativas a ensaios clínicos e investigação clínica são “globalmente positivas”, mas os conselheiros identificaram “omissões relevantes” a colmatar e “questões fundamentais a desenvolver” em defesa dos interesses dos participantes. Consideram que a lei deve contemplar a participação de pessoas detidas, que deve ser definida uma idade mínima para os menores darem o seu assentimento à participação e que ambos os progenitores devem dar consentimento.
O parecer, divulgado no início de Fevereiro, faz parte de uma listagem de contributos que a Comissão Parlamentar de Saúde pediu para a discussão na especialidade das propostas de lei do Governo, que têm como objectivo a transposição para o direito nacional de regulamentação europeia. São duas as propostas: uma que regulamenta os ensaios clínicos de medicamentos para uso humano e outra que regulamenta a investigação clínica e respectivos estudos de desempenho (relacionada com dispositivos médicos).
Na apreciação que desenvolvem, os conselheiros começam por apontar um primeiro aspecto que consideram que deve “ser revisto”, que é deixar claro o que se entende como médico assistente. Lembram também que a regulamentação internacional prevê que possam ser investigadores principais médicos e médicos dentistas, mas estes últimos não são identificados na proposta do executivo. Consideram ainda que esse estatuto deveria ser alargado a outros profissionais de saúde, como enfermeiros e farmacêuticos.
Num olhar a grupos de especial vulnerabilidade, o CNECV considera que há omissões que devem ser clarificadas. Os especialistas consideram que a lei portuguesa “deve expressamente admitir a participação” de pessoas privadas da liberdade em ensaios clínicos de medicamentos e estudos clínicos com dispositivos. Lembram que os regulamentos europeus já permitem esta possibilidade, mas que tal depende de uma decisão do legislador nacional.
“Consideramos não se justificar continuar a somar à privação da liberdade também a privação dos benefícios dos ensaios clínicos, designadamente quando estes podem ter benefício directo para a saúde destas pessoas”, lê-se no parecer. Mas é preciso assegurar que o “consentimento livre e esclarecido para a participação na investigação científica não seja afectado por qualquer tipo de recompensa prisional, o que condicionaria a liberdade da decisão”.
Relativamente aos ensaios clínicos em menores, a proposta de lei relativa aos ensaios clínicos diz que, além do consentimento do representante, também deve ser obtido o assentimento dos menores de 16 anos para participar (desde que capazes de formar opinião e avaliar as informações). O CNECV considera “conveniente balizar” uma idade mínima para obtenção do assentimento para que não se dificulte a prática quotidiana. Propõem que “seja de sete anos, abaixo da qual se presuma imaturidade e a consequente incapacidade para assentir”.
No que se refere à participação de menores com 16 ou mais anos, os conselheiros consideram que “ambos os progenitores devem consentir, pois estes devem ter um envolvimento conjunto nos momentos de particular relevância da vida do menor”. E não ser apenas o representante legalmente autorizado a dar consentimento, além do assentimento do próprio jovem.
O conselho alerta ainda para a necessidade de regulação, por lei, do representante legalmente autorizado. Defendem que, no caso de menores, devem ser os progenitores ou o tutor e, no caso de adultos sem capacidade de consentir, a opção deve ser o procurador de cuidados de saúde ou o acompanhante indicado pelo tribunal.
Relativamente à língua utilizada nos diversos documentos, consideram que todos os dirigidos a participantes devem ser redigidos em português. Admitindo-se que, quando a pessoa não compreende o idioma, se preveja a utilização da sua língua materna ou outra em que seja fluente.
Ensaios em situações de emergência
Entre os pareceres às propostas do Governo já divulgados está também o da Comissão de Ética para a Investigação Clínica (CEIC), que, “de uma forma geral”, se revê no conteúdo das duas propostas. Mas deixa uma chamada de atenção para um ponto que considera que “devia estar previsto”, relativo aos ensaios clínicos em situações de emergência.
O regulamento europeu permite a possibilidade de inclusão de doentes em ensaios clínicos em situações de emergência, sem a obtenção prévia do consentimento informado, desde que cumpridas certas exigências, e impõe a obrigatoriedade de se prestarem todas as informações e obtenção do consentimento esclarecido, logo que possível, ao doente ou ao representante legalmente autorizado.
“Este regime é directamente aplicável, porém, a Proposta de Lei n.º 16/XVI/1.ª ignora completamente o problema”, refere o CEIC, salientando que, embora tal não impeça a aplicação desse regime, “seria importante” que a lei nacional fizesse referência ao tema, “ajustando o direito do regulamento às especificidades nacionais e, sobretudo, colocando cautelas adicionais: necessidade de ausência de terapêutica ou intervenção comprovadamente segura e eficaz; perspectiva de riscos mínimos e de benefício superior efectivo do próprio; impossibilidade de realização da investigação em causa em doentes capazes de consentir em tempo útil”.
A verificação destas três condições “deverá ficar na esfera da Comissão de Ética que aprovou o estudo clínico e considerou aceitável a inclusão de participantes sem consentimento prévio à sua inclusão”, refere o CEIC.