Inquilinos em união de facto menos protegidos na comunicação de despejo

Um senhorio que queira notificar os seus inquilinos de um aumento da renda, uma alteração contratual ou um despejo de uma casa que seja considerada morada de família dos inquilinos terá de enviar uma carta registada a cada um deles se forem casados. Porém, se viverem em união de facto, apenas o titular do contrato terá de ser formalmente notificado

 

Esta é a conclusão de um recente acórdão do Tribunal Constitucional (TC) que, no âmbito de uma ação que chegou ao Palácio Ratton, optou por considerar que, nesta interpretação da lei, não existe qualquer inconstitucionalidade. Os inquilinos em causa invocaram uma violação do princípio da igualdade, mas os magistrados suportam a sua decisão nas diferenças entre casamento e união de facto e no facto de a lei das rendas, nestes casos, apenas referir o casamento.

 

O acórdão surge no âmbito de um caso concreto e não tem força obrigatória geral, mas, além de vir do TC, debruça-se sobre um tema que já fez correr muita tinta em matéria de jurisprudência, mas que não tem muitos precedentes quando está em causa uma união de facto. 

 

Na origem do processo esteve o proprietário de um imóvel arrendado que decidiu opor-se à renovação do contrato de arrendamento com prazo certo e avisou disso a arrendatária, mas não o companheiro desta. A arrendatária considerou que a notificação, por escrito e com carta registada, não tinha sido feita nos termos da lei e como uma segunda notificação já seria feita fora de prazo, então a oposição à renovação do contrato ficaria sem efeito, não podendo este considerar-se cessado.

 

A inquilina foi para tribunal invocando uma norma do novo regime do arrendamento urbano (NRAU) de acordo com a qual "se o local arrendado constituir casa de morada de família, as comunicações [...] devem ser dirigidas a cada um dos cônjuges, sob pena de ineficácia." As comunicações em causa são as que respeitem a transição de contratos antigos para o NRAU e aumento da renda; a título para pagamento de renda, encargos ou despesas; ou que possam servir de base ao procedimento especial de despejo. 

 

Ora, não sendo os inquilinos casados, mas unidos de facto, deve esta norma aplicar-se-lhes? A primeira instância decidiu que não, não se aplicaria, e o mesmo fez depois o tribunal da Relação do Porto, não dando razão à inquilina que recorreu alegando que a interpretação que o juiz tinha feito da lei violava o princípio constitucional da igualdade. O TC, por seu turno, viria a manter a decisão da relação.

 

Este acórdão é positivo para os senhorios, que muitas vezes têm dificuldade em identificar com quem vivem os seus arrendatários, mas deixa os inquilinos em união de facto muito desprotegidos.Regina Santos Pereira, advogada da SRS Legal

 

"Este acórdão é positivo para os senhorios, que muitas vezes têm dificuldade em identificar com quem vivem os seus arrendatários, mas deixa os inquilinos em união de facto muito desprotegidos", considera Regina Santos Pereira, advogada especialista em arrendamento. No limite, se a pessoa que vive com o arrendatário não souber do que se passa, arrisca a ficar sem casa porque nem sequer usou o prazo do aviso prévio para encontrar uma nova habitação, exemplifica.  

 

Os argumentos do TC

 

Mas como fundamenta o Constitucional a sua decisão?  Considerando, desde logo, que "no nosso ordenamento jurídico não existe uma equiparação total do casamento à união de facto, sendo possível encontrar várias situações em que se verifica um tratamento diferenciado, no plano jurídico, entre ambos". Não ignorando também que ao longo dos anos se tem "registado uma aproximação entre as duas figuras", com "soluções jurídicas comuns em alguns domínios" ou "aplicação analógica" de soluções. 

 

"Mas isto não significa que a subsistência de soluções diferenciadas seja necessariamente inconstitucional", entendem os juízes, que, neste tipo de casos, encontram um impedimento à partida. Para fazer cessar o arrendamento, o senhorio teria previamente de apurar se o inquilino vive em união de facto com alguém, "o que poderá não ser fácil", uma vez que "as uniões de facto não têm de ser registadas" e isso também dificulta descobrir a identidade da pessoa, para depois lhe poder mandar a carta com a comunicação. 

 

Os juízes lembram, depois, que a coabitação é um dever resultante do casamento e viver na casa de família é um direito que assiste a ambos os cônjuges. Já na união de facto não há nenhum dever ou obrigação, pelo que "não se vê que se verifique a violação do princípio da igualdade em sentido formal ou material". Concluindo, portanto, se o legislador, na norma em causa, apenas refere os cônjuges, deve ser essa a leitura de quem a interpreta e aplica. 

 

Ou a lei prevê que a necessidade de comunicação também se aplica ao unido de facto, ou então basta só o senhorio comunicar ao titular do contrato.Pedro Borges Rodrigues, advogado da Miranda

Pedro Borges Rodrigues, advogado da Miranda especialista em imobiliário, admite que "a decisão é acertada", uma vez que "de facto, o casamento e a união de facto têm regimes diferentes e várias áreas, nomeadamente nas sucessões por morte". E, nesse sentido, "ou a lei prevê expressamente que a necessidade de comunicação também se aplica ao unido de facto - o que aqui não acontece -, ou então basta só o senhorio comunicar ao titular do contrato".

 

Do coletivo de cinco conselheiros do TC que assinam o acórdão - presidido por Maria Benedita Urbano -, um deles votou vencido, considerando que está aqui em causa a proteção da casa de morada de família e que esta "não é característica da família conjugal" que "se constitui a partir e em torno do casamento, antes constituindo um instituto comum às várias formas de família, conjugal ou de outro tipo". Rui Guerra da Fonseca lembra, por outro lado, que o legislador quis que ambos os cônjuges fossem informados - um deles pode estar ausente, por exemplo - não só para que se possam defender, mas também encontrar uma nova solução de habitação. Ou seja, o que se pretende é proteger a casa de morada de família e o direito a ela, e não o próprio casamento. E, nesse sentido, considerou o magistrado, a norma legal em causa "restringe desproporcionalmente os direitos fundamentais dos unidos de facto a constituir família", protegidos pela Constituição e para os quais a morada de família é "um aspeto essencial". 

 

[Dado] não existir uma equiparação total ou quase total dos efeitos jurídicos da união de facto e do casamento, [a mesma] não é exigida pela Constituição.

Acórdão do Tribunal Constitucional
O que diz a jurisprudência sobre as duas cartasA obrigação de as comunicações dos senhorios aos inquilinos serem enviadas para ambos os cônjuges quando na casa reside um casal está na lei desde 2012 e foi reforçada em 2017, com uma alteração que incluiu na norma inicial a indicação de que assim deve ser "sob pena de ineficácia". Discutiu-se, no entanto, se isso implicava enviar duas cartas, em separado, uma para cada um, ou se bastaria endereçar uma mesma carta ao casal. Muitos processos chegaram aos tribunais e jurisprudência é, hoje em dia, no sentido de que têm mesmo de ser enviadas duas cartas, explica a advogada Regina Santos Pereira. "A casa de morada de família é um bem pessoalíssimo e a pessoa sozinha tem direito a decidir sobre ela e, portanto, tem o direito a receber uma carta com toda a informação, só para si e para que possa decidir por si", resume a especialista em arrendamento da SRS Legal. No entanto, os proprietários nem sempre assim fizeram e estes casos deram origem a muitos processos em tribunal "com consequências graves para os senhorios, por não terem cumprido a regra", acrescenta. A questão colocou-se muito no caso de contratos com rendas antigas, anteriores a 1990, que os senhorios pretendiam atualizar, mas continua a acontecer por isso, aconselha a jurista, os contratos de arrendamento devem conter sempre se o inquilino é casado e com quem, ou se vive em união de facto e com quem. Depois, no caso do envio de comunicações, "na dúvida mandar sempre duas cartas registadas", remata.

18/03/2025 17:13:36