Justiça Cega. Candidatos à Ordem dos Advogados unem-se contra ideias de juízes para a reforma da justiça

 

Multar advogados por litigância de má-fé, apresentar participação disciplinar após duas condenações por manobras dilatórias ou reduzir os prazos e mecanismos ao dispor das defesas no processo penal — estas foram algumas das propostas do grupo de trabalho criado pelo Conselho Superior da Magistratura para promover uma justiça mais célere e eficiente que uniram os candidatos a bastonário da Ordem dos Advogados (OA) nas críticas a um projeto de reforma judicial sem a integração da advocacia.

O debate realizado esta terça-feira no programa “Justiça Cega” da Rádio Observador juntou os quatro candidatos: Fernanda de Almeida Pinheiro, João Massano, José Costa Pinto e Ricardo Serrano Vieira. A atual bastonária e recandidata às eleições agendadas para 18 e 19 de março, Fernanda de Almeida Pinheiro, mostrou-se “naturalmente” contra a visão do relatório produzido por aquele grupo de trabalho — constituído por seis juízes e um procurador do Ministério Público (MP) — e lamentou que se olhe para o setor apenas a partir dos denominados ‘megaprocessos’.

“Enquanto bastonária e enquanto candidata jamais iria subscrever tal coisa. Sabemos bem porque é que os processos se atrasam… Não podemos estar a cortar os direitos de defesa das pessoas. Não é admissível que se extrapole destes 140 megaprocessos para a justiça penal”, indicou, aludindo, por exemplo, ao caso Tutti Frutti, cujo inquérito durou mais de oito anos e só conheceu recentemente a sua conclusão, com a acusação a 60 arguidos.

Ricardo Serrano Vieira reconheceu que “são necessárias medidas” para fazer face à duração excessiva de alguns processos e que essas medidas até serão “urgentes”, mas alertou para o risco de compressão dos direitos dos arguidos. “A questão resultantes deste grupo de trabalho é que estamos a cair num problema perigoso, que é a violação da separação de poderes. O problema destes processos está na sua base: há uns anos foi decidido pelo MP começar a criar os megaprocessos. E aí ou se começa a comprimir os direitos de defesa ou então vamos para estas questões da justiça célere”, frisou.

No entender do advogado — que tem estado presente em alguns casos judiciais mediáticos ligados, sobretudo, às forças de segurança e militares —, uma visão como aquela que é vertida no documento do grupo de trabalho criado pelo CSM significa “pôr a carroça à frente dos bois” em termos de reforma judicial. “O problema é outro: normalmente, nestes processos, o MP tem muito tempo para investigar e depois os prazos são sempre a correr quando é para a defesa. É necessário pensarmos isso noutro prisma… Esta pressa de tornar os processos mais céleres pode trazer uma compressão dos direitos de quem vai ser julgado“.

O “problema” de reformar a partir da Operação Marquês

Perante as medidas preconizadas contra as manobras das defesas e possíveis sanções para um “dolo dilatório”, João Massano criticou a visão “parcial” do grupo de trabalho criado pelo órgão de gestão e disciplina dos juízes e sublinhou que este “não teve em conta os direitos dos cidadãos” representados pelos advogados. “Quando temos uma reforma que se quer fazer apenas com base em juizes e procuradores é óbvio que é parcial. No passado já vimos isto, esta facilitação de uma tendência securitária pode levar a situações muito complicadas.

Nesse sentido, o presidente do Conselho Regional de Lisboa da OA advertiu igualmente para o risco de se pensar na reforma do processo penal a partir do processo Operação Marquês, no qual a defesa do antigo primeiro-ministro José Sócrates já apresentou dezenas de recursos, reclamações e incidentes processuais. “O risco é que estamos a pensar no caso Sócrates e na Operação Marquês… Estar a fazer uma norma que se vai aplicar a todos os processos com base num único processo, sem saber se isso é um problema nos outros parece-me completamente errado”, disse.

Massano censura ainda a redução de prazos para as defesas. “Vão reduzir os prazos processuais às únicas pessoas que os cumprem? Por que é que não têm todos prazos? Queremos que o processo seja justo para todos”, questiona.

Por sua vez, José Costa Pinto viu “mais do mesmo” neste documento, assente numa “visão burocrata do trabalho dos advogados”, e assegurou não ter ficado surpreendido com os resultados, em virtude da ausência de advogados entre os membros do grupo de trabalho. “Queremos sempre acelerar a justiça da mesma forma: restringindo direitos fundamentais aos cidadãos e retirando meios processuais aos únicos agentes que têm prazos para cumprir, que são os advogados. E sem que haja o mínimo sinal ou compromisso das magistraturas de também evoluírem para aquilo que podem fazer para a celeridade da justiça”, notou.

Para o mais jovem dos candidatos a bastonário, é necessário conferir “uma nova voz” à OA e que coloque a profissão no centro do sistema de justiça, num combate claro à já mencionada visão burocrata da profissão. “Temos de explicar aos cidadãos que sem existir uma relação entre advogados e cidadãos, que se estrutura nos valores fundamentais da advocacia — sigilo profissional, independência e autonomia —, não podemos falar de Estado de Direito”, referiu, sem deixar de lançar a ideia de realizar um “congresso da justiça” a partir da Ordem.

As medidas prioritárias dos candidatos para a reforma judicial

Instado a apontar uma medida imediata para mudar o panorama da justiça portuguesa, João Massano enquadrou a prioridade na descida dos valores das custas judiciais e que considerou ser um entrave no acesso dos cidadãos ao direito, apelando ainda uma maior “literacia jurídica” das pessoas. “Defendemos que haja um escalonar [das custas] consoante os rendimentos das pessoas. É a única forma. Se continuarmos a ter estes valores proibitivos, as pessoas vão ficar sem fazer nada. Estamos a tratar a justiça como um serviço de segunda”, destacou.

Fernanda de Almeida Pinheiro garantiu que a discussão de um escalonamento não é nova no setor e que já se chegou a discutir a hipótese no tempo em que Francisca Van Dunem liderou o Ministério da Justiça (2015-2021). Em paralelo, indicou a importância de reforçar a proteção das vítimas: “Deveríamos ter do lado das vítimas um aconselhamento e propusemos que se replicasse o direito de nomear automaticamente um advogado para as vítimas, para ter naquele momento um aconselhamento jurídico em quem está a apresentar queixa”.

Quanto a Ricardo Serrano Vieira, o advogado salientou que é preciso “rever o sistema de responsabilidade do Estado”, ao notar as circunstâncias em que os cidadãos são privados dos seus direitos e depois veem a justiça dar-lhes razão sem que haja consequências. “Tem de começar a ter consequências. Até defendo, no limite, que este grupo tem de começar a ser escrutinado de outra forma”, defendeu, ao ser confrontado com uma eventual responsabilização civil dos procuradores do MP, mostrando ainda preocupação pelo peso destes magistrados como juízes no Supremo Tribunal de Justiça.

Além de querer reforçar o acesso ao sistema de direito e a revisão das questões da tabela de honorários de defensores oficiosos, José Costa Pinto centrou as suas atenções nas questões fiscais relacionadas com a advocacia. “Os serviços jurídicos de IVA têm uma taxa de 23% e não a de um produto essencial de 6%. Essa é uma medida muito concreta pela qual nos bateremos. Assim como a relevância fiscal das despesas com os advogados: em 2025 podemos deduzir no IRS despesas com o cabelereiro e o veterinário, mas não posso deduzir despesas com o advogado”, indicou.

Candidatos visam bastonária pela atual situação da OA

Na reta final do debate, mais centrada nos temas mais internos da profissão de advogado, Fernanda de Almeida Pinheiro esteve no centro das críticas de João Massano, José Costa Pinto e Ricardo Serrano Vieira. Das negociações pela revisão da tabela de honorários das defesas oficiosas com o Ministério da Justiça à marcação das eleições antecipadas, passando pela visão para o sistema de previdência ou pela divisão entre os profissionais, os três candidatos não pouparam a atual bastonária.

“É óbvio que a OA ser desmentida publicamente pela secretária de Estado da Justiça é grave e a credibilidade perante a tutela é o que é”, indicou João Massano, que defendeu que “não havia razão” para antecipar o ato eleitoral (que se devia realizar apenas no final deste ano. Sublinhou ainda de forma implícita que Fernanda de Almeida Pinheiro estará “agarrada ao lugar” de bastonária: “É um lugar que vale 300 mil euros em três anos e com direito a subsídio de reintegração”.

Ricardo Serrano Vieira atirou que os “advogados se sentem enganados com esta bastonária” e criticou a postura de Fernanda de Almeida Pinheiro no debate. Quanto ao sistema de assistência aos profissionais liberais da advocacia, considerou que deve ser possível escolher entre a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) e a Segurança Social.

Por fim, José Costa Pinto manifestou a expectativa de que as eleições consagrem “uma nova voz” para a Ordem e que esta possa voltar a ser “consequente na representação dos advogados”, alertando: “Hoje temos uma Ordem dos Advogados dividida e desprestigiada”.

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18/03/2025 16:16:52