Morte medicamente assistida: dois anos depois, lei fica no limbo

Este domingo assinalam-se dois anos de publicação da lei que regula a morte medicamente assistida, mas sem que a mesma tenha sido ainda regulamentada. Com as mudanças na Assembleia da República saídas das eleições legislativas do passado dia 18, a dúvida persiste: será agora mais difícil que o processo chegue ao fim? A resposta não é unânime entre algumas das vozes que mais se pronunciaram e estiveram envolvidas na questão.

Depois de uma devolução da lei pelo Presidente da República à Assembleia da República e de um veto presidencial, com fiscalizações do Tribunal Constitucional à mistura, foi conhecido, em Abril, o último acórdão deste órgão, apontando objecções a três pontos do documento, que PS e Bloco de Esquerda, os partidos que mais se bateram por levar este processo a bom porto, consideram de fácil resolução. Falta saber se o novo Governo liderado por Luís Montenegro terá o mesmo entendimento e avançará, definitivamente, para a regulamentação da lei que está em vigor – um processo com que o primeiro-ministro não se quis comprometer antes desta última apreciação do Tribunal Constitucional, pedida, precisamente, por 56 deputados do PSD e secundada, posteriormente, pela provedora de Justiça.

A socialista Isabel Moreira, reeleita por Lisboa para o Parlamento, não tem dúvidas que a lei “deve ser regulamentada pelo Governo”, argumentando que o acórdão do Tribunal Constitucional não impede juridicamente esse processo. “Do ponto de vista jurídico, o que seria normal era interpretar a lei que já foi aprovada de acordo com a força jurídica do acórdão do Tribunal Constitucional. O tribunal refutou todos os argumentos que a tornariam inaplicável e anulou dois segmentos. Isto significa que, por exemplo, na norma que diz que os objectores de consciência devem indicar as razões dessa objecção, essa referência deixa de existir. São objectores de consciência, ponto”, refere.

A deputada entende, por isso, que as declarações de inconstitucionalidade referidas no mais recente acórdão do tribunal “não obrigam à reformulação da letra de lei, pelo que não precisam de reformulação no Parlamento”. Ou seja, o documento deve incorporar a interpretação que decorre das objecções do tribunal e a Assembleia da República deve avançar com a regulamentação da lei.

Pelo Bloco de Esquerda, Marisa Matias, que falhou a eleição como deputada para a próxima legislatura, também defende que não há razões para que a lei não seja, de uma vez por todas, regulamentada, desde que haja vontade política. “O Tribunal Constitucional já teve várias intervenções, a que a Assembleia da República respondeu sempre, e o que pede agora é para se afinar uns finíssimos detalhes. É preciso termos em conta que não foram postas em causa normas, mas segmentos de normas. E apesar de tudo ter mudado [no Parlamento], no essencial, nesta matéria, não se alterou muito, porque a grande vontade política do PSD e do PS para regulamentar a lei continua a existir”, defende.

O regresso do referendo

Quem não tem tantas certezas sobre a manutenção dessa vontade, pelo lado dos sociais-democratas, é Miguel Oliveira da Silva, professor catedrático de Ética Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e obstetra-ginecologista do Hospital de Santa Maria, que há anos defende que a morte medicamente assistida deveria ser alvo de um referendo. E que não mudou de ideias, apesar da promulgação da lei. “A lei morreu aqui, por total incompetência da Assembleia da República e dos deputados do PS e do Bloco de Esquerda que escreveram uma lei mal feita e cheia de contradições”, acusa.

O médico acredita, contudo, que o tema é suficientemente importante para não sair da agenda política, mas mantém a sua posição, de que só um referendo poderá desbloquear o processo. “O assunto é suficientemente sério para que se faça um referendo com uma reflexão séria e se pense também na existência de cuidados paliativos. Não há liberdade de escolha quando não há acesso a esses cuidados. Há todo o sentido em fazer um referendo bem feito, mas tenho as maiores dúvidas que o primeiro-ministro e o futuro Governo queiram. Esta minoria não vai fazer lei nenhuma”, argumenta.

Isabel Moreira insurge-se contra o regresso da ideia de se referendar um tema que, insiste, já está decidido e pronto a ser regulamentado. “O referendo é sempre a desculpa da direita. É uma arma dos perdedores. Um referendo é o grau zero da democracia representativa, quando os deputados não querem tomar decisões difíceis e assumir as suas responsabilidades”, critica. Da sua parte, garante, isso não irá acontecer. “Tudo farei para que este processo, que foi profundamente democrático, prevaleça”, diz.

O debate sobre a eutanásia e a morte medicamente assistida iniciou-se já em 1995, mas foi apenas em 2018 que foram apresentados os primeiros projectos-lei sobre o tema, que foram, na altura, chumbados. Em 2020 são aprovados, na generalidade, os primeiros diplomas legislativos sobre a eutanásia e em 2021 a votação global final de um texto que já recolhia contributos das diferentes propostas foi, finalmente, aprovada.

O Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa pede pela primeira vez a intervenção do Tribunal Constitucional, que considerou inconstitucionais duas normas. Apesar de os deputados alterarem o texto para acomodar essas objecções, o Presidente da República não promulga o documento e devolve-o ao Parlamento.

Já depois das eleições antecipadas que deram a maioria ao governo de António Costa, em Janeiro de 2022, o processo avança, mas depois de nova fiscalização constitucional e nova correcção, o texto acaba por ser aprovado apenas em Março de 2023. Ainda assim, Marcelo Rebelo de Sousa veta o diploma, mas o Parlamento confirma-o e a lei é publicada em Diário da República a 25 de Maio de 2023, com a indicação que entraria em vigor no prazo de 30 dias.

A regulamentação, que deveria acontecer em 90 dias, nunca se concretizou, levando mesmo a que 250 personalidades do país (incluindo várias figuras do PSD, como o ex-líder do partido Rui Rio) escrevessem uma carta aberta, em Setembro de 2024, exigindo a sua concretização. Já depois disto, em Novembro, 56 deputados do PSD pediram nova fiscalização ao Tribunal Constitucional, o que levou Luís Montenegro a dizer que não avançaria com o processo enquanto não fosse conhecida o acórdão correspondente. O CDS-PP, parceiro da coligação que sustenta o governo anterior e o próximo manifestou-se contra a regulamentação.

A decisão do tribunal foi conhecida a 22 de Abril, mas por essa altura já o Governo tinha caído e aguardava-se por novas eleições legislativas.

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20/06/2025 21:18:54