Portugal gastou 1,2 milhões a indemnizar presos por lhes ter violado direitos humanos

Portugal gastou 1,2 milhões de euros a indemnizar reclusos por violação dos direitos humanos nas cadeias nos últimos oito anos, mas este é um montante que pode aumentar exponencialmente: no tribunal europeu que se ocupa destas matérias, em Estrasburgo, estão pendentes mais cerca de 500 novas queixas contra o Estado português que podem levar a muitas novas condenações.

Em causa está, acima de tudo, a degradação dos estabelecimentos prisionais. “É preciso notar que o número de queixas comunicadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ao Governo tem vindo sempre a aumentar de ano para ano, assim como o volume e o valor das indemnizações atribuídas e pagas, seja por força de acórdão de violação proferido pelo tribunal, seja por resolução das queixas através da formalização de acordo entre o queixoso e o Estado português”, assinala um memorando elaborado em Março passado pela agente do Governo português em Estrasburgo, Ana Garcia Marques.

O extenso rol de queixas, que levou os juízes europeus a considerar que Portugal padece de um problema sistémico nesta matéria, vai da sobrelotação às exíguas dimensões das celas, passando pela falta de privacidade no uso das instalações sanitárias, da qualidade da alimentação e da assistência médica. Na cadeia de Monsanto, por exemplo, o regime de alta segurança que ali vigora faz com que os reclusos passem mais de 22 horas por dia fechados nas celas, referem as mais recentes reclamações comunicadas por Estrasburgo ao Governo português para que este se pronuncie; fala-se em humidade, insalubridade, revistas corporais desproporcionais e restrições excessivas às visitas dos familiares. Também há controlo da correspondência. Tudo isto é susceptível de violar as disposições da Convenção dos Direitos Humanos que proíbem tanto a tortura como os tratamentos desumanos e degradantes, e que preconizam o direito ao respeito pela vida privada e familiar.

Manuais escolares confiscados

A autora do memorando, que foi apresentado no Conselho Superior do Ministério Público, recordou um processo em que Portugal foi condenado por causa de um luso-brasileiro que esteve neste estabelecimento prisional a cumprir 11 anos de um total de 25 depois de ter assassinado a tiro dois polícias. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu que as medidas aplicadas a este homem “excederam as exigências legítimas de segurança na prisão e não eram necessárias, na sua integralidade, para atingir o objectivo prosseguido pelas autoridades”.

“Esteve confinado sozinho na sua cela a maior parte do tempo. Alegadamente, não era informado das actividades existentes na cadeia e os seus pedidos eram ignorados”, descreve a sentença que condena Portugal. “Inicialmente, tinha-se inscrito num curso de direito à distância, mas acabou por desistir porque os manuais foram confiscados pelos guardas prisionais. Tinha contactos limitados com outros reclusos e com a sua família, e [limitações] à utilização do telefone. Era revistado sempre que saía ou entrava na sua cela, incluindo para ir à máquina de venda automática”. Após as visitas ocasionais dos seus pais ou do seu advogado, lamenta o tribunal europeu, “era obrigado a despir-se e a agachar-se para que o seu ânus pudesse ser examinado”.

289queixas enviadas entre 2017 e 2024 ao tribunal contra Portugal, 154 das quais já foram resolvidas – muitas vezes por acordo amigável entre os queixosos e o Estado português, que assim se autodeclarou culpado.

De acordo com os dados coligidos por Ana Garcia Marques, nos últimos oito anos, entre 2017 e 2024 foram enviadas ao tribunal 289 queixas contra Portugal, 154 das quais já foram resolvidas – muitas vezes por acordo amigável entre os queixosos e o Estado português, que assim se autodeclarou culpado.

A partir do momento em que o tribunal decidiu, em 2020, que as cadeias portuguesas enfermavam de um problema estrutural, e não apenas pontual, o país ficou na mira dos juízes de Estrasburgo, que consideraram crucial que Portugal fosse obrigado a assumir compromissos nesta matéria. Pode vir a ser dado um prazo ao Governo para implementar as medidas correctivas que lhe venham a ser indicadas.

Subsiste porém ainda outra questão: a necessidade de criação, em Portugal, de mecanismos judiciais de recurso que permitam às autoridades nacionais, designadamente aos tribunais, pôr rapidamente termo a estas violações e compensar os lesados pelos danos sofridos. Enquanto isso não acontece, os reclusos vão continuar a usar Estrasburgo como um tribunal de primeira instância para fazerem valer os direitos que a justiça portuguesa lhes nega.

Celas de 4 a 7 metros quadrados

Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Justiça aponta uma longa lista de iniciativas destinadas a minorar vários destes problemas. Desde logo, um plano de investimentos que inclui a construção de um novo estabelecimento prisional nos Açores e obras de renovação em todos os seis centros educativos para jovens, mas também a intervenção efectuada “ao longo dos últimos anos, em mais de 30 estabelecimentos prisionais, para reforço da privacidade nas instalações sanitárias em alojamentos colectivos, dando cumprimento às orientações europeias nesse sentido” e a criação de mais instalações para visitas conjugais.

A lotação dos estabelecimentos prisionais tem vindo a ser progressivamente revista, diz ainda o Ministério da Justiça, explicando que os critérios nacionais foram adequados aos estabelecidos pela jurisprudência do tribunal europeu, “considerando-se a área individual de 4 metros quadrados e 7 metros quadrados para alojamentos colectivos e individuais, respectivamente”.

Entre os melhoramentos inclui-se o fecho, em Março passado, em Ponta Delgada, de uma megacamarata, substituída pela requalificação de uma ala da cadeia, bem como a reabilitação de 30 celas em Faro e a resolução do problema das falhas de abastecimento de água em Vale de Judeus. “Quanto à higiene e ao controlo de pragas, o sistema garante uma desparasitação mensal em todos os estabelecimentos prisionais. Cada estabelecimento prisional pode ainda solicitar mais duas. A roupa de cama é mudada semanalmente”, descreve também a tutela, que destaca ainda a criação de uma plataforma digital, a funcionar experimentalmente em dois estabelecimentos prisionais, para permitir aos reclusos o acesso a recursos digitais em ambiente seguro e a apresentação de pedidos e reclamações por via electrónica.

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20/06/2025 20:20:22