Procuradora-geral adjunta e a violência doméstica: “Formação e campanhas de sensibilização são urgentes”

“Impõe-se a formação atualizada, contínua e obrigatória dos magistrados ao longo de toda a sua carreira em determinadas áreas, de forma a desenvolver as capacidades e competências adequadas ao seu desempenho profissional. O ideal seria haver, pelo menos, uma ação de formação anual obrigatória para todos os magistrados sobre a temática da violência doméstica e dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual - e já agora, recursos técnicos e financeiros para a levar a cabo”, diz Helena Leitão, Procuradora-Geral Adjunta, no dia em que é tornado público o último relatório Grevio (grupo de peritos independentes) sobre Portugal, que coloca em xeque, mais uma vez, o sistema judiciário português.

Os peritos do Conselho Europeu, que monitorizam a aplicação da Convenção de Istambul pelos estados subscritores do documento, “instam as autoridades portuguesas a aumentar os seus esforços para garantir formação mandatória e sistemática inicial e ao longo do serviço para membros do sistema judicial sobre todas as formas de violência contra as mulheres cobertas pela Convenção de Istambul”.

Mais. No documento, com diversas recomendações para que o país possa continuar a evoluir e a adequar-se plenamente à Convenção de Istambul, a grande maioria das medidas urgentes identificadas pelo Grevio estão precisamente ligadas ao sistema judicial, considerado o ponto mais fraco no combate à violência sobre as mulheres.

Helena Leitão, até agora o único elemento português a ter assento no Grevio (de 2015 a 2023), lembra que a formação contínua “é um direito e um dever dos magistrados, designadamente no que toca à violência doméstica, e que todos os magistrados têm que frequentar um número mínimo e máximo de ações de formação por ano”, número esse definido pelos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público.

Isso significa que havendo um número máximo de ações de formação contínua por ano que cada magistrado pode frequentar “estes optam muitas vezes por frequentar ações sobre temáticas diversas, que não incluem necessariamente as ações sobre violência contra as mulheres ou violência doméstica, por lhes interessarem mais outros assuntos do seu dia-a-dia judiciário ou por já terem frequentado uma ação dessa natureza um ou dois anos antes”.

Nos termos da lei, o Centro de Estudos Judiciários (CEJ), onde Helena Leitão foi docente, desempenha um papel essencial, para não dizer único, na formação de magistrados no que diz respeito à igualdade de género e à violência doméstica, visando sensibilizar os magistrados para estas questões, bem como dotá-los das competências necessárias para trabalharem com casos relacionados com estes temas.

O problema, de acordo com a magistrada não está na formação inicial. “No 1.º ciclo da fase teórico-prática do curso de formação para magistrados, pelo qual todos os magistrados e magistradas têm obrigatoriamente que passar, os direitos das mulheres e crianças, são objeto de referência particularizada e as diversas matérias abordadas têm sempre como pano de fundo a Constituição da República e a Convenção de Istambul”, diz.

Nesta fase, “os crimes de violência doméstica e contra a liberdade e autodeterminação sexual são objeto de particular atenção, com ênfase na proteção das vítimas – consideradas pela lei como vítimas especialmente vulneráveis – e nas consequências destes crimes no exercício das responsabilidades parentais”.

O problema está no escasso número de ações de formação contínua que os magistrados podem frequentar anualmente, acabando por limitar a escolha e o acesso de todos e de todas, às ações de formação sobre violência doméstica e violência contra as mulheres.

Crimes patrimoniais vs crimes pessoais

Ainda no que diz respeito ao sistema judiciário, os peritos do Grevio também salientam a urgência de “as autoridades portuguesas garantirem que as sanções são proporcionais à gravidade da ofensa em todos os casos de violência contra as mulheres abrangidas pela Convenção de Istambul, em particular os casos de violência doméstica e sexual”. Isto porque, consideram, o país está permanentemente confrontado com “sanções lenientes e desproporcionais emitidas pelo sistema judiciário, em particular nos crimes de violência doméstica”, em que a pena suspensa ou a própria suspensão dos processos são a norma.

“Relativamente a esta matéria, embora eu reconheça que as penas aplicadas em processos-crime aos autores dos crimes de violência doméstica e/ou violência contra as mulheres têm evoluído, nomeadamente, tendo em conta que já não é um tabu aplicar uma pena de prisão efetiva a um marido ou companheiro agressor em primeira condenação, a verdade é que muito há ainda a fazer”, diz Helena Leitão , lembrando que os crimes de natureza patrimonial “continuam a ser mais severamente punidos do que os crimes de natureza pessoal, como os de violência doméstica ou sexual”.

A magistrada considera ainda que “a suspensão provisória do processo é admitida em termos demasiado latos, com prejuízo para as vítimas mulheres, o crime de violação é ainda semi-público, enfim, muito há a fazer nesta matéria”, diz, deixando um alerta. “Espero igualmente que nas próximas reuniões do Conselho da Europa para o efeito, o Governo Português não deixe de apresentar candidatos para membro do Grevio”.

 

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20/06/2025 20:23:14