Supremo Tribunal de Justiça está a analisar sete processos de estafetas
O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a existência de contrato de trabalho entre um estafeta de entregas e a Glovo, contrariando os argumentos da empresa e dos tribunais inferiores. A decisão inédita apenas tem efeitos para o caso em concreto, mas o STJ está a analisar mais sete acções, da autoria do Ministério Público (MP), relacionadas com a aplicação do artigo 12.º-A do Código do Trabalho aos trabalhadores das plataformas.
“Não é garantido que as outras decisões venham no mesmo sentido, se os factos em análise forem um bocadinho diferentes”, alerta João Leal Amado, professor na Faculdade de Direito de Coimbra.
As semanas antes do Verão, refere, “vão ser decisivas” para se perceber se o STJ tem um entendimento consistente sobre a aplicação da norma ou se, pelo contrário, vai decidir de forma diferente à semelhança do que tem vindo a acontecer nos tribunais de primeira instância.
No acórdão, com data de 28 de Maio e aprovado por unanimidade, o Supremo dá razão ao MP, concluindo que a Glovo não apresentou factos suficientes que permitissem afastar os indícios que apontavam para uma relação de trabalho dependente. E, por isso, reconhece a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre o estafeta e a plataforma, com início em 1 de Junho de 2023 e até Janeiro de 2024 (data em que deixou de prestar serviços para a empresa por iniciativa própria).
Para Leal Amado, um dos elementos que terá pesado nesta decisão tem a ver com o facto de terem sido dados como provados cinco dos seis indícios previstos na lei.
O STJ refere precisamente que o tribunal de primeira instância e o Tribunal da Relação de Lisboa já tinham concluído que se verificavam cinco dos seis elementos que indiciam uma relação de trabalho. E dá destaque a dois deles: o facto de a plataforma digital fixar a retribuição ou estabelecer os seus limites e o facto de a Glovo controlar e supervisionar a prestação da actividade em tempo real através de algoritmos.
Mas ao contrário dos tribunais inferiores, os três juízes-conselheiros que analisaram este caso entenderam que a empresa são conseguiu afastar os indícios.
Embora entendam que "a qualificação de determinada situação jurídica exige sempre uma abordagem holística", os juízes consideram que, no caso em concreto, há, desde logo, "uma forte inserção do estafeta na organização algorítmica" da empresa, encontrando-se até abrangido por um seguro de acidentes pessoais.
Os juízes destacam ainda o facto de a plataforma digital e as aplicações que lhe estão associadas serem "instrumentos de trabalho essenciais do estafeta".
"Toda a sua [do estafeta] actividade está condicionada pela efectiva ligação/conexão a estas ferramentas digitais, pelo que, neste contexto, não assume relevo decisivo o facto de o estafeta escolher a área em que trabalha, poder recusar serviços e conectar-se/desconectar-se da aplicação sempre que o entenda, sem ter de cumprir qualquer horário predefinido, nem de cumprir qualquer limite mínimo de tempo de disponibilidade", lê-se no acórdão assinado pelo conselheiro Mário Belo Morgado.
Os juízes consideram que a existência de um horário de trabalho não é elemento essencial do contrato de trabalho e também não valorizam o facto de o estafeta poder alterar o valor-base dos serviços mediante a aplicação de um multiplicador, "uma vez que esta ferramenta era disponibilizada pela própria ré e dentro dos limites por esta fixados".
"Não pode deixar de se reconhecer que o facto de o estafeta pagar à [Glovo] uma taxa pela utilização da plataforma contrasta especialmente com a matriz típica de uma relação de trabalho subordinado. Todavia, de forma alguma se pode conferir a este elemento, só por si, relevância decisiva, tanto mais que, como se sabe, o recurso a cláusulas contratuais com características de autonomia se encontra com frequência associado ao abuso do estatuto de trabalhador independente e às relações de trabalho encobertas, flagelo que com a presunção de laboralidade em apreço se visou, precisamente, combater", assinala o STJ, concluindo que a empresa "não logrou ilidir a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital".
Em declarações enviadas por escrito ao PÚBLICO, um porta-voz da Glovo garante que a decisão não terá impactos na forma como a empresa organiza a sua actividade em Portugal, dado que apenas diz respeito a um caso em particular.
"Continuaremos a defender a legalidade do nosso modelo operacional em relação à decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Esta decisão analisou um caso em particular e não é de todo uma decisão uniformizadora”, afirmou.
Esta é a segunda vez que o STJ se pronuncia sobre o artigo 12.ºA. Há uma semana, e a propósito de um processo que envolvia quatro estafetas, já tinha decidido que esta norma é aplicável às relações jurídicas iniciadas antes da sua entrada em vigor a 1 de Maio de 2023, desde que elas se mantenham.