Dos advogados autorizados a trabalhar em Portugal, 13% são brasileiros
Portugal tem hoje por volta de 32 mil advogados e cerca de 13% deles, ou seja 4039, são brasileiros. Destes 2301 são mulheres e 1738 homens. E 60% desses profissionais brasileiros estão na região de Lisboa, segundo a Ordem dos Advogados Portugueses (OA). Os números expressivos confirmam que a relação entre Brasil e Portugal, no campo jurídico, não é de hoje: os brasileiros começaram a chegar a Portugal para cursar Direito antes da fundação das primeiras faculdades do curso no Brasil, como a de Olinda, no estado de Pernambuco, e a do Largo de São Francisco, em São Paulo, no ano de 1827.
“Acho que os portugueses se sentem lisonjeados pelo fato de terem um país que cativa os colegas brasileiros, que aqui chegam para estudar e trabalhar como advogados. Essa vinda de tanta gente para a Faculdade de Direito de Coimbra ou para a Faculdade de Direito de Lisboa ou quaisquer outras universidades portuguesas é um excelente reconhecimento da qualidade do nosso ensino. Isso é extremamente positivo para o país”, afirma João Massano, bastonário (presidente) da Ordem portuguesa.
O idioma em comum, os acordos e afinidades históricas entre os dois países e a tradição de faculdades como as de Coimbra, Lisboa, Braga e Porto ajudam a explicar os motivos para que muitos brasileiros atravessem o Atlântico para cursar graduação, pós-graduação ou mestrado e, posteriormente, acabam por criar raízes em Portugal.
A advogada carioca Simone Marins faz parte desse grupo. Graduou-se em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), fez mestrado e, no momento, cursa doutorado em Portugal. Já morou na Irlanda e em Malta e está inscrita na Ordem de Portugal desde 2014. Veio estudar por um ano e ficou. Hoje, ela vê com orgulho a atuação dos compatriotas no país.
“Eu defendo a proteção dos direitos fundamentais, constitucionais e humanos. E os advogados brasileiros deram mais voz aos direitos dos imigrantes. Tiraram esses direitos de uma fatia esquecida dos procedimentos administrativos e os colocaram em primeiro plano para que fosse possível assegurar, dentro das normas de direito administrativo e processo administrativo, o combate a violações praticadas pelo órgão de imigração”, afirma Simone, que já trabalhou para clientes de 85 nacionalidades diferentes.
Ela cita, principalmente, os direitos dos imigrantes e usa expressões como inclusão e advocacia ativa nos tribunais para definir o trabalho que desenvolve. Dessa forma, luta pelo que classifica como a “implosão de um sistema marcado historicamente por marginalizar imigrantes”. “Ao contrário de alguns anos atrás, hoje me sinto abraçada em minha atuação. Estou inscrita na Ordem de Portugal desde 2014, quando éramos, acredito, menos de 500 profissionais brasileiros trabalhando no país”, diz.
Pessoal e profissional
O também carioca Bruno Gutman é formado em Direito pela Universidade Estácio de Sá (2002), obteve a inscrição na Ordem portuguesa em 2018 e começou a atuar como advogado em Portugal no ano seguinte. Ele é o único brasileiro membro da Delegação de Braga, Norte do país, que representa a OA na cidade. “Integrar a direção da maior delegação do país representa não apenas a minha integração no meio jurídico português, mas, também, um desafio que exige responsabilidade, sensibilidade intercultural e compromisso com a valorização da advocacia, especialmente na questão de ajudar e melhorar a integração dos advogados brasileiros com os colegas portugueses”, destaca.
Para ele, dominar o ordenamento jurídico português é o primeiro grande desafio, seguido da adaptação da linguagem jurídica brasileira ao padrão do português europeu. O idioma é o mesmo, mas há diferenças significativas na forma e no conteúdo. Para que a atuação enquanto advogado seja eficaz e ética, informa Bruno, é fundamental que sejam respeitadas as convenções e os usos locais.
“Os advogados brasileiros trouxeram uma abordagem mais dinâmica em termos de comunicação, especialmente no uso das redes sociais como ferramenta de aproximação com os clientes. No entanto, é preciso ter atenção: há casos de excessos, por parte de alguns profissionais, com uso de práticas, em redes sociais, que extrapolam os limites estabelecidos pelo Estatuto da Ordem dos Advogados, infringindo normas éticas e deontológicas que regem a profissão em Portugal”, assinala.
A atuação de advogados brasileiros em Portugal, em quantidade e qualidade, chama a atenção de Bruno positivamente. Ele diz que, enquanto em Portugal, 13% dos advogados são brasileiros, em Braga, chegam a 20% dos inscritos na Delegação. O profissional assinala que, hoje, há cerca de 550 mil brasileiros legalizados em Portugal e muitos deles contratam advogados oriundos do Brasil inscritos na Ordem de Portugal “porque eles compreendem tanto o contexto jurídico quanto as especificidades culturais de seus clientes”.
“Posso dizer que o perfil dos meus clientes está bastante equilibrado — cerca de “meio a meio” entre brasileiros e portugueses, além de outras nacionalidades. Essa diversidade reflete a natureza internacional do meu trabalho, que tem um foco especial em áreas como startups, investimentos, nacionalidade e consultoria jurídica para estrangeiros. Atender diferentes públicos exige sensibilidade intercultural, conhecimento jurídico aprofundado e uma abordagem estratégica que respeite os contextos específicos de cada cliente”, acrescenta Gutman.
Qualificação é diferencial
Nascido em São Paulo, Fernando Senise trabalhou no Brasil como advogado para várias empresas privadas. Formou-se em Direito pelo Centro Universitário da Fundação Instituto de Ensino Para Osasco (FIEO), em 2002, e está em Portugal desde 2018. Tem licenciatura em Direito reconhecida no Brasil e em Portugal, onde fez mestrado em Direito de Empresa e pós-graduação em Direito Fiscal, ambos pela Universidade de Lisboa. Para ele, a qualificação dos advogados brasileiros é um diferencial em território luso.
“Portugal, no contexto europeu, se submete a regras internacionais, não apenas à legislação interna. Então, é importante para o advogado brasileiro ou estrangeiro, que trabalha no país, estar atento não só às normas internas, mas, também, às da União Europeia”, frisa Senise, que vê na agilidade em certa informalidade no atendimento duas das maiores qualidades dos juristas compatriotas.
A causa da imigração, acrescenta ele, é a que mais atrai os advogados brasileiros, que atendem também pessoas de outros países. “Em Portugal, há imigrantes de Estados Unidos, Canadá, China, Chile, Suíça, Peru, Costa Rica, Alemanha. Estamos direcionados para o mercado brasileiro, mas Portugal tem uma diversidade muito grande de pessoas. A demanda é majoritariamente brasileira, contudo, o mercado é bastante complexo e há espaço para todos”, diz o advogado.
Advogados brasileiros em Portugal têm respondido às necessidades da sociedade
Para o bastonário da Ordem dos Advogados, João Massano, a presença de profissionais oriundos do Brasil é uma oportunidade de enriquecimento mútuo.
O acordo entre a Ordem dos Advogados do Brasil e a de Portugal foi rompido. Há perspectiva de retomada?
Tenho mantido um diálogo permanente com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), sobre a integração dos advogados brasileiros em Portugal. As conversações com a OAB representam uma oportunidade para estabelecermos protocolos de cooperação técnica e partilha de boas práticas que facilitem a integração profissional e cultural dos advogados brasileiros.
Atualmente, 13% dos advogados atuando em Portugal são brasileiros. Qual o significado dessa migração?
Esta realidade demonstra a vitalidade e atratividade do sistema jurídico português e da nossa economia. Estes colegas têm contribuído significativamente em áreas como a nacionalidade portuguesa e a imigração, respondendo a necessidades reais da sociedade. É uma oportunidade de enriquecimento mútuo, e reconheço a necessidade de garantir que todos os advogados, independentemente da nacionalidade, cumpram os mesmos padrões de qualidade e ética profissional que caracterizam a advocacia portuguesa.
Quais os desafios hoje para a profissão de advogado?
A transformação digital é inevitável. É essencial que a classe se adapte a estas mudanças. É preciso melhorar as condições de trabalho, combater a morosidade processual e garantir que os atos dos advogados sejam respeitados. Por fim, é fundamental estabelecer um diálogo institucional com o Governo.
Vários advogados têm usado Inteligência Artificial no seu trabalho. É uma tendência?
É, inequivocamente, uma tendência que se expandirá ainda mais nos próximos anos. A Inteligência Artificial está a redefinir as práticas no setor jurídico, incluindo a revisão automatizada de contratos, a pesquisa jurisprudencial avançada, a organização documental inteligente e a análise de due diligence (investigação aprofundada). Isso permite que os advogados se concentrem em tarefas genuinamente estratégicas. Além do mais, a democratização da IA está a permitir que advogados com recursos limitados acedam a ferramentas que anteriormente eram exclusivas de grandes organizações.
Quais os riscos profissionais e éticos da utilização da inteligência artificial na profissão de advogado?
O maior perigo é confiar cegamente nas respostas da Inteligência Artificial sem verificação crítica. Mas, o maior risco é a perda da perspectiva humana, pois a advocacia requer empatia, compreensão das necessidades do cliente e capacidade de negociação. O uso dessas plataformas pode ainda comprometer o sigilo profissional e a proteção de dados sensíveis.
O Judiciário vem sofrendo ataques por parte do poder político em vários países. Como enfrentar o risco do autoritarismo?
Esta é uma das questões mais prementes do nosso tempo. Temos o dever de defender o Estado de Direito e alertar para qualquer tentativa de instrumentalização política do sistema judicial. Mas a defesa da democracia não pode depender exclusivamente do poder judicial. É necessário que todas as instituições democráticas desempenhem seu papel de vigilância e defesa dos valores democráticos.
Ordem dos Advogados do Brasil negocia novo acordo com instituição portuguesa
Presidente da Ordem, Beto Simonetti afirma que os profissionais brasileiros não querem ocupar espaços alheios, mas contribuir para o fortalecimento da advocacia.
O acordo entre a Ordem dos Advogados do Brasil e a de Portugal foi rompido. Há perspectiva de retomada?
O fim do acordo entre as ordens não significa o fim do diálogo. É importante destacar que o rompimento não partiu do Brasil, mas se deu de forma unilateral. As conversas para restabelecer essa parceria já estão em andamento com o presidente João Massano,
e estamos certos de que retomaremos esse entendimento a partir de novos protocolos de cooperação, pautados pelo equilíbrio e pelo respeito mútuo.
Atualmente, 13% dos advogados atuando em Portugal são brasileiros. Qual o significado dessa migração?
Esse dado reflete a força e o alcance da advocacia brasileira. Temos uma das maiores comunidades jurídicas do mundo, com profissionais altamente capacitados, que veem em Portugal uma oportunidade legítima de exercer a profissão em um ambiente de afinidades culturais, jurídicas e linguísticas. Essa migração representa, também, um desafio institucional: o de assegurar que esses colegas sejam recebidos com respeito e tenham suas prerrogativas preservadas. O objetivo não é ocupar espaços alheios, mas contribuir para o fortalecimento da advocacia, como esperamos que também aconteça no Brasil em relação aos profissionais portugueses.
O que a Ordem dos Advogados do Brasil pode fazer pelos advogados brasileiros em Portugal?
Trabalhamos para que seus direitos sejam respeitados e para construir pontes de diálogo com a Ordem portuguesa. Nossa atuação é focada em garantir condições justas de exercício profissional e em buscar soluções quando há obstáculos ao pleno exercício da advocacia por nossos compatriotas.
Quais os desafios hoje para a profissão de advogado?
A advocacia enfrenta um cenário complexo, marcado por tentativas de cerceamento de direitos profissionais, instabilidade econômica e mudanças profundas trazidas pela tecnologia. Ainda vemos decisões judiciais que violam prerrogativas e desvalorizam a atuação da classe. Nosso papel, enquanto Ordem, é atuar com firmeza na defesa institucional da profissão, garantindo que advogadas e advogados possam exercer seu trabalho com independência, segurança e respeito.
Esta notícia faz parte de um suplemento produzido, editado e distribuído pelo PÚBLICO, com o apoio da Fundação Getulio Vargas, da Faculdade de Direito – Universidade de Lisboa e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Este apoio não configura qualquer intervenção da Fundação Getulio Vargas no processo editorial. O suplemento é parte integrante da edição de 2 de Julho do PÚBLICO.