Discurso do Presidente do IAPI, por ocasião do IV Colóquio do IAPI (17 de Novembro)

 

20-11-2006

Discurso do Presidente do IAPI, por ocasião do IV Colóquio do IAPI (17 de Novembro)
 

Meu Bastonário, Exmº Senhor Presidente da Câmara dos Solicitadores, Minha querida conterrânea e Presidente da Câmara Municipal de Castro Daire, Exmº senhor Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados de Coimbra, também ele filho querido desta terra , Senhor Presidente da Junta de Freguesia senhor gerente da C.G.D. QUERIDOS COLEGAS, SENHORES SOLICITADORES, senhoras e senhores convidados:

Estamos hoje e aqui nesta terra de Castro Daire, terra dos bons ares, antiga fortificação lusitana, aonde a luz se entrelaça em linho, o milho se espreguiça ao sol e a serra nasce da água.

Somos filhos do Rio Paiva, ou a Paiva, se quiserem como é, por amor e carinho, tratado pela nossa gente.

Vivemos no regaço da serra do Montemuro, aonde o tempo perdeu o relógio do transitório e respiramos a eternidade das coisas imperecíveis.

Somos, assim, como o chão de granito e a inclemência do frio e calor, sem meias medidas, aonde nos vestimos com palhoças e capuchas, socas e tamancos e com orgulho vemos os calos do trabalho agreste como esse chão que nos moldou, mas vemos também outros calos, bem mais duros, feitos de muito e imerecido isolamento.

Há uma fonte nesta vila que se chama a Fonte dos Peixes que reza a lenda velhinha que quem da sua cristalina água beber desta terra irremediavelmente se há-de prender e para sempre ficar dela enamorado.

A vós espíritos livres, entre os mais livres, quem sabe se esta nossa pobre mas franca hospitalidade, abençoada pela chuva que hoje cai, não será mesmo um pouco dessa água da Fonte dos Peixes que vos há-de encantar e semear alguma saudade. Os que ficarem ou os que um dia cá voltarem serão sempre velhos e queridos amigos reencontrados.

Depois de vos falar um pouco da minha Terra Vou falar-vos um pouco da casa da Justiça.

Vivem, na maior parte dos seus compartimentos, quais vestais da deusa justiça, que para a servirem preservam rituais de oblação em que os minutos valem segundos e as horas minutos, e que, apesar de não serem eleitos por ninguém, se sentem a encarnação simultânea da aspiração humana e da vontade divina. Habituadas a ouvir e, muitas vezes a fazerem que ouvem, vingam-se em páginas e páginas onde os seus oráculos irão ser escutados por humildes cidadãos para quem a ignorância da lei não escusa. Têm o hábito de apenas falarem aos seus iguais, e só por dever de função se dirigem, em audiência a estranhos ou lhes dão a palavra e, quando tal acontece, algumas bocas saúdam sublime graça e dizem cheias de júbilo reverencial “com a devida vénia”.

No piso superior da mesma casa da Justiça afanam-se teóricos e doutrinários instruídos na arte dos labirintos e passam a vida a construir corredores e mais corredores, há quem lhes chame leis, cada um mais sinuoso que o outro, e tudo para guardarem e preservarem o sacrossanto lugar aonde, privilegiadamente, vivem.

Para os afazeres desta casa há pessoal de serviço doméstico, funcionários, que redigem e cumprem despachos, promoções, cumprem horários e prazos e sempre que podem vão encobrindo a sujidade mais à vista, especialmente no meio dos processos, aonde se vai acumulando a outra já sem espaço e sem idade.

Depois há os aborrecidos, os irreverentes, que não conhecem protocolos, regras, e que vivem a importunar, a bater e a abrir portas, a quererem por força acabar com algum lixo, em especial o mais entranhado, e que são os advogados e solicitadores, que os vêm incomodar a toda a hora magistrados e teóricos que estudam de dia, para dormirem sempre que podem, e que assim se vêem agarrados, perturbados, interrogados, e a sua paz e a paz desta sua casa, transforma-se num rebuliço, num tumulto, num desassossego.

Caros Colegas e Solicitadores Não queremos viver numa Casa da Justiça assim, por isso Benditos sejam os nossos continuados tumultos, desassossegos e todo o incómodo e desarrumo que criamos a esta casa da Justiça que é mansão e até palácio, por certo para alguns, mas é também casebre e choupana para outros, algumas vezes, uma porta que nunca se abre e para a maioria dos cidadãos uma bafienta sucessão de longos e enigmáticos meandros sem fim, aonde se caldeiam injustificáveis privilégios a inadmissíveis angústias tudo no meio de muito lixo.

Bendito seja o nosso veemente inconformismo e o nosso protesto e que com eles se abram todas as janelas, todas as portas e corredores desta casa, para que se torne mais arejada e mais franqueada aos cidadãos.

Não devemos sentir-nos superiores a ninguém, mas não deixemos nunca que alguém, na administração da Justiça, se possa considerar mais que um Mandatário Judicial, nem mesmo o Juiz, pois ele só é Juiz porque existe antes o Cidadão, exactamente essa Pessoa para que vive a Justiça e que nós devemos saber merecer a Honra e ter a Dignidade de Bem Representar perante ele.

Cada qual no seu lugar, na sua função, em elevado e recíproco respeito.

Foi neste quadro de pessimismo funcional que nasceram os julgados de paz.

Uma velha realidade de outros tempos, como são os julgados de paz, recuperada para as aspirações dos nossos dias. A sentença que demorava anos passava a demorar horas, a papelada escrita daria lugar à oralidade, as petições e contestações seriam verbais e em alguns casos, por vontade das partes, era a própria lei a ser desjudicializada e, à sua revelia e ao contrário do que ela pudesse estipular, poder-se-ia aplicar a mera equidade, numa justiça dita mais próxima dos cidadãos.

Mas, infelizmente, erraram os julgados de paz. E não foi só por querem ser a boa excepção de serem mais rápidos e informais princípios que se querem para a universalidade dos tribunais judiciais e como se a prática futura destes mesmos tribunais judiciais tivesse de eternizar o seu contrário e continuarem a terem de ser lentos, demasiado formais e afastados dos cidadãos.

Os Julgados de paz, na minha opinião, erraram quando se deixaram enfeudar a interesses político – partidários foi o seu primeiro grande erro; A seguir esqueceram os mandatários judiciais e finalmente erraram na exclusiva atribuição das suas competências.

Uma vez mais esqueceu-se a História e o porquê da sua anterior extinção e de novo se acolheram em mãos políticas ou, se quiserem, a lei veio a atribuir às autarquias o duplo papel de facultarem as instalações e os funcionários para o apoio administrativo e atendimento nos julgados de paz.

Novos empregos, novas salas e sedes dentro da estrutura autárquica e tudo organizado e a funcionar com o seu beneplácito com interesses que nada têm a ver com a isenção e imparcialidade inerentes à transparência do que deve ser justo.

Por sua vez, para fiscalizarem a organização, o funcionamento e a actuação dos julgados de paz criou-se um Conselho de Acompanhamento que não tem qualquer representante da Ordem dos Advogados e da Câmara dos Solicitadores mas que tem representantes da Associação Nacional dos Municípios Portugueses e de todos os partidos políticos com assento parlamentar.

Quando se mistura a política e a justiça, esta, tem tendência a asfixiar por falta de ar puro e os neófitos julgados de paz aí estão a anunciarem precoce definhamento.

Depois o 2º grande erro foi, neste âmbito de total informalidade, proximidade, oralidade e celeridade, em que o cidadão, mais do que em qualquer outro tribunal, se encontra entregue a si próprio e pedia por isso mesmo maior protecção, excluiu-se a obrigatoriedade da presença do mandatário, institucionalizando-se, involuntariamente, no próprio tribunal, a procuradoria ilícita, pois alguém que não é advogado ou solicitador vai, por exemplo, ter de aconselhar o cidadão em que é que consiste e se o seu caso deve ou não deve ser julgado por estrita legalidade ou por mera equidade.

Finalmente, numa concepção restritiva da Justiça, que eu chamaria de citadina, confundiram-se bagatelas jurídicas com acções de valor mais baixo como se acções de direitos reais, por regra de valor diminuto, se pudessem confundir com as milhentas acções de dívida, o que nos conduz ao 3º grande erro dos nossos julgados de paz: Quando se pensaria que as acções de fácil análise e decisão e que segundo todos os estudos e opiniões entopem os tribunais portugueses, que são as pequenas dívidas de crédito ao consumo, de prémios de seguro das empresas e sociedades seriam as primeiras a serem desviadas para os julgados de paz, veio a lei dizer, de uma forma absolutamente incompreensível, que para tais acções os julgados de paz não têm competência e sabem porquê? Porque se temeu que, tal como acontece com os tribunais judiciais, os julgados de paz acabassem também eles por ficar entupidos. E assim mantêm-se essas pequenas dívidas de valor diminuto nos tribunais judiciais e ao invés, retiraram-se deles, as difíceis acções de direito reais, enviando-as para os julgados de paz, acções de aturada análise e decisão aonde, em especial, nos nossos meios rurais se semeiam e colhem em sangue os seus diferendos e disputas.

Quanto à Procuradoria Ilícita se continuarmos a calar e esperar que sejam sempre os outros a perseguir quem nos rouba a dignidade e a honra da nossa profissão, que é no fundo a nossa vida, estamos a esquecer o nosso mais profundo múnus que é sermos sempre a voz insubmissa à sujidade e mentira e o punho bem erguido contra o ilícito e o crime e que devemos ser sempre os primeiros, na linha da frente, na defesa dos legítimos interesses e direitos dos cidadãos e do próprio Estado de Direito.

Todos nós nos deveríamos sentir obrigados, em consciência e por expresso dever deontológico, a denunciarmos o crime de procuradoria ilícita e a sentirmos que o nosso silêncio também ele é cúmplice de todos os que nos envergonham enquanto ilícitos procuradores continuando a enganar e a roubar os cidadãos.

Por tais razões entendo que no art. 85 do nosso Estatuto, nos Deveres para com a comunidade, se deveria acrescentar a alínea i) como dever de todos nós : Denunciar a Procuradoria Ilícita.

A Advocacia e solicitadoria já são preventivas na sua essência. Recorre-se a elas para prevenir a injustiça, a ilegalidade. O que acontece é que esse recurso é demasiadas vezes tardio, e a prevenção passa a remédio e o mal que poderia ter sido evitado piora e agrava-se o que é inaceitável numa sociedade evoluída aonde os bens essenciais deverão ser prevenidos, a tempo, por cidadãos mais esclarecidos.

A disciplina da Cidadania, desde a Escola Primária, torna-se inadiável por forma a cultivar a defesa e a dignificar reais valores da Justiça e do Direito, o acesso aos tribunais e quem são os legítimos e legais mandatários dos cidadãos.

Vou terminar, mas antes há que alertar todos vós, em especial os advogados em prática isolada, nós que, continuadamente temos sido os profissionais que mais têm sofrido com todas as milhentas alterações que põem em causa a nossa actividade. Desde as notificações entre colegas, as contas – clientes, a extinção das férias judicias que, ao contrário das sociedades de advogados em que há sempre um colega disponível, nós nem a férias temos direito e temos de estar sempre de plantão com prazos a cumprir.

Vem aí uma nova reforma judiciária. Um novo mapa judiciário. Esperemos que não se olhem a interesses orçamentais economicistas e para haver dinheiro para comprar aviões e submarinos, ou construir o TGV, se esqueçam novamente dos cidadãos.

Se o 25 de Abril trouxe algo de importante e decisivo foi sem dúvida a democratização mas também a descentralização deste País. Esperemos que este mapa não faça da pequena vila e da pequena comarca o alvo a abater, que tenha em conta que a periferia tem tanto direito à vida e à justiça como o litoral e os grandes centros.

Desertificar ainda mais o país extinguindo os tribunais de comarca é um passo no lamentável destino de transformarmos, progressivamente, a justiça num bem elitista . Queremos um mapa em que as referências sejam as pessoas. As pessoas e os seus justos anseios independentemente de falsas prioridades orçamentais. A História ensinou-nos, uma outra coisa, que quem poupar hoje, prejudicando o inadiável, acabará sempre por gastar o dobro no amanhã com irreparáveis prejuízos para todos os cidadãos.

Vivemos em tempos de Pacto. Pacto para a Justiça e isso dá-nos esperança que as reformas sejam desta vez mais sérias, eficazes e duradouras.

É urgente pôr fim à balbúrdia que tem sido o patrocínio oficioso, havendo imensos colegas em início de carreira a quem o mesmo não lhes está a ser liquidado, o acesso ao direito, a acção executiva, aonde quem executa fica tantas vezes como um tolo no meio da ponte sem saber se é o solicitador de execução ou o tribunal que nada executa, há que simplificar códigos processuais, e implementar a contingentação processual, acabando com a mentira, que são os mandatários os responsáveis pelos atrasos nos processos.

É tempo de acabar com a perniciosa distinção entre comarcas como se fosse destino das mais isoladas servirem de complemento de estágio dos recém formados magistrados. Magistrados que deveriam manter-se na mesma comarca por 2 ou 3 anos, pelo menos para não terem desculpa de não acabarem com alguns processos que lhes nascessem nas mãos, devendo os seus serviços ser, semestralmente, inspeccionados.

É tempo de todos os agentes judiciais compreenderem que a sua função primária é um serviço de cidadania e que a justiça não é um favor ou privilégio que se faculta, mas o exercício do primeiro de todos os direitos dos cidadãos.

É tempo de os Mandatários Judiciais actuarem como paladinos de uma material cidadania e se unam às forças vivas da comunidade verdadeiramente interessadas na progressiva obtenção de um melhor Estado de Direito tendo como bússola os reais e legítimos direitos dos cidadãos.

Bem Haja meu Bastonário pela sua presença neste Colóquio, e consigo estão muitos e muitos milhares de advogados, de alguns já falecidos, está a memória e o exemplo, mas de todos está a força das suas vidas, dos seus ideais, das quais, para nossa honra e para honra da nossa Ordem, têm sido dos melhores entre os melhores.

Bem Haja senhor Presidente da Câmara dos Solicitadores com a sua presença reafirmou uma vez mais a inabalável certeza do mútuo e recíproco respeito e bom convívio entre os advogados e os solicitadores portugueses e que também estes estão empenhados em estreitar laços e forças pelo objectivo comum por uma Boa Administração da Justiça.

Senhora Presidente da Câmara Municipal de Castro Daire, em si também me vejo representado, enquanto filho desta terra, pois a sua presença representa todos os castrenses que muito se honraram em receber tão ilustres participantes deste Colóquio Nacional. Bem – Haja pela ajuda e boa compreensão deste município sem as quais aquele seria impossível.

Bem – Haja aos senhores Presidentes dos Conselhos Distritais da Ordem dos Advogados do Porto e de Coimbra ao meu querido conterrâneo Daniel Andrade, ter-vos hoje e aqui, ao nosso lado, traduz a unidade de toda a advocacia portuguesa e sobretudo a vitalidade e a atenção dos órgãos da nossa Ordem nesta demanda de mais e melhor direito.

Ao senhor Presidente da Junta de Freguesia de Castro Daire e ao senhor Gerente da Caixa Geral de Depósitos também o meu profundo Bem-Haja pela vossa presença e pela total disponibilidade para a realização deste Colóquio.

Bem Haja ao Advocal pela sua presença, grupo que tal como o Coro de Santo Ivo, é exclusivamente formado por advogados e que já nos encantou com a sua sublime harmonia e beleza vocal.

Bem Haja ao Coro de Santo Ivo, por uma vez mais serem também eles o belo canto destes nossos espaços de reflexão, decisão e convívio.

Bem Haja a todos os ilustres e distintos colegas e solicitadores que nos apresentaram brilhantes alocuções e fizeram intervenções.

Bem Haja à Delegação da Ordem dos Advogados de Castro Daire e a todos os que trabalharam e deram o melhor do seu esforço para tornar possível este Colóquio.

Bem Haja a todos vós queridos colegas e queridos solicitadores e queridos convidados, a vossa presença era imprescindível, única e insubstituível e sem a qual nada do que aconteceu hoje faria, sequer, sentido.

Muito obrigado

João Sevivas

08/10/2024 23:34:35