IV Congresso dos Advogados Portugueses (1995)
IV Congresso - Discurso de Abertura
Discurso de abertura do IV Congresso dos Advogados Portugueses pelo Bastonário Júlio de Castro Caldas
FUNCHAL 1995
Na abertura do IV Congresso Ordinário, a Ordem dos Advogados sauda e agradece reconhecidamente a honra que lhe dá a presença dos mais altos Magistrados do Estado, e em especial Sua Excelência o Presidente da República, sempre constante, em todas as realizações dos Advogados.
Sauda e agradece ao Governo e Sua Excelência o Senhor Ministro da Justiça, o apoio dado à realização deste Congresso, sem o qual porventura, muito dificilmente o poderíamos realizar.
Sauda a Madeira e o Presidente do seu Governo, pelo apoio e pela forma tão portuguesa, cosmopolita e amiga com que nos recebe.
Sauda em especial os Colegas de Macau, Moçambique, Angola, Guiné, Cabo Verde, na pessoa dos Presidentes das suas Ordens e Associações, que generosamente quiseram vir partilhar connosco os anseios, as preocupações e os problemas dos nossos sistemas judiciários e que sem qualquer reserva, ou limitação, haveremos de debater.
Sauda todos os colegas, em especial os Delegados, em especial os Delegados vindos das Comarcas de Portugal, que aqui se reúnem numa demonstração de vitalidade, capacidade de mobilização e organização, na vontade contribuir criativamente para a concretização das necessárias reformas a introduzir no sistema judiciário, que os Portugueses merecem.
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Realiza-se o nosso Congresso em momento de especial perplexidade e incerteza quanto ao destino de Portugal.
No último decénio, ocorreram vicissitudes políticas, económicas e sociais, que ampliaram as desigualdades entre Portugueses e acentuaram a sua dependência externa. Apesar dos avanços tecnológicos e económicos indiscutíveis, evidencia-se uma completa ausência de vontade política, para corrigir os efeitos sociais devastadores, dos modelos consentidos de desindustrialização e desactivação, de amplos sectores da actividade produtiva, operada no nosso país.
Ocultando a existência e o significado social daqueles que são dramaticamente atingidos e lançados em processos de exclusão e penúria, o discurso é pouco propenso à valorização da ideia de Justiça.
Na realidade, a ideia de Justiça é sonegada no discurso triunfante, contido no debate político, que deixando de ser doutrinário, em nome de uma pretensa eficácia e de pragmatismo, se torna arbitrário e conjuntural, buscando momentâneas e falsas explicações, na construção de uma "aparência" que a civilização do audio-visual estimula. Esta construção da "aparência" é no fundo o emergir de um aforma de activismo, que pelo uso da propaganda, não cura em fazer do caminho do Homem uma busca quotidiana, pela descoberta e identificação da Verdade e da Justiça. Quando é nessa busca que se cria e determina o próprio homem, realizando a Humanização e a sua essência, na aproximação à ideia universal da Justiça e de Deus.
Entrámos de facto numa fase especialmente difícil e crítica de conflitos. O Estado omnipresente, que tudo previa e regulava, transformou-se numa estrutura arcaica, ineficiente e, quantas vezes, corrupta.
Estamos convictos que este modelo de estado está a chegar aos seus últimos dias e torna-se incapaz de regular a contradição de interesses e promover a igualdade de oportunidades entre os homens.
E como corre em todos as épocas de transição, os cidadãos sentem insegurança, perplexidades, incertezas, deslocando as suas expectativas e esperanças, para aquele dos poderes do Estado, onde o discurso da "aparência" se pretende combatido essencialmente, por todos aqueles que participam do seu exercício e onde o esforço pelo apuramento da Verdade constitui o desígnio essencial.
Especial responsabilidade recai assim sobre os juristas e o sistema judiciário.
Ao sistema judiciário, estrutura do exercício do poder judicial, ficaram historicamente atribuídos os mais diminutos e frágeis meios de acção, quando socialmente agora se espera dele, uma ampliação da sua intervenção. Estratificado em normas de processo e de organização desajustadas, que inibem a sua eficiência, o sistema judiciário é tido por ter entrado em crise, quando certo é que a crise é a crise de toda a administração pública.
A herança do pensamento jurídico positivista, cumulada com a proliferação descriteriosa de formação universitária em Direito, contribuiu igualmente para obscurecer a visão da generalidade dos interventores, àcerca de quais os caminhos de transformação necessários.
E, no entanto, os juristas, e especialmente os Advogados, são depositários de valores essenciais da Humanidade, que importa preservar e que hão-de construir o futuro.
Cultivamos os valores da Retórica, no dizer de Nietzsche, como arte essencialmente republicana, onde se tem de estar habituado a suportar as opiniões e os pontos de vista alheios e mesmo sentir um certo prazer na contradição, e onde se escuta de tão bom agrado como quando se fala.
Preservamos os valores da frontalidade e da liberdade, quando em nome de outrém, porventura o mais homiziado e socialmente degradado, temos a coragem de afirmar solitariamente a sua Verdade.
Somos por natureza e colectivamente mobilizáveis pela compaixão humana e perante a adversidade, e por isso fautores de Fraternidade.
Cultivamos os valores da tradição latina, sabendo que os homens se fazem bons, principalmente pela Justiça, sendo ela o esplendor da Virtude.
Temos a intuição de que o sistema judiciário para sobreviver como instrumento de garantia das liberdades, carece de encontrar um novo paradigma de modernidade, que de cert modo repristine a tradição dos antigos, onde o Direito e o Poder Judicial, mantinha estruturas de relação com a moral secularizada, que regulava a virtude social, a representação do bem comum, a delegação de poderes, a moral do ofício público ou as limitações dos poderes públicos, com a construção de equilíbrios entre os vários poderes concorrentes na sociedade, sendo que agora devemos acrescentar simultaneamente novos conceitos reguladores de necessidades sociais de informação, de comunicação, de co-responsabilização social, de auto e hetero controle do exercício do poder.
O paradigma moderno para o novo poder judicial, comporta assim a criteriosa identificação e definição dos conceitos de interferência de poderes do Estado, de limitação de competências, de hierarquias na estrutura das Magistraturas, com reserva dos modelos de independência, inamovibilidade, autonomia e aotugoverno dessas mesmas Magistraturas.
Comporta igualmente o respeito pela função intermediadora e interventora do patrocínio forense de parte , como forma de controle e fiscalização da legalidade.
Comporta a necessária introdução de novos saberes, múltiplos e interdisciplinares, modelação dos sistemas de informação e de comunicação entre todos os interventores.
Comporta uma nova cultura de cooperação judiciária, que interiorize no sistema, os valores da democracia participada.
Comporta, em suma, novos conceitos de retórica forense, adaptados à comunicação audio-visual e à inerente co-responsabilização social, no desempenho e na aplicação da Justiça.
Todos estes conceitos, carecem de novas Instituições e novas normas processuais.
Para tais transformações são necessárias melhores escolas de formação profissional, melhor entrosamento entre elas e o ensino universitário e a prática profissional forense, mobilizando a Universidade para a produção científica, que servirá de suporte e fundamento a estas transformações.
A necessidade de novas Instituições Judiciárias impõe o fomento da desconcentração judiciária, e novas formulações judiciais que vão desde a criação de juízes sociais à justiça arbitral, necessária ou voluntária, e onde sobretudo, há que encontrar fórmulas de redução drástica dos tempos de decisão e de informação, para que o exercício do poder possa ser socialmente reconhecido como existente e eficaz.
O paradigma judiciário da modernidade, conduz-nos também à necessidade de uma cultura de responsabilidade, que se estende desde a responsabilidade política, até à responsabilidade civil e criminal.
A modernidade fará impor a verificação de que não haverá liberdade, sem cultura de responsabilidade. E não haverá cultura de liberdade e responsabilidade, sem informação e comunicação ao serviço da verdade.
Infelizmente Portugal é uma floresta de enganos, onde a responsabilidade penal prescreve com indesculpável facilidade, a civil chega tarde e não é eficaz e a política raramente é exigida, face à facilidade com que o esquecimento branqueia airosas e atempadas saídas de cena.
Senhores Congressistas
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Os Advogados Portugueses aqui vieram com a determinação e o empenhamento, de colectivamente contribuirem para a construção deste novo paradigma judiciário.
Os Advogados sabem, em virtude da sua prática internacional, que o sistema judicial é hoje um dos mais sólidos garantes da independência e da autonomia dos portugueses, no quadro da renegociação constitucional da União Europeia.
Não foi por acaso que a Restauração Portuguesa se estruturou tão fortemente na influência doutrináris dos jurisconsultos, que souberam moldar a justificação do novo poder político no século XVII.
Advogados estão hoje mais preparados e advertidos para as tarefas ingentes que esperam os portugueses nos próximos anos.
Estou em crer que estão mais animados e dotados de poder de decisão e coesão, que fortalecendo a sua Ordem a dotam de capacidade de intervenção, em horizontes e campos de acção muito mais vastos, do que aqui há uns anos se podiam prefigurar.
Colectivamente haveremos de saber construir o nosso futuro tendo esperança em que não nos faltará bom senso, humildade, saber e sorte.
O conjunto de comunicações apresentado, à disposição de todos os presentes, permite antever a elevação e aseriedade que há-de rodear os nossos debates.
Organizámos o nosso Congresso em torno de três grandes temas:
O primeiro abordará as questões que envolvem as instituições judiciárias, os direitos e garantias dos cidadãos.
O segundo analisará os efeitos e as consequências da mediatização da justiça e o seu relacionamento com os cidadãos e com o patrocínio judiciário.
O terceiro abordará as questões candentes que se revelam no acesso às profissões forenses e ao relacionamento interprofissional. O Congresso será pois um espaço de controvérsia, aberto, livre, contraditório e franco, onde não existem nem barreiras nem preconceitos, que limitem a nossa capacidade reflectiva.
Com referência aos temas e comunicações apresentadas, não podemos deixar de referir a extraordinária oportunidade histórica de poder debater em Congresso e durante processo legislativo na Assembleia da República, as reformas do Processo Civil e do Processo Penal.
Evidenciamos sobretudo a reforma do Processo Civil, inequívoco ponto de arranque de todas as transformações, não podendo deixar de referir a forma dialogada e aberta, como decorreram os trabalhos da Comissão Revisora.
Porventura alterações na especialidade se revelarão necessárias, havendo oportunidade para as introduzir no texto da proposta.
A prática ensinará também e por certo, o que depois ainda importe corrigir.
Estamos seguros que uma reforma como esta, considerará a existência de uma comissão de acompanhamento da sua aplicação efectiva que tenha como escopo propôr e formular as alterações que porventura se justifiquem.
O espírito de cooperação evidenciado no decurso dos trabalhos da Comissão Revisora, saberá prevalecer na audiência de sugestões que sejam criteriosa e racionalmente formuladas.
Não temos dúvidas que este será o momento alto do nosso Congresso e esperamos igualmente que seja o momento de arranque para uma efectiva revisão do Código Penal.
As comunicações apresentadas neste domínio revelam com evidente clareza os objectivos que importa atingir.
Mas o Congresso será também festa e convívio entre Advogados, instrumento de coesão e de sedimentação de uma profissão tão antiga e tão devotada ao serviço dos outros.
Haveremos de tirar conclusões, que serão linhas de orientação para o Conselho Geral da Ordem e para a classe, e de fomento para a nossa coesão; podendo eu dar testemunho de quanto apoio tem o Conselho Geral recebido por parte de todos os Colegas, que de uma forma espontânea, solidária e amiga, sempre têm estimulado a nossa acção.
Confesso também, que ao serviço da Ordem pusemos todo o nosso empenho, energia, zelo e paciência, mas quando observamos a necessidade do que falta realizar, na construção da profissão e na transformação do sistema judiciário português, reconheço como são diminutos os resultados obtidos, fruto da nossa acção.
A experiência ensinou-nos que não basta disponibilidade e voluntarismo individual, só o esforço colectivamente organizado é gerador de obra humana perdurável. Temos assim que ser perseverantes.
O nosso Congresso haverá de consolidar também a tradição colectiva doa Advogados, de vocação para a intervenção cívica, institucional e política, no mais alto e belo sentido da palavra. Vocação essa que é apanágio secular da classe e dos seus órgãos, desde tempos imemoriais.
Na construção do espaço social de inetrvenção dos Advogados, haveremos que acolher o ensinamento de Montesquieu escolhendo a Virtude da Sinceridade, como valor do nosso Congresso.
Dizia ele que "quando o Homem tem a coragem de ser sincero, vê-se uma certa coragem espalhada por todo o seu carácter, uma independência total, um império sobre ele próprio, semelhante ao que se exerce sobre os outros, uma alma isenta de nuvens do temor e do terror, o amor pela virtude, o ódio pelo vício, o desprezo por todos aqueles que a ele se abandonam."(...)" Um homem sincero na corte de um príncipe é um homem livre no meio de escravos."
Sejamos, pois, sinceros e homens livres
Muito obrigado.