Projeto de Regulamento do Conselho de Supervisão | Pronúncia do Presidente do Conselho Superior

Exma. Senhora Bastonária,

Exmos. Senhores Conselheiros do

Conselho Geral da Ordem dos Advogados,

 

Venho, muito sumariamente, pronunciar-me acerca do Projeto de Regulamento do Conselho de Supervisão, aprovado por esse Conselho Geral, que se encontra submetido a apreciação pública cujo prazo terminará hoje, 27 de Agosto.

 

I. Preliminarmente

 

Começo por expressar uma ideia que já publicamente sustentei, em variadíssimos fora: a criação, no Estatuto da Ordem dos Advogados, de um órgão com as atribuições, competência e a composição do Conselho de Supervisão é uma aberração.

 

Assim como é uma aberração a inclusão de membros não advogados em órgãos disciplinares da Ordem, como sejam o Conselho Superior e os Conselhos de Deontologia.

 

As aberrações não se “regulamentam”, sob pena de, nesse acto, se incorrer em novas aberrações – o que é inevitável no caso vertente.

 

As aberrações combatem-se com determinação, devendo activamente promover-se a urgente alteração da Lei e a reposição da autonomia e independência da Ordem dos Advogados, valores que sempre foram seu apanágio, mesmo nos sombrios tempos do regime totalitário anterior a 25 de Abril de 1974.

 

Este deveria ser – à frente ou a par de outros, bem mais discutíveis – um dos desígnios inquebrantáveis da Bastonária e do Conselho Geral.

 

Lamentavelmente, não vejo, a este respeito, a manifestação de qualquer actuação por parte de V. Exas. Ao menos com o vigor e o empenhamento que vejo posto em outros empreendimentos, bem mais discutíveis – repito – e certamente menos prementes do que este.

 

 

II. Quanto ao regulamento propriamente dito:

 

Das “Personalidades de reconhecido mérito”.

 

Nos arts. 5.º, n.º 2 e 6.º do Projecto dispõe-se sobre os requisitos de elegibilidade dos membros não advogados ("não inscritos”) e dá-se expressão ao conceito –  sempre fugaz e enigmático – de “personalidade de reconhecido mérito” – personalidade que, ex vi do disposto no art.º 5.º, n.º 2 al. b), deverá ser um jurista, entendido como profissional da área jurídica em sentido amplo e, supõe-se, com formação académica em Direito.

 

Surpreendentemente, no corpo do n.º 2 do art.º 6.º, presume-se de reconhecido mérito qualquer um dos profissionais das categorias enunciadas nas alíneas subsequentes, desde que exerça ou tenha exercido efectivamente aquelas funções por mais de dez anos.

 

Ou seja, confunde-se “reconhecido mérito” com antiguidade na função, como se a mera antiguidade fosse factor apto a fazer presumir a excelência do profissional, ou seja, o seu “reconhecido mérito”. Pergunto: não haverá docentes universitários e magistrados, com mais de dez anos de reconhecido demérito? Parece que, para o Conselho Geral, não!

           

Mais. Como comprovar tal antiguidade no caso de actividades profissionais cujo início de exercício poderá ser dificilmente comprovável, como é o caso de “jurista ou consultor jurídico” [art.º 6.º, n.º 2 al. f)]?

 

O Projecto denota uma franca falta de exigência dos requisitos de elegibilidade dos “não inscritos”, prescindindo de critérios susceptíveis de revelar especial mérito dos profissionais em causa, bastando-se – repita-se –  com a presunção decorrente da antiguidade. Veja-se os casos de “magistrados” ou de “docentes universitários de Direito”, para não mencionar os já referidos “juristas ou consultores jurídicos”. E seria muito simples apertar a malha. Bastaria, por exemplo, exigir-se a condição de magistrado judicial nos tribunais superiores (ou magistrado do Ministério Público de hierarquia equivalente) ou de docentes universitários com o grau de mestre ou de doutor. O mesmo se poderia exigir – grau de mestre ou de doutor – para os juristas ou consultores jurídicos, se afastados da docência universitária. Mas não. Basta o mérito por antiguidade no exercício da função, critério consabidamente falho de significado substancial e, pelo contrário, adequado a acobertar todo o tipo de favorecimentos e amiguismos.  

 

Entendo, assim, que os arts. 5.º, n.º 2 e 6.º do Projecto devem ser alterados, no sentido de um maior grau de exigência quanto aos critérios de elegibilidade destes “não inscritos”, de modo a dar verdadeiro substrato à exigência legal de se tratarem, efectivamente, de “personalidades de reconhecido mérito”.

 

 

Do modo de designação dos titulares do Conselho de Supervisão transitório.

 

Este aspecto é, a meu ver, o mais criticável do Projecto de Regulamento em discussão.

 

A Lei n.º 6/2024, de 19 de Janeiro, veio criar um complicado problema (entre outros que ao caso não vem agora discutir) relativamente ao regime transitório a observar até à realização de eleições para os órgãos da Ordem dos Advogados e tomada de posse dos titulares dos órgãos que nelas venham a ser eleitos.

 

Na verdade, sobre esta matéria dispõe o art.º 5.º, nrs. 3, 4 e 5 daquela Lei, com especial destaque e aplicação no que respeita ao novo órgão criado, o Conselho de Supervisão.

 

Descartada que foi a opção legal de antecipação de eleições, prevista, em alternativa, no art.º 5.º, n.º 5 – aquela que, a meu ver, teria sido preferível, como sustentei em reunião conjunta dos Conselhos Superior e Geral – preferiu-se o recurso ao indecifrável regime transitório, previsto no art.º 5.º, nrs. 3 e 4. Em suma, os titulares do Conselho de Supervisão devem ser designados, nos termos de normas regulamentares a aprovar para o efeito, cessando os respectivos mandatos quando terminarem os mandatos dos titulares dos demais órgãos presentemente em funções (ou seja, com a tomada de posse dos que vierem a ser eleitos).

 

Entende o Conselho Geral que as normas regulamentares a aprovar para o efeito são da sua competência, invocando, para tanto o disposto no art.º 46.º, n.º 1 al. i) do Estatuto da Ordem dos Advogados.

 

Daí a aprovação do actual Projecto – em discussão pública – e a disposição transitória que no mesmo se contém no seu art.º 10.º . Segundo esta, cabe ao Conselho Geral designar os membros (todos eles) do Conselho de Supervisão que, até ao termo do mandato dos actuais titulares dos demais órgãos da Ordem dos Advogados, integrarão aquele novo órgão.

 

Este entendimento do Conselho Geral é, a meu ver, profundamente errado.

 

O art.º 5.º, n.º 3 da Lei n.º 6/2024, de 19 de Janeiro, não atribuiu ao Conselho Geral da Ordem dos Advogados qualquer competência regulamentar, destinada a prover o regime transitório de designação dos titulares do novo órgão Conselho de Supervisão, cuja atribuição (cfr. o art.º 47.º-A do Estatuto da Ordem dos Advogados) é precisamente a de “zelar pela legalidade da atividade exercida pelos órgãos da Ordem dos Advogados” (Conselho Geral incluído).

 

A ser como se pretende, tal constituiria uma manifesta incongruência e uma contradição nos próprios termos constitutivos daquele novo órgão, cujos titulares são eleitos e, alguns, cooptados pelos eleitos.

 

Tão pouco resulta, do art.º 46.º, n.º 1 al. i) do Estatuto da Ordem dos Advogados – invocado pelo Conselho Geral – qualquer competência regulamentar para tal modo de designação transitória, o que inquinará, necessariamente, a validade da deliberação que vier a designar quem quer que seja como titular daquele órgão.

 

O Projecto de Regulamento do Conselho Geral, ao pretender autoatribuir-se a competência para designar os titulares do Conselho de Supervisão transitório incorre, assim, numa verdadeira aberração – risco que, já no início, se havia advertido de que iria ocorrer.

 

A meu ver, só um diploma legal ou regulamentar poderá dar cumprimento ao preceituado no art.º 5.º, n.º 3 Lei n.º 6/2024, de 19 de Janeiro. Sendo certo que a lei é – como acima apontei – indecifrável a este respeito. Porém, outra conclusão não se poderá harmonizar com o sentido objectivo do regime transitório, que apenas concedeu à Ordem dos Advogados a faculdade de optar pela antecipação de eleições para todos os seus órgãos, nos termos previstos no art.º 5.º, n.º 5 daquele diploma legal.

 

 

III. Conclusões.

 

Termino, concluindo que, pelo menos, o art.º 10.º do Projecto de Regulamento, no que respeita à designação dos titulares do Conselho de Supervisão transitório é manifestamente ilegal, por incompetência do Conselho Geral para regulamentar esta matéria.

 

Pela mesma razão, admito como possível que o Projecto de Regulamento do Conselho de Supervisão seja, in totum, ilegal.  

 

Reservo-me o direito de tornar pública esta minha pronúncia.

 

Apresento a V. Exas. o meus cordiais cumprimentos,

 

 

Paulo de Sá e Cunha

Presidente do Conselho Superior

14/10/2024 10:09:13