Acórdão do TJ - Proc. C-275/03
14 de Outubro de 2004 (1)
«Incumprimento de Estado - Directiva 89/665/CEE - Processos de recurso em matéria de contratos de direito público de obras e de fornecimentos - Transposição incompleta»
No processo C-275/03,
que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 25 de Junho de 2003,
Comissão das Comunidades Europeias, representada por A. Caeiros e K. Wiedner, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,
demandante,
República Portuguesa, representada por L. Fernandes e C. Gagliardi Graça, na qualidade de agentes,
demandada,
composto por: A. Rosas, presidente de secção, J. P. Puissochet (relator), S. von Bahr, A. Borg Barthet e U. Lõhmus, juízes,
advogada-geral: C. Stix-Hackl,
secretário: R. Grass,
vistos os autos,
vista a decisão tomada, ouvido o advogado-geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,
profere o presente
1
Com a sua acção, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que a República Portuguesa, ao não transpor de forma correcta e completa a Directiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos processos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos de direito público de obras e de fornecimentos (JO L 395, p. 33), não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do direito comunitário.
Regulamentação comunitária
2
O artigo 1.°, n.° 1, da Directiva 89/665 estabelece:
«Os Estados Membros tomarão as medidas necessárias para garantir que, no que se refere aos processos de adjudicação de contratos de direito público abrangidos pelo âmbito de aplicação das Directivas 71/305/CEE e 77//62/CEE, as decisões tomadas pelas entidades adjudicantes possam ser objecto de recursos eficazes e, sobretudo, tão rápidos quanto possível [...].»
3
A Directiva 71/305/CEE do Conselho, de 26 de Julho de 1971, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas, foi revogada pela Directiva 93/37/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993. A referência feita pelo artigo 1.°, n.° 1, da Directiva 89/665 à Directiva 71/305 revogada deve, portanto, entender se feita à Directiva 93/37.
4
Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 89/665:
«Os Estados Membros velarão por que as medidas tomadas para os efeitos dos recursos referidos no artigo 1.° prevejam os poderes que permitam:
[...]
c) Conceder indemnizações às pessoas lesadas por uma violação.»
Legislação nacional
5
Sob o título «Responsabilidade das entidades públicas», o artigo 22.° da Constituição da República Portuguesa estabelece:
«O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem».
6
Nos termos do artigo 1.° do Decreto Lei n.° 48051, de 21 de Novembro de 1967 (a seguir «Decreto Lei n.° 48051»):
«A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública rege se pelo disposto no presente diploma, em tudo que não esteja previsto em leis especiais.»
7
O artigo 2.° do referido decreto lei precisa:
«O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pela ofensa dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.»
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Nos termos do artigo 3.° do mesmo decreto lei:
«1. Os titulares do órgão e os agentes administrativos do Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pela prática de actos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.
2. Em caso de procedimento doloso, a pessoa colectiva é sempre solidariamente responsável com os titulares do órgão ou os agentes.»
9
Segundo o artigo 4.° do Decreto Lei n.° 48051:
«A culpa dos titulares do órgão ou dos agentes é apreciada nos termos do artigo 487.° do Código Civil.»
10
Nos termos do artigo 487.° do Código Civil:
«É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.»
11
Segundo o artigo 342.° do mesmo código:
«1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.»
12
O Decreto Lei n.° 134/98, de 15 de Maio, que transpõe para o direito português a Directiva 89/665, criou uma forma de processo urgente para a impugnação dos actos administrativos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos na fase de formação dos contratos de empreitada de obras públicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens e criou medidas tutelares.
Fase pré contenciosa
13
Após uma troca de informações, o Governo português, por carta de 26 de Julho de 1995, comunicou à Comissão as medidas nacionais de transposição da Directiva 89/665.
14
Em 8 de Setembro de 1995, a Comissão, insatisfeita com esta comunicação, enviou uma notificação para cumprir ao Governo português, chamando lhe a atenção para a transposição incorrecta e incompleta da Directiva 89/665.
15
Em 7 de Julho de 1997, a Comissão dirigiu um parecer fundamentado ao Governo português. A Comissão considerou que os elementos que lhe foram enviados não deram seguimento, de forma satisfatória, aos seus pedidos.
16
Em 9 de Fevereiro de 2001, a Comissão dirigiu ao Governo português um parecer fundamentado complementar. Nele mencionou a reunião de 29 de Setembro de 2000, no decurso da qual as autoridades portuguesas indicaram que a transposição da Directiva 89/665 seria completada no quadro da reforma em curso do contencioso administrativo.
17
Neste parecer fundamentado complementar, a Comissão recordou que a transposição da directiva continuava incompleta em dois pontos. No que se refere ao campo de aplicação da Directiva 89/665, em primeiro lugar, a Comissão considera que a legislação portuguesa, erradamente, não inclui as concessões de obras públicas. No que se refere ao pagamento de indemnizações, a Comissão salienta que ainda não foi revogado o Decreto Lei n.° 48051, que limita as possibilidades de indemnização.
18
A Comissão considera que, no final do prazo, prorrogado, estabelecido no parecer fundamentado, o incumprimento se limita à não revogação do Decreto Lei n.° 48051.
Quanto à acção
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A Comissão alega que a Directiva 89/665, no seu artigo 2.°, n.° 1, alínea c), prevê a indemnização das pessoas lesadas por qualquer violação do direito comunitário aplicável à celebração de contratos de direito público ou das normas nacionais que o transpõem.
20
A Comissão considera que o direito administrativo português em vigor, decorrente do Decreto Lei n.° 48051, subordina erradamente a atribuição de uma indemnização à produção de prova, por parte dos lesados, de que os actos ilegais do Estado ou das pessoas colectivas de direito público foram cometidas com culpa ou dolo. A Comissão considera, por conseguinte, que a República Portuguesa deveria ter revogado esta disposição para cumprir a Directiva 86/665.
21
A Comissão salienta que a prova exigida é extremamente difícil, ou mesmo impossível, na medida em que, em geral, não se pode apurar de quem foi a culpa, de modo que, na maior parte dos casos, a pessoa lesada não conseguirá obter a indemnização que requerer e a que teria direito.
22
Além disso, a dificuldade em fazer essa prova conduz, na prática, a que as acções intentadas pelas pessoas lesadas com vista a obterem uma indemnização sejam lentas e, provavelmente, ineficazes. Esta situação, segundo a Comissão, é contrária ao artigo 1.°, n.° 1, da Directiva 89/665, que acentua a necessidade de existirem recursos rápidos e eficazes.
23
O Governo português salienta que a Directiva 89/665 não impõe uma responsabilidade de tipo objectivo. Sublinha que a Directiva apenas menciona a possibilidade de os cidadãos obterem «indemnizações» quando se considerem lesados por decisões ilegais, sem especificar se a atribuição de uma indemnização fica ou não subordinada ao cumprimento de condições específicas.
24
Este governo acrescenta que o Decreto Lei n.° 48051, contrariamente à interpretação feita pela Comissão, não exige a prova de culpa grave ou dolo por parte do Estado ou da pessoa colectiva de direito público para se obter uma indemnização. A demonstração de culpa grave ou dolo só é exigida para o exercício do direito de regresso da entidade considerada responsável contra o funcionário ou agente que cometeu o acto ilícito ou para estabelecer a responsabilidade solidária do agente e do serviço.
25
As autoridades portuguesas sustentam que, em qualquer caso, o juiz nacional, para respeitar o artigo 22.° da Constituição, que prevê, em todas as circunstâncias, a responsabilidade do Estado, não aplica as regras restritivas da responsabilidade contidas no Decreto Lei n.° 48051, censurado pela Comissão.
26
O Governo português refere, finalmente, que irá aprovar em breve um projecto de lei relativo à responsabilidade civil extracontratual do Estado, introduzindo o conceito de culpa decorrente da ilegalidade dos actos administrativos. Além disso, este projecto consagra a presunção de culpa do serviço, permitindo assim desencadear a responsabilidade do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público nos casos de funcionamento anormal, mesmo quando não seja possível imputar o dano a uma pessoa determinada. As autoridades portuguesas lamentam não ter sido possível aprovar o projecto anterior devido à demissão do governo em 17 de Dezembro de 2001.
Apreciação do Tribunal de Justiça
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Contrariamente ao que é afirmado pelo Governo português, resulta do Decreto Lei n.° 48051, que se mantinha em vigor na data em que expirou o prazo estabelecido no parecer fundamentado, que a atribuição de indemnizações às pessoas lesadas por uma violação do direito comunitário aplicável à celebração de contratos de direito público ou das normas nacionais que o transpõem está subordinada à prova de que os actos ilegais do Estado ou das pessoas colectivas de direito público foram cometidos com culpa ou dolo.
28
Tal como resulta dos seus primeiro e segundo considerandos, a Directiva 89/665 visa reforçar os mecanismos existentes, quer no plano nacional quer no plano comunitário, para assegurar a aplicação eficaz das directivas comunitárias em matéria de contratos de direito público, na medida em que os mecanismos que existiam em geral neste domínio, tanto ao nível nacional como comunitário, nem sempre permitiam velar pelo cumprimento das disposições comunitárias (acórdão de 4 de Fevereiro de 1999, Köllensperger e Atzwanger, C 103/97, Colect., p. I 551, n.° 3).
29
Para este efeito, o artigo 1.°, n.° 1, da referida directiva impõe aos Estados Membros a obrigação de garantir que as decisões ilegais das entidades adjudicantes possam ser objecto de recursos eficazes e tão rápidos quanto possível (v., designadamente, acórdão de 28 de Outubro de 1999, Alcatel Austria e o., C 81/98, Colect., p. I 7671, n.os 33 e 34).
30
Entre os processos de recurso que a Directiva 89/665 obriga os Estados Membros a criar para garantir que as decisões ilegais das entidades adjudicantes possam ser objecto de recursos desse tipo figura expressamente, no artigo 2.°, n.° 1, alínea c), desta directiva, o processo que permita conceder indemnizações às pessoas lesadas em consequência da violação da lei.
31
Ora, se é certo que a legislação portuguesa prevê a possibilidade de obter indemnizações no caso de violação do direito comunitário em matéria de contratos de direito público ou das normas nacionais que o transpõem, não se pode todavia considerar que a mesma constitui um sistema de protecção jurisdicional adequado, na medida em que exige a prova da existência de culpa ou dolo por parte dos agentes de determinada entidade administrativa. Assim, o concorrente lesado por uma decisão ilegal da entidade adjudicante corre o risco de ser privado do direito de exigir o pagamento de uma indemnização em virtude do dano que lhe foi causado com essa decisão, ou, pelo menos, de a obter tardiamente, por não conseguir fazer prova da existência de dolo ou culpa.
32
Assim, ao não revogar o Decreto Lei n.° 48051, que subordina a indemnização das pessoas lesadas em consequência da violação do direito comunitário em matéria de contratos de direito público ou das normas nacionais que o transpõem à prova da existência de culpa ou dolo, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 1.°, n.° 1, e 2.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 89/665.
33
O facto de o juiz nacional não aplicar as disposições restritivas deste diploma para desencadear a responsabilidade da Administração Pública não tem qualquer efeito sobre o incumprimento, que consiste em manter em vigor a referida norma na ordem jurídica interna. Com efeito, é especialmente importante, a fim de ser satisfeita a exigência de segurança jurídica, que os particulares beneficiem de uma situação clara e precisa permitindo lhes conhecer a plenitude dos seus direitos e invocá los, se for caso disso, perante os órgãos jurisdicionais nacionais (v. acórdão de 19 de Setembro de 1996, Comissão/Grécia, C 236/95, Colect., p. I 4459, n.° 13).
34
Além disso, é facto assente que, no momento em que expiraram os prazos fixados pelos pareceres fundamentados, o projecto de lei relativo à responsabilidade civil extracontratual do Estado que introduz o conceito de presunção de culpa não tinha ainda podido ser aprovado. Ora, por um lado, um Estado Membro não pode invocar situações da sua ordem jurídica interna para justificar a inobservância das obrigações e dos prazos estabelecidos por uma directiva (acórdão de 10 de Abril de 2003, Comissão/França, C 114/02, Colect., p. I 3783, n.° 11), e, por outro, as modificações introduzidas na legislação nacional não são relevantes para a decisão de uma acção por incumprimento, se não tiverem sido efectuadas antes do prazo fixado no parecer fundamentado (v. acórdão de 24 de Março de 1994, Comissão/Bélgica, C 80/92, Colect., p. I 1019, n.° 19).
35
Tendo em conta todas as considerações precedentes, a acusação da Comissão deve ser considerada procedente.
Quanto às despesas
36
Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Portuguesa e tendo esta sido vencida, há que condená la nas despesas.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) decide:
1)
Ao não revogar o Decreto Lei n.° 48051, de 21 de Novembro de 1967, que subordina a indemnização das pessoas lesadas em consequência da violação do direito comunitário em matéria de contratos de direito público ou das normas nacionais que o transpõem à prova da existência de culpa ou dolo, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 1.°, n.° 1, e 2.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos processos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos de direito público de obras e de fornecimentos.
2)
A República Portuguesa é condenada nas despesas.
Assinaturas.