José Lebre de Freitas - Incompetência do Tribunal de Comércio para as acções fundadas em concorrência desleal



Pelo Prof. Doutor José Lebre de Freitas


I

OBJECTO DO ESTUDO


Em anotação crítica ao acórdão do STJ de 6.7.04 (PONCE DE LEÃO), que decidiu ser da competência do tribunal cível, e não do tribunal de comércio, uma acção de indemnização que tinha como causa de pedir a prática de actos ilícitos praticados com violação das regras de concorrência, defendeu o Dr. CARLOS OLAVO, no vol. I da ROA de 2005, o entendimento (contrário) de que tal tipo de acção é da competência do tribunal de comércio, considerado o disposto no art. 89-1-f da Lei 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais: LOFTJ):

“Compete aos tribunais de comércio propor e julgar as acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre a propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial”.

Creio, ao invés, que a decisão do STJ comentada, tal como a que no mesmo sentido foi pelo TRL proferida em 10.5.05 (RIBEIRO COELHO) em acção movida pela Parexpro — Exploração e Produção de Hidrocarbonetos, SA contra Compagnie Générale de Géophisique, SA e outros (proc. 9109/04-7 da 7.a secção), foi correcta. Para o demonstrar, há que analisar a ligação entre o instituto da concorrência desleal e a propriedade industrial, visando determinar se a causa de pedir em que se funda um pedido de indemnização baseado em acto de concorrência desleal que não importe violação de direito privativo protegido pelo Código da Propriedade Industrial (CPI) versa, para o efeito do referido art. 89 LOFTJ, sobre propriedade industrial. Dada a sucessão no tempo do CPI de 1995 (aprovado pelo DL 16/95, de 24 de Janeiro) e do de 2003 (aprovado pelo DL 36/2003, de 5 de Março) e tendo em conta que vigorava o primeiro à data da entrada em vigor da LOFTJ, é útil considerar um e outro dos dois diplomas, pois tal ajudará o trabalho de demarcação entre propriedade industrial e concorrência desleal e, em particular, a compreensão do que se entende por modalidade de propriedade industrial.


II

TRIBUNAIS DE COMÉRCIO E PROPRIEDADE INDUSTRIAL


1. Os tribunais de comércio, como tribunais de compe-tência especializada

A LOFTJ veio, no seu art. 78-e, e após um hiato de quase sete décadas, prever a criação dos tribunais de comércio(1), em alargamento da competência dos anteriores Tribunais de Recuperação da Empresa e de Falência.

Trata-se de tribunais de competência especializada, como tal determinada em função da matéria da causa, independentemente do valor e da forma do processo(2).

Estando em causa uma competência especializada, ela reveste carácter excepcional em face da regra atributiva de competência geral ao tribunal de competência genérica (art. 77-1-a LOFTJ), pelo que, não sendo admitida a aplicação analógica da norma atributiva de competência (art. 11 CC), os tribunais de comércio só são competentes para preparar e julgar as acções e recursos previstos no art. 89 LOFTJ(3). Para que as acções de indemnização por concorrência desleal sejam da competência do tribunal de comércio, é, pois, necessário concluir que as abrange directamente o art. 89 LOFTJ, nomeadamente ao referir as “modalidades previstas no Código de Propriedade Industrial”.

2. Competência dos tribunais de comércio e propriedade industrial

Resulta dos trabalhos preparatórios da LOFTJ ter sido intenção do legislador, ao criar os tribunais de comércio, atribuir-lhes “as questões mais complexas respeitantes à actividade empresarial, designadamente de direito societário, de concorrência e de propriedade industrial”(4), “fazendo-os actuar em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade”(5). A referência, lado a lado, da concorrência e da propriedade industrial não foi feita tendo em vista as normas que, no CPI de 1995, tal como no actual, tratavam, respectivamente, dos direitos privativos e da concorrência desleal. Tratava-se, sim, quanto à concorrência, dos recursos das decisões proferidas pelo Conselho da Concorrência e, em matéria contra-ordenacional, pelo mesmo conselho e pela Direcção-Geral do Comércio e da Concorrência(6).

Não tendo os tribunais de comércio outra competência em matérias atinentes a aspectos penais e contra-ordenacionais em sede de concorrência (e nenhuma em sede penal e contra-ordenacional relativa à propriedade industrial), ficou assim estabelecida, no art. 89 LOFTJ, a competência dos tribunais de comércio, para, na parte que nos ocupa, preparar e julgar “as acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre a propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial” (n.° 1-f), bem como “as acções de nulidade e de anulação previstas no Código da Propriedade Industrial” (n.° 1-h), e ainda para julgar “os recursos de decisões que, nos termos previstos no Código da Propriedade Industrial, concedam, recusem ou tenham por efeito a extinção de qualquer dos direitos privativos nele previstos” (n.° 2-a)(7).

Não oferece dúvida que tanto as acções de nulidade e de anulação como os recursos previstos no art. 89 LOFTJ têm por referência os direitos privativos da propriedade industrial: as primeiras visam a declaração de nulidade (arts. 32, 120, 137 e 164 do CPI de 1995) ou a anulação (arts. 5, 33, 214, 226, 244 e 248 do CPI de 1995) do registo de direitos privativos; os segundos atacam as decisões do Instituto Nacional da Propriedade Industrial no sentido de efectuar ou recusar o registo, bem como de declarar a caducidade de registo efectuado (arts. 36, 121, 138, 216, 227, 245, 248 e 256 do CPI de 1995) ou de anotar a renúncia a registo (cf. art. 198 do CPI de 1995)(8).

Acontecerá o mesmo com as acções declarativas (de simples apreciação, de condenação ou constitutivas) previstas na alínea f) do n.° 1 do mesmo artigo? o que deve entender-se por “causa de pedir que verse sobre a propriedade industrial”? e por “modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial” ? versará sobre propriedade industrial uma causa de pedir que integre o conceito de concorrência desleal? poderá esta (ou a sua repressão) ser considerada uma modalidade de propriedade industrial, acarretando a competência dos tribunais de comércio no que concerne à repressão (civil, embora não penal ou contra-ordenacional) da concorrência desleal?


III

PROPRIEDADE INDUSTRIAL E CONCORRÊNCIA DESLEAL


1. Autonomia da concorrência desleal

A disciplina da propriedade industrial forma-se na transição do sistema corporativo para o sistema liberal. Às normas corporativas não cabia, naturalmente, regular o funcionamento da concorrência, mas antes limitá-la, em benefício das corporações. Com o liberalismo, há que proceder à protecção das inovações tecnológicas, configurando novos tipos de direito absoluto, com os quais se delimitam no mercado áreas de monopólio ou exploração exclusiva. Verificado, porém, que tal não chega à irradicação da des-lealdade na concorrência, surge então a disciplina da concorrência desleal, que desempenha, em relação à da propriedade industrial, “como que uma função complementar” (9). Ao longo do séc. XX, vai-se seguidamente assistir à progressiva autonomização do instituto da concorrência desleal em face do regime dos direitos privativos da propriedade industrial.

A Convenção da União de Paris de 20.3.1883(10) e os seus actos adicionais espelham os primeiros passos desta evolução. No texto originário, não havia qualquer referência à concorrência desleal, dispondo o seu art. 1.2 apenas que “a protecção da propriedade industrial tem por objecto as patentes de invenção, os desenhos e modelos industriais, as marcas de fábrica ou de comércio, as marcas de serviço, o nome comercial e as denominações de origem”.

Pelo acto adicional de 14.12.1900 (Bruxelas), é, porém, introduzido um art. 10 bis, garantindo a todos os nacionais dos Estados da União paridade de tratamento em matéria de concorrência desleal, e, pela Convenção de Washington de 2.6.11, é introduzida nas disposições iniciais (concretamente, no art. 2, de onde passará em 1925 para o art. 1-2), a garantia da repressão da concorrência desleal(11). É preciso, porém, esperar ainda pela revisão feita em Haia em 1925 para termos, no art. 10 bis, a definição de acto de concorrência desleal:

“qualquer acto de concorrência contrária aos usos honestos em matéria industrial e comercial” (art. 10 bis 2) e, em especial, “todos os actos susceptíveis de, por qualquer meio, estabelecer confusão com o estabelecimento, os produtos ou a actividade industrial ou comercial de um concorrente” e “as falsas afirmações no exercício do comércio, susceptíveis de desacreditar o estabelecimento, os produtos ou a actividade industrial ou comercial de um concorrente” (art. 10 bis 3).

Só mais tarde, em 1958, em nova revisão, operada em Lisboa, foi acrescentado ao art. 10 bis 3 um terceiro tipo de situação:

“as indicações ou afirmações cuja utilização no exercício do comércio seja susceptível de induzir o público em erro sobre a natureza, modo de fabrico, características, probabilidades de utilização ou quantidade das mercadorias”(12).

Não obstante a definição genérica do acto de concorrência desleal apontar, desde logo, para a autonomia do instituto em face dos institutos relativos aos direitos privativos da propriedade industrial, a tipificação das situações de confusão entre estabelecimentos, produtos ou actividades, bem como a de falsa afirmação depreciadora do estabelecimento, dos produtos ou da actividade alheia, levava prevalentemente a doutrina a negar essa autonomia, reconduzindo a concorrência desleal ao âmbito da propriedade industrial e vendo na deslealdade do concorrente ainda um meio de violação de direitos subjectivos de propriedade industrial. Era assim possível dizer dos actos de concorrência desleal que “tendem sempre a um desvio de clientela, à violação dum direito de propriedade, de natureza imaterial, manifestada pelos indícios que reúnem essa clientela em torno dum estabelecimento industrial”, e que “a acção de concorrência desleal nos aparece, por isso, sempre como uma acção real sancionando este direito de propriedade”(13); ou defender, com LAURENT e GIANNINI, que “a concorrência desleal representa o abuso dum direito [o direito de liberdade] e a violação de direito de outrem” , exemplificando com a usurpação duma patente ou a contrafacção duma marca(14). Nomeadamente no domínio convencional, foi preciso o aditamento de 1958 para que começasse a generalizar-se a ideia de que a tutela da lealdade da concorrência era autónoma da dos direitos privativos, constituindo a norma aditada uma rotura com a concepção tradicional, ao legitimar fórmulas de tutela imediata dos consumidores e do interesse geral finalmente libertas de referen-ciais corporativos(15).

O art. 212 do nosso CPI de 1940 (Decreto 30.769, de 24.8.40) foi claramente inspirado pela Convenção da União de Paris. No entanto, além dos actos geradores de confusão, das afirmações, referências, reclamos e indicações falsas ou não autorizadas, bem como do uso ilícito duma denominação de fantasia ou de origem e da supressão, ocultação ou alteração da denominação de origem de produto ou marca, tipificadas através de previsões legais mais amplas do que as da Convenção da União de Paris, era nele considerada acto de concorrência desleal, como tal expressamente proibido, a ilícita apropriação, utilização ou divulgação dos segredos da indústria ou comércio de outrem.

Não admira que, perante a maior amplidão da previsão de concorrência desleal, a doutrina e a jurisprudência portuguesas começassem a rejeitar a velha aproximação dos dois institutos. Assim é que, pelo menos a partir do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 1950(16), bem como do estudo de JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO(17), tem-se vindo a afirmar o entendimento de que a protecção contra os actos de concorrência desleal tem, no nosso direito, um tratamento jurídico distinto do concedido aos direitos privativos da propriedade industrial, sendo hoje pacífico que a concorrência desleal constitui um instituto autónomo (18).

Esta autonomia encontra-se hoje reconhecida no CPI de 2003, de cujo art. 1 desapareceu a referência à concorrência desleal, constante do CPI de 1995, ainda na linha da versão de 1925 do art. 1-2 da Convenção da União de Paris(19).

Tal não significa que entre direitos privativos e concorrência desleal não existam zonas em que os institutos são secantes, como acontece no art. 24-1-d do CPI de 2003 (art. 25-1 do CPI de 1995), que estabelece como fundamento de recusa da patente, depósito ou registo o reconhecimento de que o requerente pretende fazer concorrência desleal, ou de que esta é possível independentemente da sua intenção(20); mas a legislação actual aponta, finalmente, para a recusa duma íntima ligação entre o instituto da concorrência desleal e os direitos privativos da propriedade industrial.

Vejamos, porém, que já era assim ao tempo do CPI de 1995 e que tal resulta da diferente natureza dos dois institutos.

2. Função da concorrência desleal

Dizia o art. 1 do CPI, na sua versão de 1995, que “a proprie-dade industrial desempenha a função social de garantir a lealdade da concorrência pela atribuição de direitos privativos no âmbito do presente diploma, bem como pela repressão da concorrência desleal” .

Da leitura deste preceito resulta a ideia de que os direitos privativos, maxime patentes, marcas ou logotipos, e a concorrência desleal constituem realidades distintas, mas unificadas por uma função comum, que se consubstanciaria no garantir da lealdade da concorrência, ambas integrando a propriedade industrial.

Note-se que só o desempenho duma função comum permitirá, em momento subsequente, discutir se, como defende CARLOS OLAVO(21), caberá ao tribunal de comércio a competência para as acções de concorrência desleal, com base numa norma (a do art. 89-1-f LOFTJ) que mais não refere do que a propriedade industrial e as suas modalidades.

A problemática da existência desta função comum é independente da questão de saber se os âmbitos de aplicação das normas reguladoras dos direitos privativos e das que reprimem a concorrência desleal se podem sobrepor, gerando situações de cumulação real ou alternativa (22), ou se excluem mutuamente, mais não podendo haver do que um concurso aparente de normas(23).

Ora de função comum só pode falar-se num sentido de tal modo geral que, visando um mero enquadramento de matérias, não oferece qualquer relevância jurídica no âmbito da questão que nos ocupa. É neste sentido que REMO FRANCESCHELLI fala duma função concorrencial comum às normas que impõem e regulam a concorrência, às que sancionam a concorrência desleal, às que atribuem os direitos privativos da propriedade industrial e até às que regulam os direitos de autor, todas elas constituindo “instrumentos, expressões ou manifestações da concorrência, mesmo quando, garantindo uma esfera de monopólio, parecem ser a sua negação”(24).

Analisando as realidades incluídas nesta função genérica (e deixando de parte os direitos de autor e conexos), vê-se que é maior a proximidade entre as normas que impõem e regulam a concorrência(25) e as que definem e punem a concorrência desleal do que entre estas e as que atribuem e regulam os direitos privativos da propriedade industrial. A concorrência constitui o “pano de fundo” do direito industrial(26), assentando nas normas que asseguram a liberdade de actuação dos agentes económicos e impedindo práticas monopolistas e outras de domínio do mercado. Mas essa liberdade há-de ser exercida com lealdade e correcção, pelo que o direito impõe um dever geral de actuação leal na concorrência (27), sancionando—e com isso entramos nas normas sobre concorrência desleal — os comportamentos que infringem esse dever geral de actuação leal, o que leva a falar da concorrên-cia desleal como constituindo um abuso da liberdade de concor-rer(28). Por sua vez, os direitos privativos constituem esferas reservadas a determinados agentes económicos, titulares de direitos subjectivos, cuja violação é, como a de qualquer outro direito, reprimida. Embora ainda explicáveis pelo fenómeno geral da concorrência e resultando, nomeadamente, da liberdade de criar assegurada pelo mercado, a sua cristalização em direito subjectivo, ainda que espacial e temporalmente circunscrito, traduz uma apropriação privada, para a qual se justifica o apelo ao conceito de direito de propriedade sobre bens incorpóreos (29). O tratamento legal da concorrência desleal, a não ter lugar em diploma autónomo, deveria antes situar-se junto das normas garantísticas da concorrência, e não junto das que regulam os direitos privativos da propriedade industrial — o que só acontece por razões históricas derivadas do velho modelo adoptado pelos arts. 1-2 e 10 bis da Convenção da União de Paris e tem sido larga e acerbamente criticado(30).

É frequente a afirmação de que a concorrência desleal exerce uma função complementar da dos direitos privativos da propriedade industrial(31). Esta afirmação é aceitável, mas ela própria encaminha para a configuração de funções (stricto sensu) diversas, ainda que em alguma medida convergentes(32). A diversidade funcional resulta da diferente natureza dos interesses protegidos no caso do direito privativo e no da concorrência desleal(33). No primeiro, o interesse encontra-se organizado em direito subjectivo, pelo que se qualifica de acto de violação do direito absoluto tutelado a conduta que ofenda o direito de utilização exclusiva garantido; no segundo, a lei atende, em primeiro lugar, aos interesses gerais da economia e dos consumidores (interesse no bom funcionamento da concorrência), ainda que também aos interesses individuais dos concorrentes, actuais ou potenciais(34), e por isso se fala de violação, não dum direito subjectivo, mas dum dever geral de correcção ou lealdade na concorrência (35) ou de adequação aos princípios do ordenamento económico (36), de tal modo que certas infracções tipificadas nem sequer afectam o interesse de concorrentes determinados(37). Por isso, a configuração da repressão da concorrência desleal como meio de tutela dum direito ao estabelecimento, considerado na sua unidade(38), ou do direito à clientela ou ao aviamento (39), estão ultrapassadas, sendo produto da tendência para tudo reduzir ao direito subjectivo (no caso, ao direito real) e não resistindo à constatação de que a concorrência postula precisamente a exclusão duma tutela geral do aviamento ou da clientela e, portanto, da configuração dum direito absoluto a um ou a outra(40). Por isso também, há quem contraponha à violação do direito, que ocorre quando são postos em causa os direitos privativos, a violação do dever, característica da concorrência desleal(41). Por isso ainda, o direito francês cinde, sem dificuldade, a competência dos tribunais para o conhecimento da acção de tutela do direito privativo e para a de repressão da concorrência desleal: a primeira é da competência do tribunal cível; a segunda, quando entre dois concorrentes, é da competência do tribunal de comércio(42).

Resulta do exposto que os direitos privativos da propriedade industrial e a repressão da concorrência desleal desempenham funções distintas, na medida em que através dos primeiros se procura proteger a utilização exclusiva de determinados bens incorpóreos, enquanto através da repressão da concorrência desleal se pretende sancionar a violação de deveres a observar na concorrência entre os vários agentes económicos. Na verdade, não só a concorrência desleal implica um tipo autónomo de tutela, centrada no desvalor de certas condutas independentemente da existência dum direito subjectivo (basta ter em conta a hipótese de apropriação e utilização de métodos e segredos da indústria ou comércio de outrem, ou a de falsa indicação de crédito ou reputação próprios), mas também, ao invés, pode haver violação de direito privativo sem que haja qualquer situação de concorrência. A repressão da concorrência desleal extravasa, não obstante a epígrafe do capítulo do CPI em que se insere (“Infracções contra a propriedade industrial”), a garantia da propriedade industrial(43), sendo oportunístico e injustificado o seu tratamento no CPI (44).

A função própria da repressão da concorrência desleal exerce--se, aliás, em âmbito diverso do dos direitos privativos da propriedade industrial. Segundo o art. 2 CPI (idêntico ao do CPI de 1995), a propriedade industrial abrange “a indústria e o comércio propriamente ditos, as indústrias das pescas, agrícolas, florestais, pecuárias e extractivas, bem como todos os produtos naturais ou fabricados e os serviços”. Já quanto à concorrência desleal, ela pode, segundo o art. 317 CPI (equivalente ao art. 260 do CPI de 1995), abranger “qualquer ramo de actividade económica”, o que implica um âmbito de aplicação muito mais vasto do que o da propriedade industrial(45).

Em suma, a concorrência desleal cumpre uma função diversa da da propriedade industrial, mesmo que, discutivelmente, se pretenda o enquadramento de ambas no ramo do direito da empresa (46). Como bem nota OLIVEIRA ASCENSÃO, a posição do CPI de 1995 não era cientificamente defensável, uma vez que “a unificação de ambos os domínios pela função social de garantir a lealdade da concorrência, como faz [fazia] o art. 1.° do CPI, é palavrosa e falsa: os direitos privativos asseguram posições exclusivas na concorrência, e não a lealdade na concorrência”(47).

3. Implicações para a questão da competência

Verificado que as normas de repressão da concorrência desleal têm autonomia perante as que regem os direitos privativos da propriedade industrial e exercem função diversa destas, a sujeição à mesma competência das acções fundadas na violação destes e da de concorrência desleal não corresponde a um imperativo de coerência lógica, pelo que o legislador estava livre de, como em França, atribuir a tribunais materialmente diferenciados a competência para uma e outra. Aliás, cabendo na competência do tribunal cível ou penal as acções fundadas na violação das normas que tutelam a liberdade da concorrência (ressalvados os recursos previstos no art. 89-2-c LOFTJ), era mais lógica a atribuição ao mesmo tribunal da competência para conhecer da violação das normas que reprimem a concorrência desleal do que a sua atribuição ao tribunal competente para conhecer da violação dos direitos privativos. Essa foi, como se passa a demonstrar, a clara opção do legislador português de 1999.


IV

TRIBUNAL DE COMÉRCIO E CONCORRÊNCIA DESLEAL


1. Das modalidades da propriedade industrial

Tem o tribunal de comércio, de acordo com o art. 89-1-f LOFTJ, competência em razão da matéria para preparar e julgar as acções de declaração cuja causa de pedir “verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial”.

Uma interpretação literal desta norma nunca levaria a considerar por ela abrangida a acção de concorrência desleal, visto que nem esta concorrência nem as normas que a reprimem podem constituir modalidade da propriedade industrial.

Modalidade significa, em português, “propriedade de ter modos; modo de existir; maneiras particulares de cada um” (48). Quanto à propriedade industrial, é um direito absoluto, como o de propriedade corpórea, exprimindo a relação entre o sujeito titular dum direito (propriedade vem de próprio, implicando a sujeição dum bem a um sujeito de direito) e uma coisa incorpórea. Para ser uma modalidade da propriedade industrial, a concorrência desleal, ou a sua repressão, seria, pois, um modo de ser ou de existir da propriedade industrial. Relativamente à concorrência desleal, seria absurdo: nenhum direito de propriedade industrial poderia exprimir-se no acto de concorrência desleal. Quanto à repressão deste acto, constituiria, quando muito, meio de tutela dum direito de propriedade industrial(49), mas nunca uma modalidade deste.

Assim, só uma interpretação racional, divergente da literal, poderia levar a considerar abrangida no art. 89-1-f LOFTJ a acção baseada na concorrência desleal. O que atrás se deixou dito demonstra que a indagação de tal interpretação não teria qualquer razão de ser; mas, mesmo que tivesse, um intérprete sem preconceitos, confrontado com os termos utilizados pela lei, só teria de procurar outro sentido depois de verificar que aquele que desses termos directamente se retira não é racionalmente aceitável, que os termos utilizados são ambíguos ou ainda que deles não se extrai qualquer sentido. Não sendo nenhum destes o caso e não havendo razão para violentar o sentido literal, é com este que a lei valerá.

Ora o termo modalidade, referido à propriedade industrial, aponta no sentido de se reportar aos diferentes direitos que dela são privativos, modos distintos de ser do direito de propriedade industrial: a marca, a insígnia, o logotipo, etc. constituem bens incorpóreos distintos e sobre eles se constituem diferentes direitos (quanto ao objecto e também quanto ao modo de aquisição e ao registo), todos eles de propriedade industrial. A propriedade industrial terá, portanto, nesta acepção literal, tantas modalidades quantos os tipos de direito privativo de que trata o Código da Propriedade Industrial.

Na sua versão de 1995, o Código não conhecia o termo “modalidades”, sendo, no seu art. 6-1, os vários tipos de direitos privativos designados por “categorias”. Mas o termo modalidade da propriedade industrial, tal como a LOFTJ o emprega, comporta o mesmo sentido do termo categoria de direito privativo.

Dois elementos de interpretação confirmam esta interpretação literal: um elemento histórico e um elemento sistemático.

O legislador não podia desconhecer a obra de JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO (ver nota 17 supra), que, entre nós, doutrinariamente fundou a tese da autonomia do acto de concorrência desleal em face da violação dos direitos privativos da propriedade industrial. Ora o autor mais de uma vez, nesse artigo, utiliza a expressão “modalidades da propriedade industrial” para significar qualquer dos tipos de direito privativo:

— A ps. 9 do texto, fala em “destacar destes actos que envolvam a violação do direito inerente a qualquer das modalidades da propriedade industrial o delito propriamente de concorrência desleal”;

— A ps. 12 do mesmo texto, lê-se que “o facto de a nossa legislação se ocupar da concorrência desleal no diploma especial em que se definem e regulam as diversas modalidades da propriedade industrial
(...) levará naturalmente a admitir como da essência do conceito um vínculo mais ou menos estreito entre a concorrência desleal e o exercício dos diversos direitos privativos da propriedade industrial.
As modalidades da propriedade industrial são, inequivocamente, os tipos de direito tutelado pelo CPI. Considere-se agora o Decreto-Lei 15/95, de 24 de Janeiro, que regula o enquadramento dos agentes da propriedade industrial. Nos termos do art. 20 deste diploma, o “Instituto Nacional da Propriedade Industrial fornece a informação relativa a todas as modalidades de propriedade industrial”, esclarecendo de seguida o art. 21-1-c que “o Instituto Nacional da Propriedade Industrial disporá, obrigatoriamente, de informação organizada de modo a tornar possível a identificação e recuperação… (d)as decisões judiciais que afectam os títulos das diferentes modalidades da propriedade industrial”. Também aqui é inequívoco que o termo modalidades se reporta aos diferentes direitos privativos da propriedade industrial.

Tem sido, pois, com toda a naturalidade que a doutrina utiliza o termo “modalidades” na mesma acepção. Sirva de exemplo CARLOS OLAVO:

— A ps. 20 do seu estudo A propriedade industrial e a competência dos tribunais de comércio (ver nota 8), lê-se:
“Se a acção tiver por objecto qualquer das mencionadas pretensões (à abstenção de uma conduta lesiva, à cessação de uma conduta lesiva, à eliminação dos resultados da ilicitude praticada e à reparação dos danos sofridos), deve ser proposta em tribunal do comércio, desde que se reporte a qualquer das modalidades previstas no respectivo Código. É também no tribunal de comércio que deve ser intentada uma acção por concorrência desleal, porquanto a repressão da concorrência desleal integra a propriedade industrial”. Uma vez que a concorrência desleal é referida autonomamente pelo autor (“também”), o texto anterior a essa referência ainda não a incluía, pelo que as modalidades referidas são as correspondentes aos vários direitos privativos. Que, aliás, o termo também não se deve a lapso é confirmado pela frase seguinte: “Também as acções de reivindicação de registo se integram na competência dos tribunais de comércio”(50).

— A ps. 129 do mesmo estudo, lê-se que “há modalidades de propriedade industrial que não se encontram previstas no Código da Propriedade Industrial” e exemplifica-se com a protecção da topografia dos produtos semicondutores e com a protecção das obtenções vegetais. Modalidade significa necessariamente o mesmo que tipo ou categoria de direito de propriedade industrial, de tal modo que “as acções cuja causa de pedir verse sobre essas modalidades de propriedade industrial e os recursos das decisões que concedam, recusam ou extingam os correspondentes direitos, ficam fora da competência desses tribunais. Não há, pois, duas modalidades de propriedade industrial (a dos direitos privativos e a da repressão da concorrência desleal), mas tantas quantos os direitos protegidos(51).

Veja-se também a utilização do termo “modalidades” no acórdão do STJ de 21.11.50 (ver nota 16 supra): “indica o Código especificadamente para cada modalidade de registo (de invenção, de moldes de utilidade e de desenhos industriais, de marcas, de recompensas, de nomes ou insígnias de estabelecimentos, de denominação de origem) os motivos por que cada um desses registos pode ser recusado”.

A mesma acepção foi expressamente perfilhada, com natu-ralidade igual à da doutrina e da jurisprudência anteriores, no art. 7-1 do novo CPI, que dispõe que “a prova dos direitos da propriedade industrial se faz por meio de títulos, correspondentes às suas diversas modalidades” .

O novo CPI é, pois, expresso ao qualificar como modalidades da propriedade industrial os vários tipos de direito privativo(52), e não estes em geral (como uma modalidade) e a concorrência desleal (como outra modalidade). Coexistindo com o art. 89-1-f LOFTJ, que mantém a sua redacção, este novo preceito constitui interpretação autêntica do termo modalidade neste utilizado.

Não pode, portanto, pretender-se que, embora utilizando um termo incorrecto, o legislador pretendeu, ao referir as modalidades da propriedade industrial no art. 89-1-f LOFTJ, aludir, por um lado, aos direitos privativos e, por outro, à concorrência desleal. Tal leitura não ofenderia apenas um cultor da elegância linguística do direito; estaria também em dissonância manifesta com o uso que, correctamente, o legislador dá, em lugares paralelos, à expressão “modalidades da propriedade industrial”.

A causa de pedir da acção da competência do tribunal de comércio tem, pois, de ser integrada com factos respeitantes a algum dos direitos privativos consagrados no CPI e, de entre todos os factos que aí são objecto de tratamento, só esses interessam a tal delimitação de competência.

Compreende-se porquê: os factos constitutivos de concorrência desleal entre empresas, ou entre uma empresa e os seus administradores ou funcionários, ou ainda entre uma empresa e um terceiro sobre o qual impenda um dever de sigilo ou confidencialidade, geram responsabilidade em virtude de normas gerais de direito civil, como as que regem a responsabilidade extra-obrigacional e as que impõem boa fé e lealdade na negociação dos contratos, que normalmente os tribunais de competência genérica aplicam, e tanto assim é que o CPI nem sequer directamente configura as respectivas causas de pedir enquanto tais, mas apenas, no art. 317, os factos integradores de ilícitos penais, que só por via do art. 183-1 CC constituem também ilícitos civis; ao invés, no campo próprio da propriedade industrial, há normas muito específicas e técnicas a aplicar e o legislador português optou por atribuir aos tribunais de comércio a respectiva tutela, em sintonia com a opção que fez quanto às acções referidas no Código de Registo Comercial, às de nulidade e anulação previstas no Código da Propriedade Industrial e aos recursos referidos no art. 89-2 LOFTJ.

2. Conclusão

Bem andaram, pois, os Tribunais Superiores, em qualquer das decisões inicialmente referidas, ao entender que a acção de indemnização fundada em factos ilícitos integradores da previsão da norma penal do art. 317 CPI (anterior art. 260) e, como tal, constitutivos, por via do art. 483-1 CC, do dever de indemnizar, não integra a situação do art. 89-1-f LOFTJ, não sendo da competência do tribunal de comércio, pelo que se mantém a competência material genérica do tribunal cível.



Notas:

(1) Os tribunais de comércio tinham sido extintos pelo DL 21.694, de 24 de Setembro de 1932. A sua tradição remonta aos alvores do próprio direito comercial, na alta Idade Média; tendo constituído inicialmente uma emanação corporativa, vieram a ser integrados na estrutura judiciária comum a partir do Código Comercial de 1833. Subsistiram, sem interrupções, em outros países, como a França (infra, nota 42).

(2) Os tribunais judiciais de 1.ª instância são, em regra, os tribunais de comarca (art. 62-1 LOFTJ), podendo haver tribunais de competência especializada e tribunais de competência específica (art. 64-1 LOFTJ). Os primeiros conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável, ao passo que os segundos apenas conhecem de matérias determinadas em função da forma de processo aplicável, bem como dos recursos das decisões das autoridades administrativas em processo de contra-ordenação (art. 64-2 LOFTJ). Os tribunais de comércio são justamente um tribunal de 1.ª instância de competência especializada (art. 78-e LOFTJ).

(3) Além das acções referidas nas alíneas b) a h) do n.° 1 e no n.° 3 (“apensos”), bem como dos recursos referidos no n.° 2, acarretando ainda a competência para preparar e julgar os respectivos incidentes, determina esse artigo que lhes cabe preparar e julgar os processos especiais de recuperação da empresa e de falência, assim torneando as dificuldades da sua qualificação como acções.

(4) Palavras do Ministro da Justiça, VERA JARDIM, na apresentação da proposta de lei da LOFTJ, Diário da Assembleia da República, I Série, n..° 2, de 18 de Setembro de 1998, p. 58.

(5) Exposição de motivos da proposta de lei da LOFTJ, Diário da Assembleia da República, II.ª Série-A, n.° 59, de 12 de Junho de 1998, p. 1279.

(6) Assim é que, na exposição de motivos, se referem, no ponto 6.8.1, como objecto da competência dos tribunais de comércio a criar, as “acções relativas ao contencioso das sociedades comerciais e ao contencioso da propriedade industrial”, bem como “as acções e os recursos previstos no Código do Registo Comercial e os recursos das decisões em processo de contra-ordenação no âmbito da defesa e promoção da concorrência”. Por seu lado, a afirmação do Ministro da Justiça relatada no texto surgiu na sequência de outra, em que dizia ir ser consagrada a competência dos tribunais de comércio “para todas as acções de direito societário, de propriedade industrial, para as acções respeitantes ao registo comercial, bem como para recursos, nomeadamente os interpostos das decisões do Conselho da Concorrência”. A referência era, pois, à matéria do art. 89-2 LOFTJ.

(7) Esta é a redacção que resulta da declaração de rectificação n.° 7/99.

(8) Ver CARLOS OLAVO, A propriedade industrial e a competência dos tribunais de comércio in Direito industrial, Almedina, 2001, II, ps. 121-126.

(9) LUÍS BIGOTTE CHORÃO, O conceito de concorrência desleal – Evolução legislativa in Concorrência desleal, Coimbra, Almedina, 1997, ps. 165-171. Ver também HERMENEGILDO BAYLOS CORROZA, Tratado de derecho industrial, Madrid, Editorial Civitas, 1993, ps. 4-5.

(10) Foi confirmada e ratificada por Portugal por Carta Régia de 17 de Abril de 1884.

(11) Ambos os aditamentos, tal como os que se vão seguir, são prontamente ratificados e confirmados por Portugal.

(12) A última revisão da Convenção da União de Paris (revisão de Estocolmo de 14.7.67) foi aprovada para ratificação pelo Decreto n.° 22/75, de 2 de Janeiro, e ratificada conforme Aviso publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 15 de Março de 1975. O texto actual do art. 1.2 contém, a mais do que o originário, a referência, não só à repressão da concorrência desleal, mas também aos modelos de utilidade e às indicações de proveniência.

(13) GEORGES BRY, La propriété industrielle, littéraire et artistique, Paris, 1914, p. 508. Ao longo da parte dedicada, nesta obra, à concorrência desleal, o autor trata sucessivamente, à luz do direito jurisprudencial francês, dos factos geradores de confusão entre os estabelecimentos ou os seus produtos e de outros três factos geradores de desvio de clientela (e também da violação de cláusulas contratuais), entre os quais não só os que se traduzem na depreciação do concorrente e das suas mercadorias, mas também os que implicam o desvio de empregados para obtenção de segredos ou para outro fim fraudulento. Embora este último caso, que não viria a ser especialmente previsto na revisão de 1925 da Convenção da União de Paris, seja já característico da desvinculação do instituto, ele aparece ainda ligado à ideia de apropriação fraudulenta do objecto de direitos alheios (ps. 535-536). Compare-se o modo como é tratado por GEORGES BRY com o seu tratamento, por exemplo, em VANZETTI-CATALDO, Manuale di diritto industriale, Milano, Giuffrè, 1996, ps. 102-05, que dão conta de evoluções registadas na caracterização desta situação, que o direito italiano tipifica. Hoje, já não é possível dizer que “há concorrência ilícita [divergente, para o autor, da concorrência desleal em que não exige o dolo, bastando--lhe a simples culpa] quando o acto é ilegítimo e viola um direito” (GEORGES BRY, idem, ps. 509-510). Já em 1952 RAUL ROUBIER, Le droit de la propriété industrielle, Paris, Soufflot, 1952, estabelecia, ao invés, a fronteira entre a acção baseada na violação dum direito privativo da propriedade industrial e a acção baseada em concorrência desleal, qualificando a primeira como acção por contrafacção e caracterizando a segunda por não corresponder “à defesa dum direito previamente conquistado e consagrado, sendo tão-só um meio de reacção concedido pela ordem jurídica contra a conduta criticável dum concorrente”.

(14) JOSÉ LOBO D’ÁVILA LIMA, Da concorrência desleal, Coimbra, 1910, ps. 72-74. Também BARBOSA DE MAGALHÃES, como frisa BIGOTTE CHORÃO, cit., p. 176, defendia que a concorrência desleal só podia, nos termos gerais, fundar a responsabilidade delitual “quando importasse a violação dum direito, a infracção a um preceito legal” (Do estabelecimento comercial, Lisboa, Ática, 1951, p. 180).

(15) CARLO SANTAGATA, Concorrenza sleale e interessi protetti, Nápoles, 1975, p. 11, apud BIGOTTE CHORÃO, cit., p. 174.

(16) BMJ, 22, p. 347. Estava em causa o direito ao uso do nome dum estabelecimento: a “Casa da Sorte” tinha registo válido para o território continental; requerido por outrem o registo do mesmo nome para a Colónia de Angola, tal foi recusado pelo Ministério da Economia, mas admitido, em recurso, pelo tribunal cível da comarca de Lisboa, com fundamento em que a protecção conferida pelo registo se limitava ao território continental; quer a Relação, quer o Supremo, foram do entendimento que, não obstante o direito privativo não ser invocável em Angola, os actos de concorrência desleal não estavam sujeitos a semelhante delimitação temporal e, sendo o nome em causa igualmente conhecido em Angola, ocorria o fundamento de recusa consistente em o requerente do registo pretender fazer concorrência desleal, ou ser esta possível, independentemente dessa intenção. O acórdão foi tirado com 2 votos de vencido. A solução que fez vencimento está conforme com a ideia de que a fatispécie da concorrência desleal confusória tem como elemento constitutivo o uso efectivo no território em que se verifica a sobreposição (esta é sobreposição territorial de actividades) e não o registo constitutivo dum direito privativo válido nesse território (VANZETTI-CATALDO, cit., ps. 45-46).

(17) JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO, Conceito de concorrência desleal, Lisboa, 1964, ps. 5 a 13. O autor admite que sejam qualificados como concorrência desleal “os casos em que a concorrência é praticada mediante a usurpação ou violação directa ou frontal de um direito específico de propriedade industrial”, mas entende, contrariamente ao que “ordinariamente” faz a doutrina e a jurisprudência, que tais casos mais não representam do que “um aspecto restrito da concorrência desleal e que esta pode existir independentemente de tal infracção”, bastando-lhe uma prática fraudulenta contrária aos usos honestos do comércio. Violação de direito privativo e concorrência desleal podem, portanto, segundo o autor, coexistir (por isso discorda de MARIO ROTONDI, quando exclui do conceito de concorrência desleal os casos em que há violação de um direito específico de propriedade industrial, verificando-se contrafacção), mas a característica da concorrência desleal consiste na repressão genérica dum comportamento contrário aos usos honestos do comércio. O autor admite, porém, ainda, seguidamente, que esta contrariedade só é relevante quando o comportamento censurável interfere com o gozo dum direito privativo da propriedade industrial, ainda que por forma indirecta ou muito ténue.

(18) FERRER CORREIA, Reivindicação do estabelecimento comercial como unidade jurídica, RLJ, 89, p. 261; FERNANDO OLAVO, A empresa e o estabelecimento comercial, Ciência e técnica fiscal, 1963, II, p. 35 (46); JORGE PATRÍCIO PAÚL, Concorrência desleal, Coimbra, 1965, p. 45; OLIVEIRA ASCENSÃO, Concorrência desleal, Lisboa, 2000, p. 60; CARLOS OLAVO, Propriedade Industrial — Noções fundamentais, CJ, 1987, IV, p. 14; LUÍS BIGOTTE CHORÃO, cit., ps. 171 e 178; ADELAIDE MENEZES LEITÃO, Imitação servil, concorrência parasitária e concorrência desleal in Direito industrial cit., I, ps. 131-132.

(19) Diz-nos o art. 1.° do actual CPI que “a propriedade industrial desempenha a função de garantir a lealdade da concorrência, pela atribuição de direitos privativos sobre os processos técnicos de produção e desenvolvimento da riqueza”. Nota OLIVEIRA ASCENSÃO a felicidade desta alteração, tendo em consideração o facto de o instituto da concorrência desleal estar erradamente regulado no CPI (A reforma do Código da Propriedade Industrial in Direito Industrial cit., I, p. 501).

(20) OLIVEIRA ASCENSÃO, Concorrência desleal, Almedina, 2002, p. 73.

(21) Cit., p. 120. Defende-a o autor, a ps. 14 da obra citada na nota 18. (22) Ver JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO, nota 17 supra. Assim também em TULLIO ASCARELLI, Teoria della concorrenza e dei beni immateriali, Milano, Giuffrè, 1956, p. 130 (exemplificando com a acção de contrafacção da insígnia do estabelecimento e a acção de concorrência desleal, a primeira visando o reconhecimento do direito absoluto à insígnia e a segunda tendo em vista a repressão dos actos de concorrência que, por via dos meios utilizados, são idóneos a criar confusão entre produtos e actividades de diversos sujeitos, provocando um esvaziamento da clientela), e no acórdão do TRL de 10.7.85, CJ, 1985, IV, p. 163 (cumulação real de crimes: contrafacção e concorrência desleal).

(23) O instituto da concorrência desleal é complementar e subsidiário, só a ele se podendo recorrer quando falham os pressupostos da tutela dos direitos privativos. Assim, por exemplo, em MARIO ROTONDI, Diritto industriale, Milano, Casa Editrice Ambrosiana, 1942, p. 420, BAYLOS CORROZA, cit., p. 333, ADELAIDE MENEZES LEITÃO, cit., ps. 133-135, ac. do STJ de 16.12.96, BMJ, 462, p. 448 (algo confusamente), e parecer da Procuradoria Geral da República n.° 17/57, de 3.5.57, ps. 451-452.

(24) Contenuto e limiti del diritto industriale in Studi riuniti di diritto industriale, Milano, Giuffrè, 1972, ps. 5-8. 18 e 25. Ver também p. 26: a reserva de zonas de exclusivo constituem “outros modos de exercer, agora e sempre, a concorrência”.

(25) Designadamente, as constantes do DL 371/93, de 29 de Outubro (Regras de Concorrência).

(26) FRANCESCHELLI, cit., p. 27. O autor não crê na autonomia científica do direito industrial (p. 14), denominação que considera redutora, tanto como a tentativa de condução dos institutos em causa ao ramo da propriedade industrial, que se limita a um tipo de relação jurídica exclusivo dos direitos privativos (p. 28); mas aceita como boa a unificação de todos esses institutos sob a égide do direito concorrencial ou direito da concorrência (ibidem).

(27) ADELAIDE MENEZES LEITÃO, cit., p. 145.

(28) BAYLOS CORROZA, cit., ps. 335-336. Já assim em JOSÉ LOBO D’ÁVILA LIMA, cit., p. 73 (ver nota 14 supra), embora, na perspectiva ultrapassada da concepção da concorrência desleal como violadora dum direito privativo, conjugasse esse abuso com a violação dum direito alheio.

(29) É conhecida a integração da propriedade intelectual e da propriedade industrial na categoria mais vasta da propriedade sobre bens incorpóreos, oposta à propriedade sobre bens corpóreos. Defendendo ou não essa integração, há que constatar que “os direitos privativos asseguram posições exclusivas na concorrência, e não a lealdade na concorrência” (OLIVEIRA ASCENSÃO, Concorrência desleal cit., edição de 2002, p. 78). Ver o art. 316 CPI (art. 257 do CPI de 1995), mandando aplicar à propriedade industrial as garantias estabelecidas por lei para a “propriedade em geral”.

(30) Como bem nota BAYLOS CORROZA cit., p. 333, “a inclusão da concorrência desleal no âmbito da propriedade industrial é totalmente desacertada e baseia-se no erro de crer que todo o acto de concorrência desleal implica o ataque a um direito subjectivo do lesado, quando o certo é que só supõe o incumprimento da obrigação de utilizar meios honestos e admitidos para realizar a concorrência”. Ver também a crítica de FRANCESCHELLI, Proprietà industriale in Studi riuniti di diritto industriale cit., p. 59. Entre nós, ver, especialmente, OLIVEIRA ASCENSÃO, Concorrência desleal, cit., edição de 2002, ps. 77-78 e 82-83, e Concorrência desleal cit., edição de 2000, ps. 58-60.

(31) PATRÍCIO PAUL, cit., p. 85; ADELAIDE MENEZES LEITÃO, cit., p. 133. Aceita-o OLIVEIRA ASCENSÃO, dado que “historicamente a concorrência desleal representou uma maneira de tutelar situações que não tinham a solidez suficiente para serem cobertas por direitos privativos” (Concorrência desleal cit., edição de 2002, p. 77).

(32) ADELAIDE MENEZES LEITÃO, cit., p. 132. A ideia de convergência só é aceitável na medida em que não ponha em causa a autonomia do instituto, do seu âmbito de aplicação própria e da sua função específica. Ver a mesma autora nas páginas seguintes (ps. 133 e 134), embora empregando a expressão enganosa “unidade funcional” a ps. 136.

(33) Ver, sobre a ligação entre os conceitos de interesse e de função e a essencialidade do primeiro para a configuração do segundo, SANTORO-PASSARELLI, Atto giuridico, Enciclopedia del diritto, IV, ps. 209-210. Na perspectiva do acto jurídico, a função é a realização do interesse que a lei visa satisfazer mediante a produção dos efeitos que dele resultam. Na perspectiva da norma jurídica, trata-se da realização dos interesses por ela protegidos, que constituem a razão do preceito.

(34) PAULO MELERO SENDIM, Uma unidade do direito da propriedade industrial? in Direito e justiça, 1981-1986, II, ps. 191-192 e 197-199; BIGOTTE CHORÃO, cit., p. 178.

(35) BAYLOS CORROZA, cit., p. 337; ADELAIDE LEITÃO, cit., p. 145 (já atrás: nota 27); PAUL ROUBIER, cit., ps. 308 e 316; EMILIO MORENO E BRAVO, Delitos contra la propriedad industrial, Madrid, Dykkinson, 1999, p. 28 (normas objectivas de conduta).

(36) BIGOTTE CHORÃO, cit., p. 178.

(37) ASCARELLI, cit., p. 125: “O esvaziamento da clientela alheia pode respeitar à clientela de determinado empresário ou à dum conjunto de empresários, podendo os actos de concorrência desleal distinguir-se assim em actos praticados perante determinado concorrente e actos praticados perante os concorrentes em geral”. Este último é, tipicamente, o caso da afirmação falsa sobre a natureza, o modo de fabrico, as qualidades ou a quantidade da produção própria, sobre o crédito ou reputação própria, a actividade própria ou a clientela própria ou sobre a proveniência ou localização de fábrica, oficina, propriedade ou estabelecimento próprio (n.° 3.° do art. 10 bis 3 da Convenção da União de Paris e als. d) e e) do art. 317 CPI, equivalentes às alíneas d), e) e f) do art. 260 do CPI de 1995).

(38) FERRER CORREIA, cit., p. 267; ac. do TRL de 23.2.95, proc. 9.040 (inédito), apud ADELAIDE MENEZES LEITÃO, cit.,p. 133 (285). Ver também os autores citados por PAULO SENDIM, cit., p. 182 (1).

(39) Cf. ASCARELLI, cit., p. 131.

(40) ASCARELLI, cit., p. 131.

(41) PAUL ROUBIER, cit., ps. 308, 313 (epígrafe do n.° 72) e 316.

(42) PAUL ROUBIER, cit., p. 308. O autor distingue as duas acções por duas características essenciais: a causa e o fim. A competência é uma derivação desta sua diferente natureza. De acordo com os arts. L.411-2, 3 e 4 do Code d’organisation judiciaire (anteriores arts. 631 a 633 do Code de commerce), o tribunal de comércio é competente para as causas relativas às obrigações e transacções entre comerciantes, aos actos de comércio celebrados entre quaisquer pessoas, a litígios entre sócios duma sociedade comercial e a litígios provocados por empresas em dificuldade (para estes últimos, desde 1985); no primeiro caso, as obrigações em causa podem ter origem delitual ou quase-delitual (VINCENT--GUINCHART, Procédure Civile, Paris, Dalloz, 1987, ps. 212-216).

(43) Não é nunca um instituto de garantia deste para quem entenda que o campo dos direitos privativos e o da propriedade industrial não se sobrepõem (supra, nota 23). Sê-lo-á apenas ocasionalmente para quem defenda que os dois campos se podem ocasionalmente sobrepor (supra, nota 22).

(44) A este propósito, é útil um breve relance de direito comparado, que nos permitirá aferir não ser a concorrência desleal, em regra, tratada conjuntamente com a propriedade industrial. Assim, em França, a protecção contra a concorrência desleal não se encontra estabelecida e regulada em qualquer lei especial, sendo a sua repressão assegurada pelos princípios gerais da responsabilidade civil constantes do Código Civil (arts. 1382 e 1383). O mesmo sucede nos países da common law, onde a repressão da concorrência desleal é baseada nos princípios gerais de direito. Por seu turno, na Alemanha a concorrência desleal está regulada em lei especial desde a Lei de 7 de Junho de 1929. O mesmo sucede em Espanha, desde 10 de Janeiro de 1991, e na Itália, onde a concorrência desleal está tratada nos arts. 2598 a 2601 do Código Civil de 1942.

(45) OLIVEIRA ASCENSÃO, Concorrência desleal cit., edição de 2000, p. 60.

(46) CARLOS OLAVO, Concorrência desleal e direito industrial, Coimbra, 1997, p. 81. Esta integração é severamente criticada por OLIVEIRA ASCENSÃO, cit., ps. 81-83: por ele é realçado que, mesmo que o direito da propriedade industrial e o da concorrência desleal fizessem parte dum mesmo ramo do direito, a dissociação entre as matérias por ambos reguladas seria manifesta. Veja-se PAULO SENDIM, cit., p. 191: embora inserindo ambas no direito industrial, vê o fundamento das normas repressivas da concorrência desleal, não só nos direitos das empresas, mas também nos interesses da economia em geral e nos dos consumidores (supra, nota 34).

(47) OLIVEIRA ASCENSÃO, Concorrência desleal cit., edição de 2002, p. 77.

(48) ALMEIDA COSTA — SAMPAIO E MELO, Dicionário da língua portuguesa, Porto Editora, 6.a edição.

(49) Vimos que não: a repressão da concorrência desleal não constitui protecção dum direito subjectivo e, muito menos, dum direito privativo, não obstante a epígrafe do Capítulo I do título III do Código (“Infracções contra a propriedade industrial”).

(50) Com significado igual à palavra também, é utilizado um pouco adiante o termo ainda: “A competência dos tribunais de comércio abrange ainda as acções que tenham causa de pedir complexa”; “é ainda o caso da acção por enriquecimento sem causa, por facto atinente a uma das modalidades de propriedade industrial previstas no Código”. Não há dúvida de que as palavras “também” e “ainda” funcionam, no texto, como elementos de ligação entre os vários tipos de casos que o autor considera englobados na competência do tribunal do comércio, o primeiro dos quais, anterior ao da acção por concorrência desleal, respeita exclusivamente às acções em que se queira fazer valer um direito privativo.

(51) Ver também a p. 138 (“modalidades de propriedade industrial previstas em legislação avulsa”). Só não se percebe como pode o autor conciliar este conceito com a extensão que faz da previsão do art. 89-1-f LOFTJ à acção fundada em concorrência desleal (p. 120 do mesmo estudo: passagem transcrita). Em outro seu estudo (Concorrência desleal e direito industrial: ver nota 46), CARLOS OLAVO utiliza, a ps. 57, a expressão “ordens de ideias” para designar a tutela dos direitos privativos da propriedade industrial, por um lado, e a repressão da concorrência desleal, por outro.

(52) Veja-se também a perfeita naturalidade com que esta qualificação é assumida pelo Jornal do INPI de 27.7.03, em As potencialidades da propriedade industrial, www.inpi.pt/main_jorrep2.htm.

24/09/2023 06:03:29