Diogo Leite de Campos - Preços de transferência e arbitragem


PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA E ARBITRAGEM

Pelo Prof. Doutor Diogo Leite de Campos(*)

1. Introdução. O problema dos preços de transferência

O ajustamento dos preços de transferência pela Administração Fiscal é um problema fiscal recorrente com que se deparam os grupos multinacionais e nacionais de sociedades. Compreende as transferências de serviços, de mercadorias e de intangíveis tais como patentes, licenças, marcas registadas, etc. Segundo dados fornecidos pela Comissão da União Europeia, em Setembro de 2004, sobre os custos administrativos fiscais para os grandes grupos de sociedades da União Europeia, os maiores problemas sentidos por estas são referentes aos preços de transferência, referindo-se 82% das queixas à documentação nacional exigida em relação com esses preços.

Nos grupos de sociedades que sejam tributados numa perspectiva orgânica, como se tratasse de uma só sociedade, não há problemas (fiscais) de preços de transferência. Também nos grupos de sociedades, como um conjunto, o problema dos preços de transferência não se põe, ou não é significativo, na medida em que os bens e serviços não saiam do grupo. Com efeito, os lucros e perdas do grupo são realizados só depois de os bens e serviços serem vendidos a terceiros. Contudo, as diferenças quanto à incidência de impostos e, especialmente, quanto às suas taxas, entre os diversos Estados, e as diferenças de situação económica e financeira das diversas sociedades dentro de um Estado, levam a que a prestação de serviços ou o comércio de mercadorias dentro do grupo tenham consequências significativas quanto à situação fiscal do grupo – e, antes disso, na organização racional do grupo(1).

Porém, é cada vez mais difícil aplicar o princípio “at arm’s length” que está na base do controlo dos preços de transferência.

Em primeiro lugar, as sociedades, as empresas e os mercados estão cada vez mais integrados, não só pela formação de mercados regionais, como pela globalização em geral. Assim, é difícil encontrar transacções comparáveis entre empresas independentes. Tanto mais que tais transacções são sigilosas, não sendo facilmente desvendáveis, quer à A. F. quer à concorrência.

Por outro lado, os produtos e serviços, cada vez mais especializados, são cada vez menos comparáveis. Além de imaterizalizados, são pouco conhecidos.

Finalmente, uma parte significante das relações entre os grupos versa intangíveis (patentes, marcas registadas, Know-how, etc.) que são dificilmente susceptíveis de avaliação.

Finalmente o princípio “at arm’s length” pressupõe ou exige uma independência que vai contra a própria maneira de ser dos grupos de sociedades. Com efeito, as empresas do mesmo grupo não são independentes umas das outras. Numa perspectiva de grupo, será muitas vezes difícil, se não impossível, aplicar um preço “independente” a uma empresa do grupo. Com efeito, a essência dos grupos multinacionais e nacionais, o que permite a sua vantagem competitiva, é actuarem como uma única entidade no mercado e assim obterem mais altos rendimentos das operações, no seu conjunto, do que se operassem segundo o princípio “at arm’s length”.

As sociedades do grupo funcionam como órgãos de um corpo unitário.
Além disso, alguns custos não existem fora dos grupos de empresas relacionadas. É muitas vezes difícil determinar que parte dos custos da sede podem ser imputados a cada uma das empresas do grupo. Por vezes, a pouco rigorosa fórmula da repartição pode ser a única praticável para dividir tais custos.

Por outro lado, o comércio electrónico torna inadequada a tributação dos lucros com base na presença física em uma certa jurisdição. Nesta medida, o critério do estabelecimento permanente será inadequado à luz das possibilidades que o comércio electrónico, a “internet” e a tecnologia das comunicações fornecem para transmissão de dados, compras por computador, etc. O comité fiscal da OCDE publicou diversos documentos sobre o estabelecimento permanente à luz do comércio electrónico que bem revelam as dificuldades sentidas.

A tributação unitária (“orgânica”) poderia resolver muitos destes problemas: os “preços de transferência” seriam irrelevantes, a presença física numa jurisdição não seria decisiva e a compensação de lucros e perdas seria efectuada automaticamente. Definir-se-ia o conjunto de sociedades constituindo um grupo; depois, o lucro total e internacional de tal grupo seria consolidado; finalmente, dividir-se-ia o lucro total do grupo entre os Estados em que este opera. Note-se contudo, que para este sistema funcionar adequadamente, todos os Estados envolvidos deveriam definir o lucro da mesma maneira, usar a mesma base tributária e determiná-la segundo as mesmas regras tributárias (é o que sucede dentro dos Estados Unidos em que os Estados usam a mesma base tributável definida federalmente); e deveriam usar a mesma fórmula para a divisão do lucro entre os Estados. Algumas formas de tributação unitária são usadas em federações como os Estados Unidos, o Canadá e a Suiça.

A tributação unitária dos grupos de sociedades em diversos Estados (na U.E.) exigiria um reconhecimento mútuo dos sistemas de contabilidade fiscal. Nomeadamente, os Estados interessados aceitariam que a contabilidade de um grupo fosse determinada pela contabilidade aceite no Estado da sede, ou então criando um sistema único de determinação da base tributável, o que poderia implicar a criação de um serviço central para os grupos de sociedades, a nível da U. E.

O primeiro sistema teria o mérito de permitir respeitar a soberania nacional. Embora o segundo sistema talvez fosse mais adequado, dado que já existem sistemas de determinação do lucro na União europeia: os “international accounting standards”/”international finantial reporting standards” (IAS/IFRS). Estas normas, criadas pelo “International accounting “standards” comitee” foram tornadas em lei comunitária pelo regulamento 2002 IAS. Este regulamento exige que as sociedades sediadas na União Europeia e cotadas numa bolsa europeia devam elaborar contas consolidadas em conformidade com tais “standards”. A Comissão considera que estas IAS/IFRS são um ponto de partida para uma base de determinação do lucro consolidado nos grupos europeus de sociedades.

2. A Convenção da UE sobre arbitragem em matéria de preços de transferência. (Convenção de 23 de Julho de 1990). Objectivos.

A finalidade da convenção sobre arbitragem, é eliminar a dupla tributação internacional que resulta da circunstância de as autoridades fiscais de um ou mais dos Estados membros corrigirem os lucros de empresas “relacionadas” estabelecidas nos seus territórios.

Com efeito, a dupla tributação internacional ocorre quando a mesma matéria colectável, por ex, o rendimento, está sujeita a um imposto idêntico ou similar em, pelo menos, dois Estados distintos. No que se refere aos preços de transferência praticados por empresas relacionadas, a referida dupla tributação decorre de um Estado membro aumentar os lucros colectáveis de uma empresa envolvida em transacções que, na perspectiva da sua administração fiscal, não são “at arm’s lenght” e quando outro Estado membro não permite um correspondente decréscimo dos lucros da empresa estabelecida no seu próprio território, empresa que é relacionada com a empresa estabelecida no território do outro Estado membro que aumentou o lucro tributável.

A convenção de arbitragem permite eliminar ou diminuir o acréscimo da matéria tributável que resulta dessa dupla tributação internacional.

Os Estados membros da União Europeia reconheceram a importância de eliminar a dupla tributação internacional ligada aos preços de transferência, que levaria a distorções nas relações entre os Estados membros. Não existindo remédios para lhes obviar com base nas leis internas ou nas leis convencionais internacionais.

A base legal para a convenção de arbitragem está no artigo 220.° do tratado de Roma. Esta norma especifica que, sempre que for necessário, os Estados membros devem negociar entre si para alcançar, em benefício dos seus nacionais, a abolição da dupla tributação dentro da comunidade.

3. O Modelo da OCDE

O artigo 9.°, 1 do modelo de convenção para eliminar a dupla tributação, da OCDE, estatui que os Estados contratantes têm o direito de ajustar, com fins fiscais, as condições negociais entre empresas relacionadas que difiram das que teriam sido acordadas entre empresas independentes. O artigo 9.°, 2 determina que, se um dos Estados procede a tais ajustamentos, o outro Estado deve proceder a ajustamentos correspondentes. Se necessário, os dois Estados envolvidos devem consultar-se para chegar a um acordo sobre o preço entre empresas independentes. Contudo, isto pode não levar a resultados satisfatórios. Muitas vezes, as autoridades fiscais de um dos dois, ou demais, Estados interessados não se conseguem pôr de acordo sobre a determinação do preço entre empresas independentes. É certo que o artigo 25.° do modelo da OCDE determina que os Estados devem diligenciar para resolver o problema por acordo mútuo; mas muitas vezes não chegam a desencadear o procedimento de acordo mútuo, e em qualquer caso não há limites temporais (nem obrigação) para chegar a uma solução que elimine a dupla tributação. Por outro lado, dado que os dois Estados envolvidos não têm o mesmo interesse em resolver o conflito, estando normalmente um deles (ou ambos) obrigado a devolver imposto, e dado que as empresas relacionadas não são partes do relacionamento entre os dois Estados, este procedimento não é desencadeado ou não chega a um resultado válido, ficando as empresas a suportar as respectivas consequências financeiras. Alguns dos mais recentes tratados internacionais de dupla tributação contêm cláusulas de arbitragem para os casos em que as autoridades não conseguiram chegar a um acordo mútuo (por ex., convenção entre a Alemanha e os Estados Unidos e entre os Países Baixos e os Estados Unidos). Mas, como o início da arbitragem depende das autoridades dos Estados interessados, e se concede às autoridades o poder de apontar os árbitros, poderá não se chegar a resultados satisfatórios. O tratado de dupla tributação entre a Alemanha e a Áustria é uma excepção no bom sentido, já que atribui ao tribunal Europeu de Justiça, com base no artigo 239.° do Tratado da União Europeia, competência para resolver o conflito, se as autoridades dos Estados interessados não chegarem a um acordo no prazo de três anos.

4. O Código de Conduta da U.E.

Em Dezembro de 2004, o Conselho da União Europeia publicou um código de conduta para os preços de transferência baseados nas recomendações da Comissão europeia. Este código prevê um período uniforme de três anos durante o qual uma sociedade pode requerer a aplicação dos procedimentos da convenção. Também um período uniforme de dois anos dentro do qual as competentes autoridades dos Estados membros envolvidos devem ter chegado a um acordo para eliminar a dupla tributação resultante de correcções de preços de transferência; regras práticas para o procedimento de acordo e para a transparência perante as sociedades envolvidas; normas para a fase de arbitragem, se as autoridades dos países não chegam a acordo no prazo de dois anos; uma recomendação no sentido de suspender a cobrança de impostos durante o procedimento de resolução do conflito nas mesmas circunstâncias em que está prevista a suspensão durante os processos ou procedimentos nacionais de recurso.

5. A génese da Convenção

De início, a Comissão da U. E. propôs uma directiva, mas os Estados membros preferiram a forma de uma convenção multilateral.

Não quiseram renunciar a uma parte da sua soberania fiscal em matéria de preços de transferência. Com efeito, a proposta de directiva baseava-se no artigo 100.° do Tratado de Roma (renumerado como artigo 94.° do Tratado de Maastricht) que dava poderes ao Conselho da C.E. para adoptar, por voto unânime, directivas propostas pela Comissão europeia. A forma legal de directiva, não só teria atribuído um carácter supranacional ao procedimento de arbitragem, como teria dado competência ao Tribunal de Justiça europeu para controlar os termos do procedimento de arbitragem; e à Comissão Europeia para desencadear procedimentos junto do Tribunal Europeu contra qualquer Estado membro que não aplicasse o procedimento de arbitragem, nem se submetesse às decisões arbitrais pronunciadas.

Em 1990, os doze Estados membros da Comunidade Europeia assinaram a Convenção sobre a arbitragem nos conflitos sobre preços de transferência.

A Convenção entrou em vigor só cinco anos mais tarde, em 1 de Janeiro de 1995, depois do último Estado membro ter ratificado o Tratado.

Com a adesão em 1995 de três novos Estados membros, a Finlândia, a Suécia e a Áustria, foi concluída uma convenção de adesão em 1995. Com vista a ultrapassar o problema de todos terem de esperar até que o último dos 15 Estados membros ratificasse a Convenção, a Convenção de adesão prevê que esta entra em vigor, para os Estados que a tenham ratificado, três meses depois de os três novos Estados membros, e pelo menos um dos antigos 12 Estados, a terem ratificado e que, para os antigos Estados que a ratifiquem mais tarde, entrará em vigor dentro de três meses da sua ratificação individual.

Contudo a própria Convenção de arbitragem, embora em vigor desde 1 de Janeiro de 1995 entre os doze “antigos” Estados membros, expirou em Dezembro de 1999.

Assim, a Convenção deixou de ser aplicável desde Janeiro de 2000. Contudo, foi celebrado um protocolo em 25 de Maio de 1999 entre os 15 Estados membros determinando que a Convenção manter-se-ia em vigor para mais cinco anos e se renovaria automaticamente por cinco anos sucessivos até que um Estado membro objectasse a tal prolongamento pelo menos cinco meses antes de expiração do período de cinco anos em curso. A Convenção assim, não esteve em vigor entre 1 de Janeiro de 2000 e Novembro de 2204, mas, mesmo assim, considera-se que está em vigor, dado o efeito retroactivo do protocolo.

Actualmente a Convenção é susceptível de aplicação bilateral entre os Estados membros que a ratificaram.

6. Conteúdo da Convenção. a) O princípio “at arm’s length”

A base da Convenção de arbitragem está na regra “arm’s length” e na exigência de contabilidades separadas. Os lucros de sociedades relacionadas, ou de sucursais e das suas sociedades-sedes, devem ser determinados como se as entidades estivessem a contratar com total independência e com base em contabilidades separadas. Estes princípios são os princípios “standard” da OCDE.

A Convenção não especifica o que significa “arm’s length”. O comentário à convenção de dupla tributação da OCDE prefere o preço comparado, visando o preço que teria sido negociado entre empresas comparáveis, mas independentes, para uma transacção comparável. Mas, muitas vezes, não é possível encontrar um preço de mercado comparável e há outros métodos como o preço de venda minorado, o custo majorado, etc. Também há métodos assentes nos lucros, como o método do lucro comparável usado nos Estados Unidos (transacções entre empresas relacionadas devem produzir um lucro líquido comparável ao lucro líquido em operações comparáveis entre empresas não relacionadas) e o método do lucro repartido (o lucro final numa transacção é dividido entre as sociedades do grupo envolvidas nas operações com base numa análise funcional das suas respectivas contribuições para este resultado, como se estivessem num “pool”).

A OCDE não preferiu nenhum desses métodos, afirmando que os métodos das transacções tradicionais são preferíveis se houver suficiente informação, e que as circunstâncias específicas podem impôr um método em vez de outro.

Isto quer dizer que qualquer método é válido na medida em que for baseado na ficção da independência entre as empresas relacionadas envolvidas, afastando a tributação unitária repartida.

É evidente que, com o objectivo de se prevenir a dupla tributação, o ajustamento do preço de transferência num Estado deve ser seguido por um correspondente ajustamento no outro. O artigo 9.°, 1 do Modelo de Convenção da OCDE impôs tal ajustamento. Contudo, o correspondente princípio de ajustamento não está expresso na Convenção de arbitragem.

A Convenção contém unicamente duas normas de lei substantiva: o princípio “arm’s length” (artigo 4.°) e a obrigação de eliminar a dupla tributação (artigos 12.° e 14.°).

7. b) Sujeitos

A Convenção atribui às sociedades afectadas pela redistribuição dos lucros a faculdade de apresentar uma reclamação junto da autoridade fiscal competente.

A Convenção engloba as situações nas quais os lucros de uma empresa de um Estado contratante, que estejam incluídos no seu rendimento tributável em tal Estado, estão também incluídos no rendimento tributável de uma sociedade de outro Estado contratante, com base na não observação, pelas empresas envolvidas, do princípio “at arm’s length” (artigo 1.°, 1). A dupla tributação resultante de outras causas não está coberta pela Convenção. Assim, a Convenção não oferece tutela para a dupla tributação internacional como resultado da recaracterização do rendimento ou dos custos por uma administração fiscal nacional, bem como para as disparidades entre a determinação da matéria colectável por Estados membros.

O conceito “empresa de um Estado contratante” não está definido na Convenção, mas cobre uma sucursal (estabelecimento permanente) de uma sociedade de um Estado membro em outro Estado membro (artigo 1.°, 2). Assim, os ajustamentos de preços de transferência entre a sede e uma sucursal dentro de uma empresa transnacional estão compreendidos na Convenção. O termo “empresa” também engloba qualquer sociedade e qualquer actividade comercial independente, levada a cabo com vista a um lucro (um negócio). Não é necessária a forma social. Assim, um empresário em nome individual que tenha duas empresas, sem forma societária, em dois Estados contratantes, pode recorrer à Convenção.

Numa declaração conjunta anexa à Convenção, os Estados contratantes estão de acordo em que o artigo 4.°, 1 também se aplica às transacções entre uma empresa de um Estado e uma sucursal em outro Estado de uma empresa relacionada num terceiro país. Este terceiro Estado deve ser um Estado da União Europeia, não subscritor da Convenção, e não um terceiro Estado qualquer.

8. c) Relações especiais

A natureza das relações especiais entre as empresas é definida no artigo 4.°, 1, que é uma reprodução literal do artigo 9.°, 1 do Modelo de Convenção da OCDE. Os critérios são: directa ou indirecta participação de uma empresa de um Estado membro na gestão, controlo ou capital de uma empresa em outro Estado (filiação vertical) e directa ou indirecta participação das mesmas pessoas na gestão, controlo ou capital de uma empresa de um Estado na empresa de outro Estado (filiação horizontal).

O artigo 4.°, 2 requer contabilidade separada entre a sede e a sucursal estrangeira, sendo uma transcrição literal do artigo 7.°, 2 do Modelo da OCDE. Contem o “método directo” de determinação dos lucros da sucursal: a contabilidade deve ser elaborada como se a sucursal fosse uma empresa separada, negociando independentemente com a sociedade de que é sucursal.

O artigo 1.°, 3, determina que a Convenção também se aplica se, devido às perdas sofridas por uma ou ambas das empresas relacionadas (ou pela sucursal e a sua casa-mãe), o ajustamento discutido não tem efeito directo e efeito fiscal imediato (para além de reduzir as possibilidades de repercutir no tempo as perdas). Consequentemente, os Estados contratantes podem não desencadear procedimentos até que o litígio produza efeitos efectivos financeiros para as empresas ou sucursais envolvidas. Do mesmo modo, o nível da efectiva tributação é irrelevante: se uma empresa associada do Estado A tem um tratamento fiscal preferencial, o Estado B não deve discutir a aplicabilidade da Convenção por falta de tributação de referência no Estado A. Isto é uma medida muito importante à luz do debate sobre concorrência fiscal danosa através de esquemas de tributação preferencial.

9. d) Impostos englobados

Estão cobertos pela Convenção os impostos sobre o rendimento das sociedades e sobre os rendimentos das pessoas singulares enunciados no artigo 2.°, 2, e qualquer outro imposto substitutivo, adicional, idêntico ou similar (artigos 2.°, 1.° e 3.°).

10. Aplicação no espaço

O âmbito territorial da Convenção é idêntico ao âmbito definido no artigo 299.°, 1, do Tratado da União Europeia, com excepção dos territórios franceses de além mar, das ilhas Feroe e da Gronelândia (artigo 16.° da Convenção).

11. Os procedimentos. a) Notificação

O Estado membro que vá proceder a um ajustamento do imposto com base no princípio “arm’s length” notificará a empresa afectada. Esta empresa deve informar a empresa relacionada, sucursal ou casa-mãe no outro Estado que, por sua vez, deve informar as autoridades fiscais do seu Estado (artigo 5.°). Se todos estão de acordo sobre o ajustamento, caso em que será feito o correspondente ajustamento no outro Estado, então não haverá necessidade de procedimento ulterior.

O Estado que vai fazer o ajustamento não é obrigado a esperar até obter a reacção da sociedade e do outro Estado. Mas o código de conduta recomenda a suspensão da cobrança do imposto decorrente do ajustamento, enquanto o conflito não for resolvido.

Se a empresa afectada entende que o ajustamento a ser feito, ou já realizado, ofende o princípio “arm’s length” e causa dupla tributação por falta de um ajustamento apropriado pelo outro Estado, pode submeter uma reclamação à autoridade fiscal competente do seu Estado. Esta reclamação deve ser apresentada dentro de três anos depois da notificação (artigo 6.°, 1). O Código de conduta determina que o prazo se começa a contar com qualquer decisão administrativa capaz de causar dupla tributação. A empresa deve informar a autoridade competente e esta deve notificar a autoridade competente dos outros Estados. Em geral, a autoridade competente num Estado membro é o Ministro das Finanças ou um seu representante (artigo 3.°, 1).

Apresentar uma queixa não impede a empresa de recorrer aos remédios do seu Direito local (artigo 6.°, 1). Por outro lado, o não uso de medidas do direito local não limita o recurso aos procedimentos da convenção de arbitragem. Até aqui, o procedimento não ultrapassa o nível doméstico com vista a um remédio unilateral.

12. b) Procedimento de acordo mútuo

Se a autoridade competente do Estado membro da empresa que apresentou a queixa não quer, ou não pode, promover uma solução unilateral, deve iniciar num procedimento de acordo mútuo com o outro Estado ou Estados envolvidos, com vista a eliminar a dupla tributação com base no princípio “arm’s length”. O artigo 6.°, 2 parece atribuir um poder discricionário à entidade competente, permitindo-lhe que não desencadeie o procedimento se a queixa não parecer bem fundada. Contudo, esta norma, que também se encontra no artigo 25.°, 1 do Modelo de Convenção da OCDE, deve ser usada unicamente para afastar queixas manifestamente infundadas.

Se as autoridades competentes chegarem a acordo, este deve ser implementado, independentemente de possíveis prazos estabelecidas nas leis domésticas quanto à definitividade das decisões administrativas (artigo 6.°, 2).

Até agora, o procedimento é a nível interestadual, não intervindo as empresas afectadas. Neste momento, a Convenção nada acrescenta, ou acrescenta muito pouco, ao procedimento de acordo amigável previsto no artigo 25.° da Convenção da OCDE. A obrigação dos Estados até esta fase é só negociar, não resolver. É na próxima fase que o procedimento arbitral constitui uma mais valia em comparação com os tratados tradicionais e mesmo com alguns tratados mais recentes.

O código de conduta prevê normas para a fase do acordo amigável, uma das quais é a de que este não deve levar a custos excessivos ou desrazoáveis para o contribuinte. O procedimento deve ser transparente para o contribuinte, havendo normas sobre as notificações que lhe devem ser feitas. Devendo as autoridades competentes enviar documentos escritos e tomar decisões em certos prazos. Os Estados membros deverão aplicar as mesmas normas para o acordo amigável nos quadros de tratados bilaterais.

13. c) Procedimento de arbitragem

Se as autoridades competentes não chegam a um acordo dentro do prazo de dois anos a seguir à queixa, deverão constituir uma comissão consultiva que emitirá uma opinião no sentido dos termos em que se deve eliminar a dupla tributação causada pelo ajustamento de impostos (artigo 7.°, 1). O período de dois anos é calculado desde a data de “submissão” do caso, mas se as empresas afectadas recorreram a meios de direito interno, o prazo de dois anos deve ser calculado desde o dia em que o julgamento final foi proferido pela jurisdição nacional (artigo 7.°, 1). O recurso a remédios legais domésticos parece ser uma maneira de remeter a arbitragem para um futuro distante. O limite de dois anos pode ser alargado com o consentimento das empresas envolvidas (artigo 7.°, 4).

O código de conduta de preços de transferência indica que informação o contribuinte deve fornecer à competente autoridade para se considerar que o caso lhe foi apresentado e portanto passar-se a contar o período de dois anos.

A obrigação de constituir uma comissão consultiva não se verifica se as leis nacionais não permitem à autoridade competente derrogar decisões judiciais, a não ser que a empresa afectada retire um recurso apresentado (artigo 7.°, 3). Em tais Estados, como é o caso da França e do Reino Unido, a empresa deve escolher entre o contencioso doméstico ou a arbitragem internacional. Apresentar o caso a uma comissão consultiva não limita a faculdade dos Estados contratantes de começar ou continuarem procedimentos administrativos ou criminais com o mesmo fim (artigo 7.°, 2).

É possível que um Estado contratante inicie um procedimento criminal ou imponha uma penalidade a uma das empresas envolvidas com o fim de obter uma justificação para não desencadear o procedimento arbitral. Com efeito, as competentes autoridades não estão obrigadas a constituir a comissão consultiva se uma das empresas está sujeita a uma “penalidade” pelas transacções que deram lugar ao ajustamento dos lucros (artigo 8.°, 1). O artigo 8.°, 2 determina que as competentes autoridades podem suspender um procedimento arbitral já iniciado até à decisão final de um caso criminal.

A concepção de “penalidade séria” está definida em declarações unilaterais ao artigo 8.° em anexo à Convenção. Estas definições nacionais têm pouco em comum. Em alguns Estados uma simples penalidade administrativa ao não preencher uma declaração podem impedir o acesso ao procedimento convencional. Outros Estados referem-se à legislação doméstica. A Grécia e Portugal estabelecem limites à fraude. O Luxemburgo considera que é uma penalidade séria se os outros Estados a considerarem para efeitos do artigo 8.°.

Parece tratar-se aqui de medidas claramente injustas, dado que fraudes ou irregularidades fiscais devem determinar a aplicação de procedimentos criminais ou administrativos, mas não de uma tributação excessiva que não pode ser considerada uma penalidade.

14. d) Constituição do Comité consultivo

O comité consultivo é composto por (artigo 9.°): um ou dois representantes de cada autoridade competente; um número correspondente de pessoas independentes a serem escolhidas de uma lista de cinco a serem elaboradas por cada um dos Estados membros; um presidente, a ser escolhido pela lista de pessoas independentes pelos representantes dos Estados membros e pelas pessoas independentes já escolhidas. O presidente deve ser qualificado para poder fazer parte dos mais altos órgãos judiciais do seu país ou ser um jurisconsulto de reconhecida competência.

O código de conduta indica certos critérios da escolha da lista e requer a publicação da lista completa das personalidades independentes. Uma comissão consultiva tipo consistiria num presidente, um representante de cada Estado membro e duas pessoas independentes.

Pretende-se que a Comissão seja independente, dominada entidades independentes entre as quais o presidente. Contudo, a escolha destas últimas, pode basear-se em critérios que as tomem muito dependentes das posições da administração fiscal.

Os membros da comissão estão sujeitos a segredo profissional, devendo os Estados membros penalizar as violações desse segredo (artigo 9.°, 6).

As empresas relacionadas não são parte do procedimento, mas têm o direito de fornecer à comissão informação, provas ou outros documentos que considerem relevantes (artigo 10.°, 1). Podendo solicitar para serem ouvidos ou representadas junto da comissão (artigo 10.°, 2). Uma autoridade fiscal competente não é obrigada a tomar medidas ou a fornecer elementos proibidos pela lei nacional. A mesma excepção não é prevista quanto à informação fornecida pelas empresas.

As empresas suportam os seus próprios custos, enquanto que os Estados contratantes repartem os custos do procedimento. O código de conduta específica que as pessoas independentes recebem mil euros por pessoa e por dia em que a comissão se reúna, mais despesas.

A comissão deve emitir o seu parecer no prazo de seis meses desde o momento em que lhe foi apresentado o caso (artigo 11.°, 1). A apresentação do caso depende da confirmação do presidente de que todos os membros receberam os documentos considerados relevantes.
A comissão decide por maioria simples (artigo 11.°, 2).

15. e) Eliminação da dupla tributação

No prazo de dois meses a contar do momento em que a comissão apresente o seu parecer, as autoridades competentes devem eliminar, de comum acordo, a dupla tributação (artigo 12.°, 1). Podem afastar-se da opinião da comissão desde que: a dupla tributação seja eliminada; e a sua decisão seja sempre baseada no princípio “at arm’s length”. Se não se obtiver acordo, as autoridades competentes devem adoptar a solução que a comissão apresentou.

O artigo 14.° especifica que a dupla tributação se considera eliminada se o montante questionado é: incluído na base tributável só de um Estado (método da isenção); ou incluído na base tributável de ambos os Estados, mas permite uma redução do imposto devido igual ao imposto devido sobre tal montante no outro Estado (método do crédito).

A convenção não estabelece normas sobre os juros a serem pagos no caso de reembolso de impostos resultantes do procedimento de arbitragem. Deverá ser decisiva a lei nacional.

16. Crítica

Saliento, a favor da Convenção, a introdução da arbitragem em Direito tributário. Tenho defendido que a recusa da arbitragem no Direito tributário nada mais reflecte do que o desejo de o Estado manter o seu “poder” (judicial) até à “última instância” da cobrança de receitas, sob pretextos que não resistem a qualquer análise, nomeadamente o de que os direitos tributários são indisponíveis. São-no, com efeito – embora cada vez menos. Mas um tribunal arbitral não dispõe deles mais do que um tribunal do Estado. Ou seja: o argumento assenta numa desvalia injustificada da arbitragem que deve ser vista como uma via de resolução de conflitos “como as outras”. Em muitos casos, mais adequada a dirimir conflitos em matéria tributária pelo elevado grau de conhecimentos “não jurídicos” que são exigidos ao juiz.

Como ponto fraco, há que sublinhar que, em última análise, ficam demasiados poderes nas administrações fiscais interessadas. Estas elaboram as listas de onde vão ser indicados os árbitros (e a experiência portuguesa é negativa nesta matéria) e têm a última palavra sobre os ajustamentos finais.


Notas:

(*) Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

(1) Como o demonstrou José Luís Schoueri, Preços de transferência, Renovar, S. Paulo.

03/10/2023 00:30:30