José Diogo Falcão - A transmissão do arrendamento para habitação por morte do arrendatário no NRAU
POR MORTE DO ARRENDATÁRIO
NO NRAU
Pelo Dr. José Diogo Falcão(*)
A Lei n.° 6/2006, de 27 de Fevereiro, que entrou em vigor em 27 de Junho de 2006, revogou o Decreto-Lei n.° 320-B/90, de 15 de Outubro (R.A.U.), e estabeleceu o novo regime do arrendamento urbano (NRAU). A nova disciplina introduzida pelo NRAU, o qual é regulamentado por seis novos decretos-lei e duas portarias, alterou substancialmente o regime substantivo e processual da relação arrendatícia.
Entre as inúmeras alterações que o NRAU introduziu na disciplina do arrendamento urbano está, indubitavelmente, o regime sobre a transmissão do contrato de arrendamento por morte do arrendatário habitacional.
É este o tema que nos propomos abordar com as presentes notas.
I – A caducidade do contrato de arrendamento. Transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário; Princípio geral.
De acordo com o preceituado na alínea d) do art. 1051.° do Código Civil, o contrato de locação, tendo natureza intuitus personae, «caduca por morte do locatário», salvo convenção escrita em contrário (art. 1059.° n.°1 do Código Civil).
Porém, e reportando-nos apenas aos contratos de arrendamento para a habitação, a regra da caducidade do arrendamento por morte do arrendatário sofre um importante regime de excepção, constante dos arts. 1106.° e 1107.° do Código Civil.
Com efeito, nos termos do n.° 1 do art. 1106.° do Código Civil, o arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário se lhe sobreviver alguma das pessoas mencionadas nas suas alíneas.
Nos termos do referido n.° 1, a ordem por que se defere o direito à transmissão do arrendamento para a habitação, por morte do arrendatário, é a seguinte:
a) cônjuge com residência no locado ou pessoa que com o arrendatário vivesse no locado em união de facto e há mais de um ano;
b) pessoa que com ele residisse em economia comum e há mais de um ano.
De acordo com o n.° 2 do art. 1106.° do Código Civil « ... a posição do arrendatário transmite-se, em igualdade de circunstâncias, sucessivamente para o cônjuge sobrevivo ou pessoa que, com o falecido, vivesse em união de facto, para o parente ou afim mais próximo ou de entre estes para o mais velho, ou para o mais velho de entre as restantes pessoas que com ele residissem em economia comum há mais de um ano».
Preceitua, pois, o n.° 2 do art. 1106.° do Código Civil que cada um dos sujeitos mencionados nessa disposição legal beneficiará da transmissão desde que não exista quem lhe prefira. Isto é, o n.° 2 estabelece uma hierarquização dos beneficiários do direito à transmissão do arrendamento, com base numa regra de prioridade semelhante à fixada no art. 2134.° do Código Civil para as classes de sucessíveis.
No caso de à data da morte do arrendatário conviver com ele qualquer pessoa que não reúna os requisitos mencionados nas alíneas a) e b) do n.° 1 do art. 1106.° do Código Civil, o contrato de arrendamento caduca. Nesse caso, essa pessoa dispõe do prazo de 6 meses para restituir ao senhorio o local arrendado (art. 1053.° do Código Civil). No caso de não restituir voluntariamente o local arrendado, o senhorio terá que propor em juízo uma acção declarativa comum de condenação para entrega do imóvel arrendado, não podendo requerer de imediato a acção executiva para entrega de imóvel arrendado (arts. 930.°-A a 930.°-E do Código de Processo Civil), porquanto ainda não está munido do necessário título executivo (art. 15.° da Lei n.° 6/2006).
Temos, para nós, que a norma constante do art. 1106.° do Código Civil tem natureza imperativa, impondo-se, por isso, mesmo contra a vontade das partes. Significa isto que não serão válidas quaisquer cláusulas através das quais as partes alterem as regras constantes do art. 1106.° do Código Civil. A própria renúncia antecipada à transmissão do direito ao arrendamento por parte de algum dos beneficiários, previstos no art. 1106.° do Código Civil, deve, em nosso entender, ser considerada inválida. Assim, se algum dos beneficiários renunciar, no momento ou posteriormente, à celebração do contrato de arrendamento (mas antes da morte do arrendatário), à transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário, deve, tal acto jurídico, ser considerado nulo(1).
Não obstante a natureza imperativa do art. 1106.° do Código Civil, nada impede que, caso os beneficiários previstos no n.° 1 do mesmo artigo não existam, senhorio e arrendatário acordem, no próprio contrato de arrendamento ou em documento escrito posterior, que o contrato de arrendamento não caduque por morte do arrendatário e se transmita a outras pessoas (2).
A disciplina constante do art. 1106.° do Código Civil, tanto se aplica aos contratos de arrendamento de duração indeterminada como aos contratos com prazo certo, embora quanto a estes apenas até ao seu termo ou da sua renovação, já que, neste caso, o senhorio pode impedir a renovação automática do contrato (art. 1097.° do Código Civil).
II - Os transmissários do direito ao arrendamento por morte do arrendatário habitacional.
Como vai referido, o n.° 2 do normativo constante do art. 1106.° do Código Civil fixa a ordem por que se transmite o direito ao arrendamento por morte do arrendatário habitacional.
Saliente-se que o n.° 1 do art. 1106.° do Código Civil suprimiu a expressão “primitivo arrendatário” constante do revogado art. 85.° do R.A.U. Neste diploma (R.A.U.) o transmitente era o primitivo arrendatário, o que implicava que a transmissão só se processava uma vez, ou duas vezes no caso de ao primitivo arrendatário defunto suceder o cônjuge sobrevivo deste ou a pessoa que com ele vivia em união de facto, situação em que o direito ao arrendamento se transmitia de novo, por morte destes, aos parentes ou afins na linha recta do primitivo arrendatário. Dispõe agora o n.° 1 do art. 1106.° que «o arrendamento não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva: …». Quer isto significar que, transmitindo-se o direito ao arrendamento por morte do arrendatário habitacional, o transmissário sucede no complexo de direitos e deveres do anterior arrendatário, transmitindo-se o arrendamento por morte do novo arrendatário aos beneficiários identificados no n.° 1 do art. 1106.° do Código Civil, e assim sucessivamente. Ou seja, com o novo regime constante do art. 1106.° do Código Civil, deixa de haver qualquer limitação ao número de transmissões por morte da posição do arrendatário habitacional.
Esta transmissão, quase que dinástica, do direito ao arrendamento por morte do arrendatário não prejudica seriamente os interesses do senhorio. Por um lado, a norma constante desta disposição legal apenas se aplica aos arrendamentos celebrados após a entrada em vigor NRAU, sendo de supor que, correspondendo a renda ao valor de mercado do imóvel, o senhorio terá interesse em que o contrato de arrendamento se mantenha em vigor. Por outro lado, caso o senhorio não tenha interesse na manutenção do contrato de arrendamento, e sendo o contrato de arrendamento de duração indeterminada, poderá sempre denunciar livremente o contrato de arrendamento — denuncia ad nutum —, nos termos dos arts. 1101.° alínea c) e 1104.° do Código Civil, fazendo cessar os efeitos do contrato de arrendamento. Sendo o contrato de arrendamento com prazo certo, poderá o senhorio opor-se à renovação do mesmo, nos termos do art. 1097.° do Código Civil, dessa forma cessando o contrato de arrendamento. Como é consabido, o NRAU desferiu um golpe profundo no vinculismo arrendatício, pois os poderes do senhorio em extinguir livremente o contrato de arrendamento foram substancialmente alargados em relação ao regime anterior.
Aderimos, assim, à doutrina firmada por Menezes Cordeiro (3) quando afirma que «esconjurado o vinculismo, nenhuma razão há para limitar a transmissão às hipóteses de morte do primitivo arrendatário. Estando as partes satisfeitas, poderá perfeitamente haver “dinastias” de inquilinos».
Analisemos cada uma das classes a quem se transmite o direito ao arrendamento por morte do arrendatário habitacional:
a) cônjuge com residência no locado.
Integrado na Secção VII que contem disposições legais aplicáveis a todos arrendamentos de prédios urbanos (quer habitacionais quer não habitacionais), o art. 1068.° do Código Civil estabelece uma regra contrária à incomunicabilidade que o art. 83.° do R.A.U. previa para os arrendamentos habitacionais.
Dispõe o art. 1068.° do Código Civil: «o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente».
Quer isto significar que, se o regime de bens do arrendatário for o regime da comunhão geral ou da comunhão de adquiridos, a posição de arrendatário comunica-se ao cônjuge do arrendatário, pelo que o contrato de arrendamento celebrado na constância do casamento (sendo o regime de bens o da comunhão de adquiridos) terá como arrendatários ambos os cônjuges e não apenas o cônjuge que celebrou o contrato. O mesmo se diga se o contrato foi celebrado antes ou depois da celebração do casamento e o regime de bens adoptado é o da comunhão geral. Por outro lado, se o casamento é celebrado no regime da separação de bens, ou se o contrato de arrendamento é celebrado em momento anterior ao casamento e este é celebrado sob o regime supletivo da comunhão de adquiridos, o arrendamento não se comunica ao cônjuge do arrendatário, pelo que, nesse caso, o cônjuge do arrendatário já não adquire a qualidade de arrendatário.
A comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge do arrendatário tem relevância ao nível da transmissão do arrendamento habitacional por morte do arrendatário.
O art. 1106.° do Código Civil prevê a transmissão do arrendamento para a habitação quando ao arrendatário falecido sobreviva cônjuge com residência no locado. Concordamos, pois, com Rita Lobo Xavier(4) quando afirma que «só haverá transmissão por morte nas situações em que o direito ao arrendamento não se comunicou entre cônjuges, em virtude do regime de bens».
Comunicando-se o direito do arrendatário ao seu cônjuge, não haverá transmissão do arrendamento por morte do cônjuge que celebrou o contrato de arrendamento, mas antes concentração do arrendamento no cônjuge sobrevivo, o qual já era, em consequência da comunicabilidade, arrendatário.
A alínea a) do n.° 1 do art. 1106.° do Código Civil, apenas exige que os cônjuges estejam casados, não obrigando a qualquer período de convivência comum, e que o cônjuge sobrevivo tenha residência no local arrendado. Quer isto significar que — não sendo o contrato de arrendamento comunicável — se o cônjuge que celebrou o contrato abandonar o lar e passar a residir noutro local (mera separação de facto), continuando a viver no local arrendado o outro cônjuge, com a morte do cônjuge arrendatário o arrendamento transmite-se ao cônjuge sobrevivo. Mutatis mutandis se o cônjuge arrendatário se encontra ausente nos termos do preceituado no art. 89.° e seguintes do Código Civil.
Esta orientação já tinha sido acolhida pela jurisprudência, no domínio do R.A.U., nomeadamente pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/01/2000, segundo o qual «a alínea a) do n.° 1 do art. 85.° do RAU deve ser interpretada restritivamente, naqueles casos em que o cônjuge arrendatário abandona o arrendado, continuando a viver neste o cônjuge sobrevivo, após a separação de facto. Nestes casos, o arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário, transmitindo-se ao cônjuge sobrevivo, observados que se mostrem os requisitos previstos neste diploma» (5).
Questão distinta tem a ver com o que se entende por ter “residência no locado”. Cremos que ter residência no local arrendado significa que este local é o centro estável da economia doméstica do cônjuge. É no local arrendado que o cônjuge habitualmente dorme, toma as suas refeições, recebe a sua correspondência, em suma tem o seu domicílio geral.
Toda a produção da jurisprudência relativa à residência permanente tem pleno cabimento no caso em apreço. Aderimos, por isso, à doutrina firmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05/06/2001, segundo o qual « não se compreenderia que, estabelecendo a lei como causa de resolução do arrendamento a falta de residência permanente no locado, a mesma lei deferisse a transmissão do arrendamento a quem, no momento em que o direito nasce na sua esfera jurídica, não tem no locado essa residência permanente»(6).
b) Pessoa que com o arrendatário vivesse no local arrendado em união de facto e há mais de um ano.
O NRAU reforçou a posição da pessoa que vive em união de facto com o arrendatário. Por um lado, e contrariamente ao previsto no art. 85.° do R.A.U. em que os filhos do arrendatário gozavam de prioridade em relação à pessoa que vivia em união de facto com o arrendatário, aquele passou a ocupar o primeiro lugar na hierarquia dos beneficiários do direito à transmissão do arrendamento já que, vivendo o arrendatário em união de facto, não se coloca a hipótese do contrato se transmitir a favor do cônjuge do arrendatário «com residência no locado». Por outro lado, o art. 1106.° do Código Civil encurtou o prazo de vivência com o arrendatário de dois anos, previsto na alínea c) do n.° 1 do art. 85.° do R.A.U., para apenas, um ano.
Por força da alínea a) do n.° 1 do art. 1106.° do Código Civil, a morte do arrendatário solteiro, divorciado, viúvo ou (apesar de casado) separado judicialmente de pessoas e bens não determina a caducidade do contrato de arrendamento se lhe sobreviver «pessoa que com o arrendatário vivesse no locado em união de facto e há mais de um ano». Nesta hipótese, o direito ao arrendamento transmite-se à pessoa que vivia em união de facto com o arrendatário.
O conceito de união de facto, para efeitos da alínea a) do n.° 1 do art. 1106.° do Código Civil, deverá ser preenchido de acordo com o preceituado na Lei n.° 7/2001, de 11 de Maio.
Estabelece o n.° 1 do art. 1.° da Lei n.° 7/2001, de 11 de Maio, que por união de facto se deve entender «a situação jurídica de duas pessoas, independentemente do sexo, que vivam em união de facto há mais de dois anos ». Segundo Pinto Furtado « não será uma definição muito perfeita, mas supomos que se compreenderá o seu alcance fundamental desde que a expressão “independentemente de sexo” seja entendida exactamente em sentido contrário ao expresso: é a convivência de base sexual em união estável e, portanto, com uma duração superior a dois anos, entre duas pessoas de oposto ou mesmo sexo”»(7).
A alínea a) do n.° 1 do art. 1106.° do Código Civil reduziu o período de vivência para um ano, o que é, desde logo, consentido pelo n.° 2 do art. 1.° da Lei n.° 7/2001.
Em nossa opinião, existirá união de facto entre duas pessoas do mesmo ou de diferente sexo, para efeitos de transmissão do direito ao arrendamento, desde que se verifique uma comunhão de cama, mesa e habitação, devendo aquela união gozar de alguma estabilidade e consistência, entendendo o legislador que, para o efeito, terá de durar há, pelo menos, um ano.
Todavia, o contrato de arrendamento não se transmitirá a todas as pessoas que vivam objectivamente em situação de união de facto com o arrendatário falecido, pois o art. 2.° da Lei n.° 7/2001, estipula que são impeditivos dos efeitos jurídicos decorrentes da união de facto—e, por isso, obstam à transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário—a) a idade inferior a 16 anos; b) a demência notória, mesmo nos intervalos lúcidos, e interdição ou inabilitação por anomalia psíquica; c) casamento anterior não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação judicial de pessoas e bens; d) parentesco na linha recta ou no 2.° grau da linha colateral ou afinidade na linha recta; e) a condenação anterior de uma das pessoas como autor ou cúmplice por homicídio doloso ainda que não consumado contra o cônjuge do outro.
Verificando-se algumas das situações previstas no art. 2.° da Lei n.° 7/2001, pode, ainda assim, o arrendamento transmitir-se à pessoa que vivia objectivamente em união de facto com o arrendatário, no caso de se apurar que aquela residia com este em economia comum e há mais de um ano, nos termos da alínea b) do n.° 1 do art. 1106.° do Código Civil.
A letra da alínea a) do n.° 1 do art. 1106.° pode suscitar a dúvida sobre se se torna necessário que aquela convivência pelo período mínimo de um ano tenha de ocorrer, ou não, no local arrendado.
Com efeito, refere a segunda parte da alínea a) que o arrendamento se transmite a «pessoa que com o arrendatário vivesse no locado em união de facto e há mais de um ano». Cremos que a tese que faz depender o direito à transmissão da circunstância da união perdurar há, pelo menos, um ano no local arrendado não é a mais correcta. Este entendimento implicaria que, para além da verificação dos pressupostos gerais da união de facto (devendo a mesma ter uma duração mínima de dois anos) há data da morte do arrendatário, este e o membro da união de facto já vivessem no local arrendado há, pelo menos, um ano. Acontece que, a aceitar este entendimento, estaria o legislador a agravar inexplicavelmente a posição do membro de união de facto quando confrontado com a pessoa que com o arrendatário residisse em economia comum, pois para esta categoria de transmissários a norma constante da alínea b) do n.° 1 do art. 1106.° não exige que a convivência pelo período de um ano tenha ocorrido no local arrendado.
Destarte, temos para nós que o membro da união de facto beneficia do direito à transmissão do arrendamento desde que vivesse em união de facto com o arrendatário defunto há, pelo menos, um ano, independentemente do local onde ambos estabeleceram previamente a sua residência. Ou seja, para que se verifique a transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário que vive em união de facto, não se torna necessário que aquela convivência tenha de ocorrer no local arrendado. Importa sim, que aquela convivência dure há, pelo menos, um ano (8).
Era já esta, aliás, a posição dominante da doutrina no domínio do R.A.U., ensinando Pereira Coelho, reportando-se ao texto original da alínea e) do n.° 1 do art. 85.° do R.A.U., que «a lei não exige que o arrendatário e a pessoa que pretenda suceder-lhe no direito ao arrendamento tenham convivido durante cinco anos em união no local arrendado; na ideia da lei, só uma união estável justifica a atribuição ao sobrevivo de um direito à transmissão do arrendamento, e o decurso do prazo de cinco anos é um índice de estabilidade da relação, não importando, porém, deste ponto de vista, que a convivência tenha decorrido durante parte dos cinco anos em outro lugar»(9).
Poderá, também, questionar-se se, ocorrendo algum dos impedimentos previstos no art. 2.° da Lei n.° 7/2001 — por ex. idade inferior a 16 anos ou casamento anterior não dissolvido —, este prazo de um ano só deverá começar a contar-se a partir da cessão do impedimento ou se é suficiente que, à data da morte do arrendatário já não exista esse impedimento, desde que, claro está, a convivência em união de facto já durasse há, pelo menos, um ano.
Não sendo a doutrina unânime sobre esta questão, concordamos com a tese pugnada por Maria Olinda Garcia (10), no âmbito do R.A.U. mas que mantém actualidade no NRAU, segundo a qual «antes do desaparecimento dos impedimentos à produção dos efeitos da união de facto, referidos no art. 2.° da Lei n.° 7/2001, duas pessoas podem viver de facto em união, mas não vivem em união de facto, ou seja, enquanto se mantiverem aqueles impedimentos legais, a união entre aquelas pessoas não tem relevo jurídico para efeitos da transmissão do direito ao arrendamento.
Só após o desaparecimento daqueles obstáculos é que existe juridicamente união de facto; portanto, só a partir daí deverá iniciar-se a contagem dos dois anos para efeitos da alínea e) do n.° 1 do art. 85.°».
Consideramos, assim, que o prazo de um ano apenas se deverá começar a contar a partir da cessação do impedimento.
c) Pessoa que com o arrendatário residisse em economia comum e há mais de um ano.
A Lei n.° 6/2001, de 11 de Maio, que tutela o regime de protecção das pessoas que vivam em economia comum, acrescentou ao n.° 1 do art. 85.° do R.A.U. uma nova alínea (alínea f)).
Por força dessa alínea f) passaram a ser titulares do direito à transmissão do arrendamento todos os que, à data da morte do arrendatário, com ele convivessem em economia comum há mais de dois anos.
O NRAU manteve e, em certa medida reforçou, a tutela do direito à transmissão do arrendamento por morte do arrendatário para quem com este residisse em economia comum. Com efeito, a alínea b) do n.° 1 do art. 1106.° do Código Civil encurtou o prazo de residência em economia comum, para efeitos de transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário, de dois anos para um ano, o que é expressamente consentido pelo n.° 2 do art. 1.° da Lei 6/2001.
O conceito de economia comum é definido pelo art. 2.° da Lei n.° 6/2001, o qual esclarece que «entende-se por economia comum a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos» e que «o disposto na presente lei é aplicável a agregados constituídos por duas ou mais pessoas, desde que pelo menos uma delas seja maior de idade».
Não basta, assim, para beneficiar da aplicação da Lei 6/2001 que duas ou mais pessoas residam e tomem as suas refeições debaixo do mesmo tecto. Torna-se necessário que essas pessoas se entreajudem ou partilhem em comum os seus recursos.
Porém, ainda que uma ou mais pessoas residam com o arrendatário em economia comum, nos termos do art. 2.° da Lei 6/2001, podem verificar-se determinados impedimentos que, por si só, obstem a que a situação de economia comum produza efeitos jurídicos, designadamente em sede de transmissão do direito do arrendamento por morte do arrendatário.
Tais impedimentos vão enunciados nas várias alíneas do art. 3.° da Lei n.° 6/2001. De acordo com esta disposição legal, são impeditivos dos efeitos jurídicos decorrentes da aplicação da presente lei: «a) a existência entre as pessoas de vínculo contratual, designadamente sublocação e hospedagem, que implique a mesma residência ou habitação comum; b) a obrigação de convivência por prestação de actividade laboral para com uma das pessoas com quem viva em economia comum; c) encontrar-se alguma das pessoas submetida a situação de coacção física ou psicológica ou atentatória da autodeterminação individual».
Torna-se necessário compatibilizar cum grano salis a disciplina constante da Lei n.° 6/2001 com a norma constante do n.° 2 do art. 1093.° do Código Civil, a qual estipula que «consideram-se sempre como vivendo com o arrendatário em economia comum a pessoa que com ele viva em união de facto, os seus parentes ou afins na linha recta ou até 3.° grau na linha colateral, ainda que paguem alguma retribuição, e bem assim as pessoas relativamente às quais, por força da lei ou de negócio jurídico que não respeite à habitação, haja obrigação de convivência ou de alimentos». Temos para nós que se trata de uma presunção juris et de jure que a Lei estabelece a favor das pessoas mencionadas nesta disposição legal.
De fora de presunção ficam, desde logo, as pessoas que residam no local arrendado em consequência de negócio jurídico que respeite à habitação, como é o caso da hospedagem.
Mas já se subsumem nesta disposição legal as pessoas que habitem no local arrendado em consequência de um negócio jurídico que não diga respeito à habitação, como é o caso de uma empregada doméstica interna. Porém, apesar de o art. 1093.° do Código Civil presumir que estas pessoas (que residam no local arrendado em consequência de negócio jurídico que não respeite à habitação) vivem com o arrendatário em economia comum, é nossa convicção que as mesmas não são titulares do direito à transmissão do contrato de arrendamento por morte do arrendatário, porquanto a alínea b) do art. 3.° da Lei n.° 6/2001 as exclui. Significa isto que, apesar de o n.° 2 do art. 1093.° do Código Civil considerar que a empregada doméstica interna vive em economia comum com o arrendatário, a mesma não é beneficiária do direito à transmissão do arrendamento por morte daquele (11).
Parece-nos, assim, no que concerne às pessoas não previstas no n.° 2 do art. 1093.° do Código Civil (e que, por isso, não gozam da presunção de convivência em economia comum), que as mesmas terão de alegar e provar que viviam com o arrendatário, há mais de um ano, em economia comum. De outra forma, o contrato de arrendamento caducará por morte do arrendatário (12).
Como vai supra referido, o n.° 2 do art. 1106.° do Código Civil estipula que «a posição do arrendatário transmite-se, em igualdade de circunstâncias, sucessivamente para o cônjuge sobrevivo ou pessoa que, com o falecido, vivesse em união de facto, para o parente ou afim mais próximo ou de entre estes para o mais velho ou para o mais velho de entre as restantes pessoas que com ele residissem em economia comum há mais de um ano».
Com esta disposição legal o legislador teve o cuidado de não permitir que o direito de arrendamento se transmitisse a uma pluralidade de beneficiários mas a um único beneficiário. Daí a existência da regra de hierarquização das transmissões que a mesma fixa. A regra da contitularidade na transmissão do direito ao arrendamento, permitindo que ao arrendatário defunto suceda um conjunto de pessoas, por vezes de difícil identificação, afecta a segurança e a estabilidade da relação arrendatícia com grave prejuízo para os interesses do senhorio e da certeza e segurança do direito.
Merece destaque o facto de a posição do arrendatário se transmitir para o parente ou afim mais próximo ou de entre estes para o mais velho. Significa isto que caso o arrendatário seja solteiro, viúvo, divorciado e não viva em união de facto, mas resida com os seus pais e com um ou vários filhos, à sua morte o contrato de arrendamento transmite-se aos seus pais (e, de entre estes, para o progenitor mais velho), porquanto sendo os pais e filhos parentes no 1.° grau da linha recta do arrendatário, os pais do arrendatário serão necessariamente mais velhos que o filho ou filhos deste.
Esta solução é oposta à que vigorava no revogado art. 85.° do R.A.U.. Nos termos do n.°1 do art. 85.° do R.A.U., a ordem por que se deferia o direito à transmissão do arrendamento para a habitação, por morte do primitivo arrendatário era a seguinte:
a) cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;
b) descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano;
c) pessoa que com ele viva em união de facto há mais de dois anos, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens;
d) ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
e) afim na linha recta, com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano (seja na linha recta descendente ou ascendente);
f) pessoas que com ele vivessem em economia comum há mais de dois anos.
Preceituava o n.° 3 do revogado art. 85.° do R.A.U. que «... a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o parente ou afim mais próximo e mais idoso».
Assim, nos termos do revogado art. 85.° do R.A.U., os descendentes do primitivo arrendatário gozavam de prioridade em relação aos ascendentes para efeitos de transmissão do arrendamento por morte daquele. Esta regra já existia no art. 1111.° do Código Civil, antes de, em Novembro de 1990, entrar em vigor do R.A.U..
Com o actual art. 1106.° do Código Civil esta posição inverteu-se. Trata-se de uma opção de política legislativa cuja justeza e sensatez é discutível como todas as opções desta natureza. Terá o legislador entendido que, vivendo o arrendatário apenas com os seus pais e filhos, não deveria o contrato de arrendamento transmitir-se aos filhos do arrendatário à sua morte, permitindo que estes em seguida procedessem “ao despejo” dos avós, porventura, mais carenciados de protecção por parte do Estado no que concerne à uma habitação estável. A solução agora consagrada pelo NRAU leva a que o arrendamento se transmita ao ascendente mais próximo e mais velho do arrendatário, que vê assim a sua posição reforçada em relação aos descendentes do arrendatário.
III - O sistema da transmissão automática e a obrigação de comunicar ao senhorio a transmissão do arrendamento.
A aquisição do direito ao arrendamento não depende, ao contrário do que se passa com o fenómeno sucessório, de qualquer comportamento positivo (aceitação expressa) por parte do transmissário. Com efeito, a aquisição do direito ao arrendamento verifica-se automaticamente (ipso iure) com a morte do arrendatário.
O art. 88.° do R.A.U. preceituava que o direito à transmissão era renunciável mediante comunicação feita ao senhorio nos trinta dias subsequentes à morte do arrendatário.
O que significava que, caso o beneficiário não renunciasse à transmissão do direito ao arrendamento no prazo de trinta dias após a morte do arrendatário, caducava o seu direito de renúncia, consolidando-se na sua pessoa a posição de arrendatário.
O NRAU eliminou intencionalmente, no arrendamento habitacional, a possibilidade de o transmissário renunciar à transmissão do direito ao arrendamento. Em abono desta conclusão está o elemento sistemático, pois se atendermos ao lugar paralelo para os arrendamentos não habitacionais, o art. 1113.° do Código Civil mantém quanto a estes a faculdade de os sucessores do arrendatário defunto renunciarem à transmissão do direito ao arrendamento, devendo, para o efeito, comunicar a mesma ao senhorio no prazo de três meses. Assim, falecendo o arrendatário habitacional, o beneficiário da transmissão adquire automaticamente a posição de arrendatário podendo, caso não pretenda continuar a relação arrendatícia, denunciar livremente o contrato de arrendamento, nos termos dos arts. 1098.° e 1100.° do Código Civil, respectivamente para os contratos de arrendamentos com prazo certo e para os contratos de arrendamento de duração indeterminada. A comunicação do arrendatário destinada a fazer cessar o contrato de arrendamento por denúncia deverá observar o disposto no art. 9.° da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro.
Esta denúncia por parte do transmissário, fazendo cessar o contrato de arrendamento, interrompe a linha de transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário. Nada impede, porém, que o senhorio arrende de novo o local a qualquer outra pessoa que residisse com o arrendatário falecido, inclusive pelo mesmo valor de renda. Sendo esta a solução que decorre do texto da lei, não é a que pugnamos “de jure condendo” como melhor explicitamos aquando da análise do regime transitório.
Conforme vai mencionado supra, se é verdade que o beneficiário não é obrigado a aceitar, expressamente, a sucessão no arrendamento, não menos verdade é, porém, que não está dispensado da obrigação de comunicar ao senhorio, nos termos previstos no art. 1107.° do Código Civil, a transmissão do arrendamento, ou a sua concentração no cônjuge sobrevivo (nos termos previstos no art. 1068.° do Código Civil), nos três meses a contar da ocorrência da morte do arrendatário.
É que, conforme estipula o n.° 1 do art. 1107.° do Código Civil, cuja epígrafe é “comunicação”, recai sobre a pessoa a quem o arrendamento se transmita ou ao cônjuge sobrevivo (no caso de arrendamento ser comunicável nos termos do art. 1068.° do Código Civil) o dever de comunicar ao senhorio a transmissão do arrendamento ou a sua concentração (no cônjuge sobrevivo), devendo tal comunicação ser feita no prazo de três meses posteriores à morte do arrendatário. A lei não indica a forma como deve ser realizada a comunicação, sendo que, se atentarmos na letra do art. 9.° da Lei n.° 6/2006, esta disposição legal não se aplica à comunicação em causa porquanto apenas estabelece o regime das «comunicações legalmente exigíveis entre as partes, relativas à cessação do contrato de arrendamento, actualização da renda e obras…».
Não obstante, e desde logo por uma questão de certeza e segurança das partes, entendemos ser de aplicar o art. 9.° da Lei n.° 6/2006 à comunicação prevista no art. 1107.° do Código Civil. A comunicação deve ser acompanhada da cópia dos documentos que comprovem o direito do transmissário ou a concentração do arrendamento. O art. 89.° do R.A.U. exigia que a comunicação devia ser acompanhada dos documentos autênticos ou autenticados que comprovem o direito do transmissário. Não se alcança a razão pela qual o art. 1107.° do Código Civil não manteve essa exigência, pois apenas obriga a remeter cópias dos referidos documentos. Que documentos são esses? Depende de quem é o beneficiário. Em princípio deverão ser remetidos ao senhorio a certidão de óbito do arrendatário e certidão de casamento e o atestado de residência passado pela Junta de Freguesia no caso de o transmissário ser o cônjuge (ou no caso se concentrar na sua pessoa a posição de arrendatário); quanto ao parente na linha recta descendente ou ascendente, certidão de óbito do arrendatário, certidão de nascimento e atestado de residência.
Porém, e de acordo com o n.° 2 do art. 1107.° do Código Civil, a inobservância de tal obrigação, por parte do transmissário, não invalida a transmissão do contrato, apenas obrigando o transmissário faltoso a indemnizar o senhorio por todos os danos causados pela omissão.
Normalmente, o incumprimento ou cumprimento tardio ou defeituoso do dever de comunicação do óbito e consequente transmissão (ou concentração) do arrendamento não causará quaisquer danos ao senhorio. Mas, se lhe causar danos, pode pedir ao beneficiário que não cumpriu esse dever, uma indemnização pelos prejuízos sofridos.
Curiosamente, o n.° 2 apenas obriga o transmissário faltoso a indemnizar. Não se refere, como faz o n.° 1, ao cônjuge sobrevivo que veja a posição de arrendatário concentrar-se na sua pessoa em consequência da comunicabilidade do arrendamento (art. 1068.° do Código Civil). Esta omissão deverá ter resultado do facto de o legislador do NRAU haver praticamente reproduzido no n.° 2 do art. 1107.° do Código Civil a norma constante do n.° 3 do art. 89.° do R.A.U.. E, como é consabido, o art. 83.° do R.A.U. estabelecia a regra da incomunicabilidade do arrendamento, pelo que no domínio do R.A.U. não se colocava a questão da concentração do arrendamento no cônjuge sobrevivo.
De qualquer forma não vemos razão para não aplicar ao cônjuge sobrevivo, no qual a posição de arrendatário se concentrou por morte do outro cônjuge, uma disciplina diversa relativamente aos transmissários do direito ao arrendamento por morte do arrendatário. Assim, caso o cônjuge sobrevivo (no qual se concentrou a posição de arrendatário em virtude do regime de bens) não comunique ao senhorio a concentração do arrendamento, deverá incorrer na obrigação de indemnização prevista no n.° 2 do art. 1107.° do Código Civil.
De outra forma, a violação da obrigação de comunicação da concentração do arrendamento não implicaria qualquer consequência para o cônjuge sobrevivo.
Por fim, dispõe o n.° 3 do art. 1106.° do Código Civil que «a morte do arrendatário nos seis meses anteriores à data da cessação do contrato dá ao transmissário o direito de permanecer no local por período não inferior a seis meses a contar do decesso».
Trata-se de uma norma inovadora, já que não existia qualquer regra semelhante no R.A.U.. Significa que, se no momento em que o arrendatário morre, o contrato estava a destinado a cessar os seus efeitos no prazo de seis meses (por. ex. porque tinha prazo certo e algum dos contraentes já tinha comunicado a sua oposição à renovação, ou porque já havia sido denunciado por algum dos contraentes), o transmissário dispõe de seis meses a contar da morte para cumprir a sua obrigação de restituir o local arrendado. Assim, se o contrato tinha prazo certo e o arrendatário morre quando faltava um mês para o contrato cessar os seus efeitos, por ter havido oposição à renovação por parte do senhorio ou do arrendatário, o transmissário só terá que restituir o local arrendado no prazo de seis meses após a morte do arrendatário. O que equivale a dizer que, neste exemplo, o transmissário pode permanecer legitimamente no local arrendado por mais cinco meses para além da data em que o contrato de arrendamento cessou os seus efeitos(13).
Esta regra aplica-se, porém, mesmo no caso de o arrendatário haver promovido a extinção do arrendamento por oposição à renovação ou denúncia ou, inclusive, no caso de revogação do contrato. Não encontramos razão para, neste caso, se aplicar o n.° 3 do art. 1106.°, pois se o arrendatário promoveu, unilateralmente ou em conjunto com o senhorio, a cessação do contrato de arrendamento, não vemos que interesse juridicamente atendível justifica a atribuição ao transmissário do direito de permanecer no local arrendado por mais seis meses, a contar da morte do arrendatário (desde que ocorrida nos seis meses anteriores à cessação do contrato). Neste caso, o contrato de arrendamento verá o seu período de tempo ser legalmente alargado para além do prazo pretendido pelo arrendatário defunto.
IV - O Regime transitório
O art. 59.° da Lei n.° 6/2006 estabelece o critério geral sobre a aplicação no tempo do NRAU.
Dispõe o n.° 1 do art. 59.° da Lei n.° 6/2006, que «o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias». Assim, e sem prejuízo das normas transitórias constantes dos arts. 26.° a 58.° da Lei 6/2006 e do disposto nos n.os 2 e 3 do art. 59.°, o NRAU aplica-se a todos os contratos de arrendamento celebrados após 27 de Junho de 2006, bem como aos contratos de arrendamento celebrados em momento anterior mas que subsistam à data de 27 de Junho de 2006. Naturalmente que, quanto a estes últimos, o NRAU só se aplicará quanto aos efeitos jurídicos futuros produzidos após a sua entrada em vigor, respeitando os efeitos produzidos no domínio da lei anterior. Esta solução corresponde ao regime previsto na 2.a parte do n.° 2 do art. 12.° do Código Civil, segundo o qual quando lei nova «dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor».
Entre as normas transitórias está o art. 57.° da Lei n.° 6/2006 cuja epígrafe é «transmissão por morte no arrendamento para a habitação». Esta disposição legal encontra-se integrada na Secção III do Capítulo II do Título II, o qual é, por inteiro, dedicado às normas transitórias. O referido Capítulo II estabelece o regime transitório aplicável aos contratos de arrendamento para a habitação celebrados antes da entrada em vigor do R.A.U., bem como aos contratos de arrendamento para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 257/95, de 30 de Setembro (art. 27.° da Lei n.° 6/2006).
No que respeita aos contratos de arrendamento para a habitação celebrados na vigência do R.A.U., e aos contratos não habitacionais celebrados após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 257/95, de 30 de Setembro, dispõe o n.° 1 do art. 26.° da Lei n.° 6/2006 que integra o Capítulo I do Título II: «os contratos celebrados na vigência do regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.° 321-B/90, de 15 de Outubro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes». O n.° 2 desta disposição legal preceitua que à transmissão por morte aplica-se o disposto no art. 57.°, sendo o arrendamento para a habitação, e o disposto no art. 58.° sendo o arrendamento para fim não habitacional.
Ou seja, o art. 57.° da Lei n.° 6/2006 consagra o regime jurídico aplicável para todos os contratos de arrendamento para a habitação celebrados antes da entrada em vigor do NRAU. Por seu turno, a disciplina constante do art. 1106.° do Código Civil aplica-se a todos os contratos de arrendamento para a habitação celebrados após a entrada em vigor do NRAU.
Dispõe o art. 57.° da Lei n.° 6/2006:
1—O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto, com residência no locado;
c) ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.° ou 12.° ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
2 — Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho.
3 — Quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles;
4 — A transmissão a favor dos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, nos termos dos números anteriores, verifica-se ainda por morte daquele a quem tenha sido transmitido o direito ao arrendamento nos termos das alíneas a), b) e c) do n.° 1 ou nos termos do número anterior».
Numa primeira observação, diremos que a disciplina instituída pelo art. 57.° da Lei n.° 6/2006, simplificou o processo de transmissão do arrendamento habitacional por morte do arrendatário. Com efeito, deixa de ter aplicação a excepção prevista no art. 86.° do R.A.U., a alteração do estatuto contratual para a renda condicionada (art. 87.° do R.A.U.), a denúncia do contrato de arrendamento em alternativa ao regime da renda condicionada (art. 89.°-A do R.A.U.), e o consequente processo de denúncia (arts. 89.°-A a 89.°-D do R.A.U.).
É de salientar que a letra do n.° 1 do art. 57.° refere, ao contrário da norma equivalente constante no art. 1106.° do Código Civil, a expressão “primitivo arrendatário”.
Esta expressão, que já constava do art. 85.° do R.A.U., levou a que, quer a doutrina quer a jurisprudência, discutissem se a expressão «primitivo arrendatário» se reportava apenas ao arrendatário que assinou o contrato de arrendamento em causa, ou também ao arrendatário a quem tenha sido transmitida em vida esta posição por cessão da posição contratual (cfr. arts. 424.° e 1059.° do Código Civil). Parece-nos acertada a segunda solução pois a lei não estabelece qualquer limitação ao número de cessões da posição contratual de arrendatário, e, cada cessão, tem de ser consentida pelo senhorio para produzir os seus efeitos jurídicos. Porque o art. 57.°, contrariamente ao art. 1106.° do Código Civil, se refere ao primitivo arrendatário, os beneficiários da transmissão serão apenas aqueles que, à data da morte do primitivo arrendatário, ou da pessoa a quem tenha sido transmitida esta posição por cessão da posição contratual, estejam previstos nas várias alíneas do art. 57.°. Isto é, a transmissão do arrendamento para habitação por morte do arrendatário só se processa, em princípio, por uma vez e a favor do cônjuge do primitivo arrendatário, da pessoa que com o primitivo arrendatário vivesse em união de facto, do ascendente do primitivo arrendatário que com ele convivesse há mais de um ano, ou do filho ou enteado do primitivo arrendatário que se encontre nas situações previstas nas alíneas d) ou e) do n.° 1 do art. 57.°. Em todas as outras hipóteses não subsumíveis na previsão desta norma, é o interesse do senhorio que prevalece, caducando o contrato de arrendamento.
Da comparação do art. 57.° da Lei n.° 6/2006 com o art. 85.° do R.A.U., desde logo se evidencia a eliminação de uma classe de beneficiários que o n.° 1 do art. 85.° do R.A.U. previa. A saber: as pessoas que com o arrendatário vivessem em economia comum há mais de dois anos (alínea f) do n.° 1 do art. 85.° do R.A.U.).
Com a eliminação desta classe de beneficiários, as hipóteses de transmissão do direito ao arrendamento para a habitação ficaram assim mais limitadas.
O n.° 2 do art. 57.°, a que correspondia o n.° 3 do art. 85.° do R.A.U., estabelece a ordem por que se defere a transmissão da posição de arrendatário. Analisemos, sucintamente, cada uma das categorias de beneficiários.
Como já referimos, o NRAU aplica-se aos contratos de arrendamento celebrados antes da sua entrada em vigor, com excepção de alguns aspectos de regime para os quais existem normas transitórias, como é o caso da norma constante do art. 57.° da Lei n.° 6/2006.
Entendemos, por isso, que se aplica a estes contratos de arrendamento a norma constante do art. 1068.° do Código Civil, que estabelece a comunicabilidade do direito ao arrendamento.
Assim, e no que concerne ao cônjuge do primitivo arrendatário com residência no locado, remetemos para o que expusemos supra. Apenas acrescentaremos que somente goza do direito à transmissão o cônjuge do primitivo arrendatário ou daquele a quem tenha sido cedida a posição contratual de arrendatário. Se o arrendamento se transmitir ao cônjuge sobrevivo e este celebrar novo casamento, o arrendamento já não se transmite à morte do sobrevivo para o novo cônjuge. Poderá, no entanto, após a morte do cônjuge sobrevivo do primitivo arrendatário transmitir-se o arrendamento a favor dos filhos ou enteados deste último (primitivo arrendatário), nos termos previstos no n.° 4 do art. 57.° da Lei n.° 6/2006, desde que verificados os requisitos mencionados nas alíneas d) ou e) do n.° 1 do art. 57.°.
No que respeita à pessoa que com o primitivo arrendatário vivesse em união de facto, a lei não faz qualquer referência ao período mínimo de convivência, como faz o n.° 1 do art. 1106.° do Código Civil. Entendemos, por isso, que terá de aplicar-se o prazo de dois anos previsto no art. 1 da Lei n.° 7/2001, para que a união de facto produza efeitos jurídicos (14). Não deixamos de estranhar que a Lei trate de modo diferente situações em tudo idênticas. Pois que, se o arrendamento foi celebrado antes da entrada em vigor do NRAU, o período de vivência em união de facto, para efeitos de transmissão do direito ao arrendamento, terá de ter uma duração mínima de dois anos. Todavia, para os arrendamentos celebrados após a entrada em vigor do NRAU, o art. 1106.° do Código Civil apenas impõe o período de um ano de vivência em união de facto para que esta produza efeitos e se opere a transmissão do direito ao arrendamento. Em tudo o mais remetemos para o que acima expusemos aquando da análise da transmissão do arrendamento para a pessoa que com o arrendatário vivesse em união de facto.
Quanto aos ascendentes do primitivo arrendatário que com este convivessem há mais de um ano, e por comparação com o art. 85.° do R.A.U., vêm a sua posição privilegiada ultrapassando os descendentes do primitivo arrendatário na hierarquia de beneficiários da transmissão. Regista-se que a alínea c) do n.° 1 do art. 57.° refere-se ao ascendente que convivesse com o primitivo arrendatário e não ao ascendente que residisse com o primitivo arrendatário. Cremos, porém, que na convivência está implícita a ideia de que os parentes têm a sua residência habitual, com carácter de estabilidade e permanência, no local arrendado partilhando-o com arrendatário defunto. Tal não significa, obviamente, que os parentes do defunto arrendatário não possam, com carácter transitório e acidental (por. ex. hospitalização), ausentar-se do local arrendado.
As alíneas d) e e) limitam a transmissão do arrendamento aos filhos ou enteados do primitivo arrendatário, o que, desde já, permite concluir que os netos do primitivo arrendatário não estão contemplados na hipótese desta norma ficando, em consequência, excluídos da transmissão.
Assim, o arrendamento transmite-se sempre para os filhos ou enteados do primitivo arrendatário caso tenham menos de um ano de idade ou, caso convivam com o primitivo arrendatário há mais de um ano e sejam menores de idade.
Quanto ao filho ou enteado maiores, o arrendamento transmite-se para estes desde que tendo idade inferior a 26 anos, frequentem o 11.° ou 12.° ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior. No que concerne a estes beneficiários a lei não consagra expressamente o requisito da “convivência há mais de um ano”, mas não pode deixar de se considerar a sua exigibilidade, constituindo tal convivência um requisito geral de aplicação da norma constante da alínea d) do n.° 1 do art. 57.°. Quando o filho ou enteado, a quem o arrendamento se transmitiu, completar 26 anos de idade o contrato de arrendamento caduca, devendo o local arrendado ser restituído no prazo de seis meses (art. 1053.° do Código Civil). Destarte, se o arrendamento se transmite a um filho menor do primitivo arrendatário, o contrato caduca se, completando 18 anos de idade, não se encontrar a frequentar, pelo menos, o 11.° ano de escolaridade. O mesmo se diga se o arrendamento se transmite a filho ou enteado maior de idade que não é estudante.
Preceitua, porém, a alínea e) do n.° 1 do art. 57.° que o contrato de arrendamento se transmite a filho ou enteado maior de idade, desde que convivesse com o primitivo arrendatário, há mais de um ano, e seja portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
Quer isto significar que, neste caso, o arrendamento não caduca aos 26 anos de idade, se se transmitiu para o filho ou enteado nestas circunstâncias, não impondo a lei qualquer limite de idade para o beneficiário da transmissão.
A lei não estabelece expressamente uma hierarquia entre “o filho ou enteado” do primitivo arrendatário. Cremos, porém, que atento a sequência empregue pelo legislador, assim como a proximidade da relação pai/filho, o filho surge em primeiro lugar.
V - A transmissão do direito ao arrendamento em duplo e triplo grau. O sistema da transmissão automática.
Como vai supra referido, estipula o n.°2 do art. 57.° da Lei n.° 6/2006 que « ... a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho».
Ao dispor que o arrendamento para a habitação se transmite por morte do primitivo arrendatário, o art. 57.° admite, em princípio, somente a transmissão em um grau do direito ao arrendamento.
Porém, uma transmissão em dois graus é permitida na hipótese prevista no n.° 3 do mencionado art. 57.°, segundo o qual quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles. Assim se ao primitivo arrendatário sobreviverem os seus pais, transmitindo-se ao progenitor mais idoso o arrendamento, nos termos da alínea c) do n.° 1 do art. 57.°, pode o arrendamento transmitir-se ainda, por morte deste, ao progenitor mais novo que resida no local arrendado.
Também uma transmissão em dois graus é consentida pelo n.° 4 do art. 57.°. Esta disposição legal permite a transmissão do arrendamento do cônjuge do primitivo arrendatário, da pessoa que com o primitivo arrendatário vivesse em união de facto (há dois anos), ou do ascendente do primitivo arrendatário, para um filho ou enteado deste.
Para que o filhos ou enteados do primitivo arrendatário gozem do direito à transmissão ao arrendamento em segundo grau, torna-se necessário que, à data da morte do cônjuge do arrendatário primitivo ou do membro da união de facto, ou do ascendente do primitivo arrendatário, aqueles convivessem com estes no local arrendado há, pelo menos, um ano e reúnam os requisitos definidos na alínea d) e/ou e) do n.° 1 do art. 57.°.
Em suma, a transmissão em dois graus do direito ao arrendamento é permitida quando o direito ao arrendamento por morte do arrendatário primitivo já se transmitira ao cônjuge deste ou ao membro sobrevivo da união de facto, ou ao ascendente.
A parte final do n.° 4 do art. 57.°, inovadora em relação ao art. 85.° do R.A.U., consente uma transmissão em triplo grau. Com efeito, se o arrendamento se transmitiu do ascendente mais velho do primitivo arrendatário para o ascendente menos idoso, à morte deste, transmite-se, de novo, para um filho ou enteado do primitivo arrendatário que se encontre nas condições previstas nas alíneas d) e/ou e). Assim, se o arrendamento se transmitiu ao pai do primitivo arrendatário (mais idoso do que a mãe) e, após o falecimento do pai, à mãe deste, o arrendamento transmite-se, com a morte do mãe, ao filho ou enteado do primitivo arrendatário que se encontrem nas condições previstas na alínea d) e/ou e) do n.° 1 do art. 57.°.
Note-se que, apesar deste normativo consentir uma transmissão em três graus, o contrato de arrendamento caduca, no limite, logo que o filho ou enteado do primitivo arrendatário, sendo estudante (pelo menos do 11.° ano de escolaridade), complete 26 anos de idade.
Temos para nós, da leitura do art. 57.°, que o legislador manteve a regra da transmissão automática (ipso iure) do direito ao arrendamento por morte do arrendatário, não se tornando necessário, para o efeito, qualquer aceitação expressa por parte do transmissário.
Este sistema de aquisição automática da posição de arrendatário implica que qualquer declaração de vontade por parte deste, no sentido de beneficiar da transmissão do direito ao arrendamento, apenas confirma o que já estava legalmente consolidado.
O mesmo é dizer que, para que se consolide no transmissário a sua posição de arrendatário, não é necessário que este aceite expressamente a sucessão no arrendamento, já que o seu silêncio equivale a aceitação.
O art. 57.° não estabelece o dever de comunicar ao senhorio a transmissão do arrendamento ou a sua concentração (no cônjuge sobrevivo).
Como é consabido, tal dever, que estava previsto no art. 89.° do R.A.U., encontra-se hoje preceituado no art. 1107.° do Código Civil.
Apesar de este dever não estar previsto no regime transitório, temos para nós que o beneficiário da transmissão está obrigado a comunicar ao senhorio a morte do primitivo arrendatário (ou de quem lhe sucedeu nas hipóteses de transmissão em duplo e triplo grau).
Essa obrigação de comunicação decorre do disposto nos arts. 59.°, 26.° e 28.° da Lei n.° 6/2006, uma vez que estas disposições legais estabelecem, com a ressalva do regime transitório, a aplicação do NRAU a todos os contratos de arrendamento vigentes à data da entrada em vigor da lei nova. Assim, entendemos que a norma constante do art. 1107.° do Código Civil se aplicará directamente aos contratos de arrendamento habitacionais celebrados antes de 27 de Junho de 2006.
Como vai supra referido, na vigência do R.A.U., o beneficiário do direito à transmissão do arrendamento podia renunciar à sua transmissão. Dispunha o art. 88.° do R.A.U. que «o direito à transmissão é renunciável mediante comunicação ao senhorio nos 30 dias subsequentes à morte do arrendatário …». Esta possibilidade legal de renúncia, que já constava da versão primitiva do art. 1111.° do Código Civil, significava que o direito ao arrendamento podia transmitir-se sucessivamente às várias pessoas referidas no art. 85.° do R.A.U., segundo a ordem de preferências fixada por esta disposição legal. Podia, assim, o cônjuge sobrevivo renunciar à transmissão do direito ao arrendamento, por não ter interesse em continuar a residir no local arrendado, transmitindo-se, nesse caso, o arrendamento ao filho mais velho do arrendatário e assim sucessivamente.
Esta possibilidade legal de renúncia (e o prazo para o seu exercício) não consta do NRAU, quer para os arrendamentos celebrados após a sua entrada em vigor quer para os arrendamentos de pretérito. Parece, assim, que o transmissário que não queira suceder na posição de arrendatário terá que, na falta de acordo com o senhorio, denunciar o contrato de arrendamento nos termos gerais em que a denúncia pode ser feita. Desta forma, o arrendamento cessa os seus efeitos permitindo ao senhorio recuperar a disponibilidade do local arrendado, sem que haja lugar à transmissão em segundo ou em terceiro grau. Embora admitindo não ser esta a solução preferível “de jure condendo” parece-nos ser a interpretação que melhor se ajusta ao texto da lei. Por nós, supomos que a melhor solução “de jure condendo” seria a de admitir a renúncia à transmissão do arrendamento por parte do primeiro transmissário permitindo-se, dessa forma, a transmissão sucessiva aos beneficiários seguintes previstos na lista do n.° 1 do art. 57.°. Nem vemos que interesses juridicamente relevantes a lei pretendeu acolher ao excluir a possibilidade de renúncia à transmissão do arrendamento. Acontece, no entanto, que a ausência de prazo para o exercício desse direito e respectiva comunicação ao senhorio conduziria, inexoravelmente, a situações de incerteza e insegurança jurídicas, o que contende directamente com os fins do Direito.
Refira-se, por fim, que o Decreto-Lei 157/2006 de 8 de Agosto (RJOPA) estabelece um regime especial transitório para a denúncia pelo senhorio para a realização de obras de remodelação, restauro profundos e demolição, aplicável apenas aos contratos de arrendamento para a habitação celebrados antes do R.A.U. e ao contratos de arrendamento não habitacionais celebrados antes do Decreto-Lei n.° 257/95 de 30 de Setembro (arts. 23.° a 26.° do RJOPA). O art. 25.° n.°5 do RJOPA, aplicável à denúncia no arrendamento para habitação, preceitua que o contrato de arrendamento caduca — não havendo lugar à transmissão por morte — no caso de o arrendatário realojado, em sede de processo destinado à denúncia para realização de obras de remodelação ou restauro profundos, entretanto falecer. Nesse caso o local que serviu de realojamento ao arrendatário deverá ser restituído ao senhorio no prazo de seis meses a contar do falecimento do arrendatário.
Como nota final diremos que, com a Lei 6/2006, o legislador teve o propósito de revitalizar o mercado de arrendamento que se encontrava praticamente estagnado. De entre as diversas medidas destinadas a alcançar esse desiderato elegemos, como sendo a mais marcante, a diminuição da protecção conferida pela lei ao arrendatário. Em consonância com essa medida o NRAU veio permitir que a vigência do contrato de arrendamento dependa da vontade do senhorio, que poderá a todo tempo denunciar o contrato, sendo este de duração indeterminada, ou opor-se à sua renovação, sendo este celebrado na modalidade com prazo certo. Daí que as sucessivas transmissões geracionais, que o art. 1106.° do Código Civil consente, não prejudiquem seriamente o interesse do senhorio que poderá, quando assim o entender, colocar um termo na relação arrendatícia. Deixa, assim, de ser imposto ao senhorio o sacrifício da perpetuidade do contrato de arrendamento, o que justifica que a matéria sob análise tenha perdido parte da sua importância na relação jurídica arrendatícia. Compreende-se, pois, que o legislador não tenha procurado equilibrar posição das partes atribuindo ao senhorio os direitos e compensações que o R.A.U. previa nos art. 87.° e 89.°-A a 89.°-D.
Tendo a transmissão do arrendamento por finalidade permitir a continuidade do gozo do local arrendado por quem já nele vivia, podemos dizer que com o NRAU a transmissão do direito ao arrendamento apenas evita a imediata restituição do local arrendado ao senhorio, já que este poderá exigir do beneficiário essa restituição, nos mesmos termos em que o poderia fazer para com o arrendatário defunto.
Sendo este o espírito do NRAU, o regime transitório constante do art. 57.° da lei 6/2006 aligeirou o vinculismo que caracterizava o R.A.U., pois apesar de permitir que a transmissão do arrendamento se processe, no máximo, até três graus, o contrato de arrendamento, no limite, caducará quando os filhos ou enteados do primitivo arrendatário completarem 26 anos de idade. Este regime transitório privilegia os interesses do senhorio, já que, não o sujeitando à eternização do arrendamento, lhe permite recuperar a disponibilidade do local arrendado em termos mais céleres do que o regime instituído pelo R.A.U..
Importa agora dar o tempo necessário para que a nova disciplina se ajuste ao mercado de arrendamento, pois só então poderemos apurar se o caminho trilhado é aquele que corresponde às necessidades do comércio jurídico. Da nossa parte, ainda que não concordemos com algumas soluções adoptadas pelo NRAU, entendemos que se tornava imperioso criar as condições para que o mercado de arrendamento renascesse. E acreditamos que o NRAU possa contribuir para essa desejada revitalização, sendo certo, porém, que a reforma do arrendamento exige confiança dos vários sectores representativos dos interesses em presença, isto é, dos senhorios e dos arrendatários. Cabendo ao Estado, predominantemente, uma função reguladora desses mesmos interesses.
COELHO, F. M. Pereira—Arrendamento, Direito substantivo e processual, Coimbra, 1988.
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Notas:
(*) Advogado. Docente no Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto.
(1) Vide nesse sentido F.M. Pereira Coelho, RLJ, ano 131, pág. 228.
(2) Nesse sentido pronunciou-se, com respeito ao art. 85.° do R.A.U., Aragão Seia in Arrendamento Urbano, 7.ª ed., pág. 579, para quem « o artigo 85.° não é imperativo, no sentido de que, não existindo qualquer dos familiares referidos nas alíneas a) a e) do n.° 1 do preceito, pode estipular-se que o arrendamento não caducará por morte do arrendatário mas se transmitirá a outras pessoas, por ex. à irmã ou à sobrinha do falecido».
(3) “A modernização do direito português do arrendamento urbano” in O Direito, Ano 136.°, 2004, II-III, pág. 253. No mesmo sentido vide Joaquim de Sousa Ribeiro para quem «quando o senhorio deixou de estar sujeito à perduração indefinida do contrato, primeiramente no âmbito dos contratos de duração limitada ou efectiva, e agora, com o Novo Regime do Arrendamento Urbano, em todos os contratos de arrendamento, o direito à transmissão, que se manteve, perdeu grande parte do seu relevo e a disciplina legal desta matéria a extrema “sensibilidade” que a caracterizava.
Na verdade, a transmissão apenas evita que a morte do arrendatário seja causa de uma desocupação prematura da habitação, mas não impede que o transmissário (tal como aconteceria com o arrendatário anterior se vivo fosse) fique sujeito a ela, caso o senhorio exerça o direito, que lhe cabe, de oposição à renovação ou denúncia» in «o novo regime do arrendamento urbano: contributos para uma análise» in CDP n.° 14, págs. 12 e 13.
(4) “O Regime dos Novos Arrendamentos Urbanos e a perspectiva do Direito da Família” in O Direito, Ano 136.°, 2004, II-III, pág. 331.
(5) in Col. Jur. ano XXV, 2000, t. I, pág. 126; no mesmo sentido pronunciaram-se, no domínio do R.A.U., Pereira Coelho in RLJ, ano 122, pág. 142 e Januário Gomes, Arrendamentos para a Habitação, 1.° edição, pág. 166.
(6) in Col. Jur., ano XXVI, 2001, t.III, pág. 19 e 20.
(7) In Manual do Arrendamento Urbano, 3.ª ed., pág. 1071.
(8) É esta a posição defendida por Maria Olinda Garcia in A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano, pág. 39; Joaquim de Sousa Ribeiro in «o novo regime do arrendamento urbano: contributos para uma análise» CDP n.° 14, pág. 14 e 15, e Luís Menezes Leitão in Arrendamento Urbano, 2006, pág. 72, nota de rodapé n.° 76; em sentido contrário vide Fernando Cunha de Sá/ Leonor Coutinho in Arrendamento Urbano, 2006, Almedina pág. 103.
(9) In RLJ, ano 131, pág. 233 e 234, nota de rodapé n.° 87; no mesmo sentido pronunciou-se João Menezes Correia Leitão, in Morte do Arrendatário Habitacional e Sorte do Contrato in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol.III, Almedina, 2002, pág. 329.
(10) In Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2002, págs. 629-637.
(11) Nesse sentido vai a doutrina firmada por Maria Olinda Garcia, a qual, apesar de se reportar ao R.A.U., mantém plena actualidade em face do NRAU, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2002, págs. 629-637.
(12) Vide nesse sentido Maria Olinda Garcia in ob. cit.; também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/04/2004, in Col. Jur. (STJ), ano XII, 2004, t. II, pág. 46. No mesmo sentido vide Joaquim de Sousa Ribeiro in «o novo regime do arrendamento urbano: contributos para uma análise» CDP n.° 14, pág. 13.
(13) Veja-se neste sentido Maria Olinda Garcia in A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano, pág. 39.
(14) Concordamos, assim, com Maria Olinda Garcia ao afirmar que «a lei não faz referência ao tempo mínimo de vivência em união de facto para se adquirir o direito ao arrendamento. Sendo assim, terá de ter aplicação o prazo mínimo relevante para a produção dos efeitos da união de facto em geral, fixado no artigo 1.° da Lei 7/2001, ou seja 2 anos» in A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano, pág. 73.