Maria João Romão Carreiro Vaz Tomé - Sobre o contrato de mandato sem representação e o trust
SEM REPRESENTAÇÃO
E O TRUST (*)
Pela Dr.a Maria João Romão Carreiro Vaz Tomé(**)
SUMÁRIO:
I – Introdução. II – O assim denominado direito organizacional. 1. O trust. III – Algumas questões em sede de segregação patrimonial e de mandato sem representação. 1. Observações preliminares sobre a contabilidade. 2. A aplicabilidade do art. 1184.º do Cód. Civil ao mandato sem representação (sem contemplatio domini) para adquirir, para alienar e para administrar. 3. A (ir)responsabilidade patrimonial dos bens detidos pelo mandatário, em nome próprio mas por conta alheia, pelas obrigações do mandante. 4. A (ir)revogabilidade do mandato sem representação no interesse de terceiro e do mandato sem representação a favor de terceiro. 4.1. A (ir)revogabilidade do mandato sem representação no interesse de terceiro. 4.2. A (ir)revogabilidade do mandato sem representação a favor de terceiro. 5. A (ir)responsabilidade patrimonial dos bens detidos pelo mandatário, em nome próprio mas por conta alheia, pelas suas obrigações pessoais. 5.1. O regime do art. 1184.º do Cód. Civil e os valores mobiliários registados em contas abertas pelos intermediários financeiros em nome do mandatário. IV – A titularidade de direitos reais ou de crédito no interesse de outrem. 1. A titularidade no interesse de outrem: mandato sem representação e propriedade fiduciária. 2. O negócio fiduciário para administração. 2.1. O negócio fiduciário para administração de tipo germânico. 2.2. O negócio fiduciário para administração de tipo romano: em benefício do fiduciante ou de terceiro. 2.3. Síntese. 3. Mandato sem contemplatio domini versus trust.
I – Introdução
Por razões de exposição, como ponto de partida e pano de fundo ter-se-á a seguinte hipótese. Suponhamos que a sociedade comercial A celebra com a sociedade comercial B um contrato mediante o qual a segunda se obriga a adquirir e administrar, em nome próprio, por conta da primeira, uma determinada massa de bens, por exemplo uma carteira de valores mobiliários, cujos resultados deverão ser afectos à satisfação de obrigações assumidas pela sociedade A perante terceiros (C). Considerando que a sociedade B deteria, nesse caso, os referidos bens em nome próprio, mas por conta alheia, é importante saber se estes responderiam pelas obrigações da sociedade A, nomeadamente em caso de insolvência desta. Questionar-nos-emos igualmente sobre se os valores administrados pela sociedade B, em nome próprio mas por conta da sociedade A, responderiam pelas obrigações da sociedade B.
Este estudo pretende contribuir para o conhecimento do contrato de mandato sem representação, um tipo contratual que, não obstante ser de há muito conhecido e alvo de atenção dos juristas, encontra hoje campos renovados de aplicação.
Em virtude da necessidade sentida pelas sociedades comerciais de observar, em determinadas circunstâncias, um requisito de segregação patrimonial consagrado por alguns dos International Accounting Standards(1), em foco estará, concretamente, o art. 1184.º do Cód. Civil e, por essa via, a relação do mandato sem representação com o trust anglo-americano.
II – O assim denominado direito organizacional
Em qualquer economia de mercado desenvolvida, o ordenamento jurídico prevê a constituição de determinadas espécies ou tipos de “entidades jurídicas”, mais ou menos padronizadas. Refere-se o direito dito “organizacional” a propósito do estabelecimento e disciplina de determinadas “entidades jurídicas”, assim como daquela “reorganização” dos direitos dos credores dos intervenientes nessas entidades, necessariamente implicada pela existência dessas mesmas “entidades jurídicas”. Considera-se que a principal missão do direito organizacional se traduz na constituição de determinado padrão dos direitos dos credores – numa espécie de “divisão dos bens”(2). Por um lado, o direito organizacional delimita a responsabilidade patrimonial dos titulares, beneficiários ou administradores da “entidade jurídica” perante os credores desta última. Por outro lado, demarca a responsabilidade patrimonial da “entidade jurídica” perante os credores dos seus titulares, beneficiários ou administradores. Afirma-se que, nesta medida, o direito organizacional como que assume uma dimensão ou função jurídico-real.
O direito das coisas coloca, em todas as economias, fortes limitações às possibilidades de divisão dos direitos reais entre duas ou mais pessoas. O direito organizacional como que estabelece excepções a essas restrições.
O business ou commercial trust moderno é considerado precisamente uma modalidade de organização empresarial(3). Assume, actualmente, grande relevância no âmbito dos mercados de capitais e das transacções comerciais. Com efeito, atente-se na sua utilização no contexto das transações financeiras estruturadas, designadamente na titularização de créditos, nos fundos comuns de investimento e nos fundos de pensões(4). Poderá, de algum modo, afirmar-se que o trust e a sociedade comercial representam duas “entidades jurídicas” empresariais concorrentes. A preferência por uma ou por outra dessas “entidades jurídicas” será manifestada no âmbito dos mercados de capitais. Na medida em que, muito frequentemente, a necessidade de financiamento impõe aos administradores da “entidade jurídica” o recurso ao mercado de capitais, aqueles terão um incentivo para seleccionar o tipo de “entidade jurídica” que se afigurar idóneo a maximizar o rendimento dos investidores. A emergência de um novo equilíbrio entre o trust e a sociedade comercial reflecte a ponderação dos custos e benefícios decorrentes da utilização de uma ou de outra “entidade jurídica” na respectiva ecologia empresarial(5).
A opção pelo business trust ou pela sociedade comercial deve, em alguma medida, nortear-se pelas necessidades dos investidores(6). Tanto numa como noutra entidade jurídica se verifica a separação entre a administração e a titularidade, assim como a responsabilidade limitada dos seus administradores. Porém, uma diferença fundamental entre as duas “entidades jurídicas” reside no grau de exposição dos bens administrados ao risco em ordem à satisfação das expectativas dos titulares (os beneficiários do trust e os sócios da sociedade), na consideração das necessidades dos investidores(7).
Estamos no campo da análise de modalidades de organização empresarial alternativas às sociedades (uncorporations)(8). Assiste-se, com efeito, a uma forte pressão do tráfico jurídico para a criação de patrimónios separados desprovidos de personificação ou subjectivização e para a especialização da garantia patrimonial(9). Trata-se da exigência económica de obter proveitos e eficiência, susceptível de ser cumprida pela destinação de massas patrimoniais à satisfação de determinados grupos de credores. A possibilidade oferecida por leis especiais de constituição de patrimónios separados confirma a relatividade do princípio da indivisibilidade do património e consente importar modelos de outras ordens jurídicas de limitação da responsabilidade. Neste sentido se sublinha a necessidade de adoptar o arquétipo do trust para satisfazer a exigência de mitigar o carácter absoluto do princípio da responsabilidade patrimonial ilimitada do devedor(10) com a constituição de patrimónios separados.
O direito dos trusts é predominantemente composto por normas de natureza supletiva(11). As escassas normas imperativas que o integram são susceptíveis de serem reconduzidas a duas categorias fundamentais: a das normas intent-defeating, que limitam a autonomia do disponente, settlor ou trustor, e a das normas intent-serving, que visam a determinação e a implementação da vontade real do disponente(12). A ratio subjacente às primeiras consiste na não perpetuação da vontade ou da autonomia do disponente para além da sua morte (anti-dead-hand policy). Limitam o poder do disponente de determinar o trustee na política de investimento dos bens em trust, de orientar o modo de vida dos beneficiários ou de utilização dos rendimentos ou bens obtidos(13). Essencial é a regra de que um trust deve ser para o benefício dos beneficiários, a qual encontra aplicação sobretudo no caso de alteração superveniente das circunstâncias(14). O “benefício para os beneficiários” consubstancia, efectivamente, um pressuposto especialmente relevante no âmbito da realização de investimentos com os bens em trust, impedindo o disponente de impor directrizes de investimentos value-impairing. Este requisito estabelece também limites ao poder do disponente de afastar as normas supletivas. Por seu turno, a segunda categoria de normas reveste um carácter essencialmente intent-implementing. Trata-se de regras que medeiam e facilitam a concretização da vontade real do disponente. Aqui se incluem a regra que proíbe o disponente de afastar as obrigações fiduciárias do trustee, a regra que não permite ao disponente dispensar o trustee de agir de boa fé na administração do trust, a regra que limita o escopo permitido às cláusulas de desculpação e a regra que exige a comunicação aos beneficiários da existência e do conteúdo do trust. As normas imperativas não proibem o disponente de designar o trustee como beneficiário, mas obrigam-no a declarar essa pretensão com clareza. Por conseguinte, estas normas revestem carácter cautelar e protector do disponente e dos verdadeiros beneficiários(15).
1. O trust
O trust é uma moldura jurídica passível de numerosas utilizações(16). Os propósitos susceptíveis de conduzirem à constituição de um trust são tão ilimitados quanto a imaginação dos juristas. Em virtude da globalização e do impacto do investimento internacional no sistema jurídico e financeiro, o trust tem sido objecto de crescente atenção. Nos países da civil law, não existe enquanto estrutura geral. O trust será, provavelmente, o contributo mais relevante da tradição da common law para o sistema europeu de direito privado(17).
A relevância actual do direito dos trusts, enquanto direito organizacional, reside não tanto na disciplina das relações entre settlor, trustee e beneficiário, como na das relações entre aqueles e terceiros. De facto, estas relações não podem ser facilmente reorganizadas por via da negociação individual em virtude dos elevados custos de transacção daí decorrentes. Enquanto a constituição voluntária daquele padrão de direitos e de obrigações entre settlor, trustee e beneficiário traduz a principal razão do estabelecimento de um trust(18) na medida em que a consagração desse modelo pelo direito dos trusts surge como vantajosa, o direito dos trusts não visa, todavia, necessariamente esse propósito. O seu objectivo essencial – por oposição à finalidade principal do próprio trust – consiste em permitir a redisciplina dos direitos e obrigações entre os três principais intervenientes, por um lado e os terceiros (designadamente, os credores), por outro. Esta reorganização dos direitos e dos deveres de terceiros – que traduz o que pode chamar-se a dimensão real da relação de trust – muito dificilmente se alcança na ausência do direito dos trusts(19).
Os três intervenientes principais efectuam a separação patrimonial de um conjunto de bens – o património administrado –, não apenas para o efeito da sua gestão separada, mas também para que esses bens garantam um grupo distinto de credores(20).
As soluções oferecidas pelos países da civil law para a imunidade do património administrado perante os credores dos diversos intervenientes (disponente, administrador e beneficiário), assim como para a transmissão ilícita dos bens administrados a terceiros por parte do administrador são, frequentemente, substancialmente mais frágeis do que as do direito dos trusts da common law. Consequentemente, a consideração do direito dos trusts reveste-se também aqui de grande utilidade.
É justamente na perspectiva do direito das coisas, na dimensão real do direito dos trusts, que o trust é passível de merecer atenção especial por parte dos sistemas da civil law. Com efeito, o direito dos trusts prevê a constituição de uma entidade(21) – o trust – que se encontra separada dos três intervenientes principais. Os bens administrados como que pertencem ao trust e não às três partes que compõem a sua estrutura subjectiva e, especialmente, ao trustee–apesar da sua titularidade jurídica (formal). O trust, por seu turno, numa perspectiva material ou substancial, pertence aos beneficiários, e não ao trustee ou ao settlor.
O direito dos trusts consente pois ao settlor, ao trustee e ao beneficiário a (re)organização das suas relações negociais com muitos outros indivíduos. Não fora o direitos dos trusts, essa redisciplina encontrar-se-ia pejada de dificuldades.
No que respeita à introdução desta “entidade jurídica” nos sistemas jurídicos continentais, aventa-se frequentemente a dificuldade decorrente de o trust se fundar na divisão da titularidade real dos bens (legal ownership e equitable ownership) e de implicar uma segregação patrimonial no âmbito do património pessoal do trustee. Por conseguinte, os sistemas da civil law têm-se furtado à querela respeitante a uma espécie de divisão da titularidade real mediante a adopção de trusts em que não reconhecem o trustee como verdadeiro e próprio titular dos bens(22).
A aplicação hodierna da estrutura do trust ilustra claramente o papel crucial que os direitos dos credores desempenham no direito dos trusts.
O trust sobreviveu ao decurso dos séculos em virtude da sua flexibilidade.
III – Algumas questões em sede de segregação patrimonial e de mandato sem representação
1. Observações preliminares sobre a contabilidade
O governo societário compreende um amplo espectro de questões relativas ao direito das sociedades e ao direito do mercado de capitais; tem em vista a gestão e o contrôlo social para a obtenção de riqueza. A transparência, o contrôlo independente e a informação representam os principais instrumentos desse governo. Os poderes supra-individuais, como as sociedades, apenas podem ser efectivamente controlados por contra-poderes, também supra-individuais, e por reacções estatisticamente relevantes. Nas economias de mercado, os mercados financeiros podem reagir adequadamente a esses poderes. Estes mercados como que se tornam instituições públicas do governo societário, necessitando, todavia, de informação adequada carreada pela contabilidade. Por conseguinte, os International Accounting Standards dominam o cenário europeu desde 2005(23).
Investidores, credores e outros interessados utilizam os relatórios financeiros para apreciar o desempenho da administração societária e as possibilidades de endividamento da empresa. Os investidores utilizam esses relatórios como guia para as suas decisões de investimento. Por conseguinte, as regras de contabilidade fornecem aos utilizadores dos relatórios financeiros a segurança de que a informação neles contida é verdadeira e fiável. A suficiência da informação para avaliar a exposição da empresa aos riscos do mercado afigura-se crucial para uma análise correcta e adequada por parte dos investidores(24). A possibilidade de os investidores procederem a uma análise comparativa das diversas empresas depende da informação veiculada sobre a administração do risco, assim como das regras contabilísticas. Detendo esta informação, o investidor pode compreender a razão pela qual a exposição ao mesmo risco representa estratégias ou objectivos diversos para diferentes empresas.
A globalização encontra a sua mais forte expressão nos mercados de capitais globalizados. Para estes desapareceram as fronteiras nacionais. Os investidores mudam livremente de mercado e as participações sociais de sociedades multinacionais são cotadas simultaneamente em diversos mercados nacionais. Também aqui as novas tecnologias depressa criarão mercados de capitais com localizações algures na internet e porão em contacto inúmeros participantes anónimos. As transacções internacionais multiplicam-se e os progressos tecnológicos eliminam uma multiplicidade de obstáculos.
Contudo, a regulamentação, a sua observância e a supervisão dos mercados de capitais como que permanecem reduzidas à dimensão nacional. Diferentes países seguem padrões e objectivos diferentes, como se as suas soberanias não tivessem sido entretanto afectadas. Tal conduz a uma torre de Babel de linguagens contabilísticas que, muito frequentemente, oculta diferentes objectivos políticos: a protecção dos investidores, a tutela dos credores, a fiscalidade, a realização de objectivos económicos nacionais mais amplos ou a concessão de subsídios a alguns sectores da indústria. A concorrência na regulamentação entre os países origina uma espécie de hierarquia entre os mercados internacionais de capitais, o que dificulta a livre circulação do capital, perturba análises comparativas e aumenta os custos de transacção. Acresce que essa concorrência é susceptível de conduzir à livre circulação de capitais através de mercados de capitais menos regulamentados(25).
Os mercados financeiros – e os mercados financeiros internacionais - não podem ser considerados apenas na perspectiva individual dos investidores, pois constituem também um relevante elemento para o governo societário. As grandes sociedades comerciais beneficiam substancialmente da economia globalizada e tornam-se rapidamente mais dominantes, o que pressupõe a sua correcta apreciação por parte do público. A globalização coloca em questão os conceitos tradicionais de governo societário, baseados tanto em ligações geográficas como na visibilidade. As sociedades globalizadas têm a possibilidade de escolher como lei aplicável a que lhes for mais favorável – de acordo com a perspectiva dos administradores. A expressão “corporate homes away from home” já não traduz o sistema linfático da situação hodierna, pois no ciberespaço home pode ser qualquer local e local nenhum(26).
A globalização das sociedades comerciais postula a globalização do governo societário mediante um instrumento que é, ele próprio, globalizado. Este instrumento é o mercado financeiro globalizado, que transpõe para a escala globalizada o modelo clássico da entrada e da saída das sociedades enquanto respostas alternativas ao êxito empresarial ou ao declínio das sociedades. O novo instrumento é ainda mais forte do que os seus precedentes, em virtude da importância de que se revestem as estatísticas e do incentivo ao poder de aquisição (aumentado em proporções geométricas) num espaço sem fronteiras. O acréscimo deste poder aquisitivo afigura-se susceptível de acudir a algumas das deficiências actuais (nacionais) do modelo de entrada e saída nas sociedades.
Nos mercados globalizados, este aspecto permite ainda aos representantes dos sócios maquilhar algumas das imperfeições democráticas dos autores de padrões contabilísticos, quer no âmbito do International Accounting Standards Committee, quer no do Financial Accounting Standard Board. Por conseguinte, os sócios desempenham uma função globalizada para a qual a contabilidade globalizada se afigura crucial. A contabilidade globalizada encontra-se na vanguarda do governo societário globalizado.
A contabilidade globalizada assume pois uma relevância fundamental. Representa o sistema semiótico que estabelece a conexão entre as sociedades globalizadas e os mercados de capitais globalizadas. Afigura-se crucial para o preço a pagar pelo capital. A contabilidade visa medir e revelar informação sobre o valor intrínseco da empresa enquanto base do valor de troca. Trata-se de um instrumento macrojurídico da maior importância e, consequentemente, desempenha um papel decisivo no financiamento internacional globalizado. Este sistema semiótico fornece a quase totalidade da informação financeira (a expressão “you manage what is measured” traduz a técnica fundamental de análise e avaliação das oportunidades de investimento em ordem a assegurar a alocação eficiente do capital) e, por isso mesmo, ultrapassa em muito os conceitos microjurídicos através dos quais ainda se analisam as sociedades comerciais, o direito das sociedades e a contabilidade.
A combinação da internet com a contabilidade alterou a natureza da própria contabilidade: desencadeia poderes em proporções estatisticamente relevantes enquanto se centra nos investidores vistos como factores estatísticos em mercados avaliados apenas por estatísticas. É este aspecto estatístico que torna a contabilidade num elemento determinante(27).
Os mercados globalizados, para serem realmente globalizados, pressupõem um sistema semiótico globalizado na contabilidade, o qual aumenta a difusão globalizada da informação financeira e diminui as desvantagens informativas dos investidores que adquirem participações sociais de sociedades estrangeiras. Esta padronização ainda se encontra longe de ser alcançada(28).
A diversidade de padrões contabilísticos não se concilia com o conceito de sociedades globalizadas em mercados globalizados. Essa diversidade reduz a transparência e acarreta dificuldades decisórias aos investidores. Aumenta os custos de transacção e transforma os investimentos em participações sociais de sociedades estrangeiras numa espécie de aventura jurídico-económica. Desfavorece também as empresas que têm diferentes panoramas contabilísticos. Como “clothes make men”, assim “financial statements make corporations,” o que afecta a credibilidade e os juros pagos pelo financiamento. Acresce que a questão das diferenças existente nas taxas de juro se reveste de importante significado para as sociedades comerciais nos actuais mercados de capitais(29).
Como as transacções comerciais já não se confinam aos mercados nacionais, sendo antes norteadas por forças económicas que transcendem as fronteiras estaduais, os investidores demandam international accounting standards que permitam análises comparativas no âmbito internacional e que estabeleçam alicerces sólidos para os relatórios financeiros em todos os países. Nesta sede, dois conjuntos de padrões contabilísticos disputam este objectivo: os International Accounting Standards (IAS) e os Generally Accepted Accounting Principles (GAAP).
Um mercado de capitais forte é susceptível de facilitar o crescimento económico. Contudo, a criação desse mercado encontra-se pejada de dificuldades, pois os investidores despojam-se de enormes quantias pecuniárias em troca de direitos absolutamente intangíveis, cujo valor em muito depende da qualidade da informação que auferem e da honestidade dos alienantes(30).
As boas regras contabilísticas devem ser elaboradas tendo em vista a utilidade da informação para os investidores, consentindo-lhes a comparação internacional da informação financeira. Devem permitir comparar o desempenho de empresas similares, tanto no mesmo país como em países diferentes. Impõe-se-lhes limitar a discricionaridade dos administradores na escolha das práticas contabilísticas alternativas em vista da criação de uma aparência mais rentável das respectivas empresas.
À transição para uma “transparência societária” apontam-se, por via de regra, três vantagens fundamentais: maior justiça dos mercados para os investidores, diminuição do risco e alocação mais eficiente dos capitais.
Também nestes termos se reitera a necessidade de a sociedade comercial A se conformar com os International Accounting Standards.
2. A aplicabilidade do art. 1184.º do Cód. Civil ao mandato sem representação (sem contemplatio domini) para adquirir, para alienar e para administrar
Conforme o art. 1180.º do Cód. Civil, no mandato sem representação, o mandatário age em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra.
Segundo a tese da dupla transferência, adoptada pelo legislador no âmbito do mandato para adquirir (art. 1180.º do Cód. Civil), os efeitos repercutem-se na esfera do mandatário, sendo necessário um negócio autónomo para os transmitir para o mandante. Este, por seu turno, é obrigado a fornecer ao mandatário os meios necessários à execução do mandato, entre os quais se encontra a provisão para despesas (art. 1167.º, al a), do Cód. Civil). Como os direitos adquiridos em execução do mandato são primeiramente imputados à esfera de pertinência do mandatário, o preceito do art. 1181.º do Cód. Civil impõe-lhe a obrigação de os transferir para o mandante(31).
No mandato para alienar, perante o silêncio da lei, admitimos a tese da dupla transferência fiduciária, que pressupõe a celebração de um negócio fiduciário entre as partes: o mandatário adquire previamente a propriedade do mandante, com a obrigação de a retransmitir a terceiro. Deste modo, o mandante deve previamente transferir a título fiduciário a propriedade ao mandatário (art. 1167.º, al a), do Cód. Civil), que se obriga a retransmiti-la a terceiro(32). Essa transferência prévia do mandante para o mandatário tem lugar mediante a celebração de um negócio alienatório específico de execução do mandato(33). Na medida em que o preço percebido como contrapartida da alienação se encontra destinado ao mandante, o mandatário é obrigado a entregar-lho (art. 1161.º, al e), do Cód. Civil).
Por seu turno, no mandato para administrar, uma das partes obriga-se a administrar em nome próprio, mas por conta da outra, determinada massa patrimonial, consistindo essa actividade de administração, fundamentalmente, na prática de actos jurídicos. É evidente que no exercício da administração se consente ao administrador a prática de meros actos materiais, desde que estes revistam carácter meramente instrumental. O mandatário deve exercer a sua actividade de administração exclusivamente no interesse do mandante ou do mandante e de terceiro. A teleologia subjacente à actividade do mandatário é o interesse do mandante (ou do mandante e de terceiro). Este interesse consubstancia o critério de valoração da actividade do mandatário (a qual apenas pode ser considerada como correctamente desenvolvida quando se revele idónea para o realizar). Constitui o critério de determinação da conduta devida pelo mandatário(34).
Nesta sede, importa determinar se os bens a administrar se encontram na esfera de pertinência do mandante ou se foram previamente transmitidos para o mandatário em vista da sua administração. Em ambas as hipóteses surge uma titularidade fiduciária. Na primeira, através da contrapartida da alienação dos bens, implicada pela própria administração e, na segunda, mediante a transferência dos bens para o mandatário com o escopo de administração. Esta transmissão pode decorrer do próprio mandato ou de um negócio autónomo ulterior.
O legislador não aceitou, todavia, todas as consequências decorrentes da tese da dupla transferência(35). Pretendeu evitar a execução dos bens adquiridos por conta do mandante, em execução do mandato, pelos credores do mandatário. Assim, a norma do art. 1184.º do Cód. Civil estabelece que “os bens que o mandatário haja adquirido em execução do mandato e devam ser transferidos para o mandante nos termos do n.º 1 do art. 1181.º não respondem pelas obrigações daquele, desde que o mandato conste de documento anterior à data da penhora desses bens e não tenha sido feito o registo da aquisição, quando esteja sujeita a registo”.
Da letra do preceito do art. 1184.º do Cód. Civil poderia resultar que a norma apenas se aplica ao mandato para adquirir, ou seja, ao contrato de mandato em que a execução do mandato se traduza na aquisição de bens, por um lado e, por outro, quando esses bens devam ser transferidos para o mandante. Por conseguinte, o preceito em apreço não se aplicaria a todos os contratos de mandato, uma vez que o seu texto nada diria a respeito do mandato para alienar ou para administrar(36).
Todavia, tanto no mandato para adquirir, como no mandato para alienar e para administrar, a titularidade do mandatário reveste-se de natureza fiduciária, pois trata-se sempre de uma titularidade instrumental e funcionalizada à satisfação do interesse do mandante (ou do mandante e de terceiro). O problema de fundo respeita de modo semelhante ao sentido da segregação patrimonial estabelecida no art. 1184.º, enquanto instrumento idóneo para a realização dos diversos interesses em jogo. Trata-se de conferir relevo ao elemento teleológico e de considerar a função que ele desempenha. Essencial para o efeito é o apuramento dos objectivos que aquela segregação patrimonial persegue. A determinação das situações de segregação patrimonial deverá assim orientar-se pela identidade do problema jurídico a resolver.
Nesta perspectiva, pode dizer-se que o interesse fundamental se traduz na imunidade de um ou mais bens destinados a determinado escopo perante os credores do mandatário. Por isso mesmo, o mandatário arcaria, em qualquer caso, com a obrigação de segregação das posições subjectivas por conta do mandante relativamente àquelas de que é titular no seu próprio interesse.
O direito vigente, porém, ao estabelecer a imunidade dos bens adquiridos em execução do mandato perante os credores do mandatário, bens adquiridos com meios pecuniários fornecidos pelo mandante, consente, mediante o argumento a fortiori, sustentar também a inatacabilidade dos bens transferidos pelo mandante ao mandatário (art. 1167.º, al a), do Cód. Civil). De outro modo, o ordenamento jurídico não harmonizaria adequadamente os interesses em jogo se consentisse aos credores do mandatário penhorar as quantias pecuniárias que o mandante lhe houvesse entregado (não a título de remuneração, de reembolso das despesas feitas ou de indemnização) pois não protegeria o interesse do mandante que confiou os bens ao mandatário.
Isto vale também para admitir, no âmbito de uma acção executiva, o recurso à oposição de terceiro àquele sujeito que não é proprietário mas que tem o direito de se tornar proprietário, porquanto o bem ingressou no património do mandatário destinado a sair dele. Por isso, o bem encontrar-se-ia excluído da garantia geral dos seus credores.
Os bens adquiridos pelo mandatário, no caso de mandato sem representação para adquirir, assim como os bens a alienar ou o produto da sua alienação, no caso de mandato sem representação para alienar, e os bens que o mandante entregue ao mandatário para pagamento do preço da aquisição, constituem um património separado do património pessoal do mandatário(37). Todas estas situações apresentam o mesmo recorte, encontrando-se compreendidas pela racionalidade da norma.
Tendo em vista as condições necessárias para a realização do fim sócio-económico do mandato, pode dizer-se que a norma abrange também o mandato para administrar. Embora não se trate aqui de bens adquiridos pelo mandatário e que devam ser transferidos para o mandante, mas antes de uma actividade de valorização patrimonial, encontrando-se muitas vezes o mandatário obrigado a transferir para o mandante apenas os resultados líquidos da administração, a ratio subjacente à segregação patrimonial prevista no art. 1184.º do Cód. Civil abrange também esse mandato. Na verdade, à massa de bens inicial acrescem, por efeito da subrrogação real, todos os proventos e fluxos de caixa decorrentes das diversas operações económicas realizadas. O mandatário detém um acervo de bens funcionalmente orientado para a actividade de administração. Esse conjunto patrimonial afigura-se instrumental relativamente ao interesse do mandante, caracterizando-se pela mutabilidade dos bens que o integram em conformidade com o interesse prosseguido e com os poderes que o mandatário exerce sobre ele. Esta solução decorre da valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula. Só assim se chega a uma consideração optimizada dos interesses em apreço.
No mandato para administrar(38), embora não se possa dizer que os bens que o mandatário vai adquirindo no exercício da administração devam ser transferidos para o mandante, como estes bens ou os que forem adquiridos com a sua alienação (que se subrrogam no lugar deles) o devem ser, a ratio do art. 1184.º postula que este lhes seja aplicável, não respondendo pelas obrigações do mandatário. Numa administração dinâmica, com efeito, os bens adquiridos pelo mandatário podem ser de novo negociados em vista da valorização do património do mandante, pois que este pretende que o mandatário transaccione os bens administrados em ordem ao acréscimo do respectivo valor.
A razão justificativa da segregação patrimonial, no mandato sem representação para adquirir, consiste precisamente em os bens adquiridos pelo mandatário, em execução do mandato, não se confundirem com o seu património pessoal e se destinarem à realização de determinado escopo (por exemplo, a transferência para o mandante). Por outro lado, na fenomenologia típica deste contrato, o mandatário recebe os meios necessários do mandante (art. 1167.º, al a), do Cód. Civil) antes da aquisição do bem e, por isso, deve perguntar-se por que é que esses meios não são também objecto de segregação patrimonial (uma vez que a letra do art. 1184.º do Cód. Civil não se lhes refere). Não existe qualquer lógica funcional na limitação do mecanismo segregativo aos bens que o mandatário tenha adquirido em execução do mandato e que deva transferir para o mandante, dado que se trata da simples transformação daqueles meios noutros bens.
A norma do art. 1184.º do Cód. Civil visa a harmonização prática da tutela do interesse do mandante e dos interesses dos credores do mandatário. Trata-se de permitir as condições necessárias para a realização do fim económico-social do mandato sem prejudicar os interesses dos credores do mandatário.
O resultado propugnado em nada prejudica os interesses dos credores do mandatário, pois que o seu património não sofre qualquer decréscimo com a execução do mandato. Com efeito, o mandatário será sempre reembolsado pelo mandante das despesas efectuadas (art. 1167.º, al c), do Cód. Civil). Por isso mesmo, os valores que o mandatário detiver por conta do mandante devem ser inatacáveis pelos seus credores pessoais.
Trata-se, em todo o caso, de bens que não pertenciam ao mandatário, sobre os quais este adquire uma titularidade temporária, devendo ulteriormente transmiti-los ao mandante (ou a terceiro). Não se subtrai aqui qualquer garantia aos credores do titular actual pois que estes não podem, objectivamente, confiar na pertinência de tais bens ao seu devedor.
O intérprete pode, com efeito, encontrar nas normas respeitantes ao mandato sem representação um exemplo de regulamentação orientada pelo princípio segundo o qual o titular de direitos reais ou de crédito no interesse de outrem não se torna mais rico pela aquisição realizada para outrem.
3. A (ir)responsabilidade patrimonial dos bens detidos pelo mandatário, em nome próprio mas por conta alheia, pelas obrigações do mandante
Conforme mencionado supra, suponhamos que em consideração da imunidade de determinado acervo de bens perante os respectivos credores (requisito estabelecido por alguns dos International Accounting Standards), as sociedades comerciais A e B celebram um contrato de mandato sem representação, a favor de C, mediante o qual B se obriga a administrar, em nome próprio, uma carteira de valores mobiliários, cujos resultados deverão assegurar exclusivamente a satisfação de determinadas obrigações de A perante C. Considerando que B detém os bens em nome próprio, mas por conta de A, coloca-se a questão de se saber se aqueles bens respondem, ou não, pelas obrigações de A, maxime em caso de insolvência.
É claro que as sociedades A e B devem respeitar as regras de afectação e separação patrimonial na gestão da empresa social. Poderá dizer-se que, no caso de insolvência de A, os credores não poderão executar os bens de que B é titular formal, pois estes encontram-se na esfera de pertinência de pessoa jurídica distinta (B) do insolvente (A) em benefício de C. Os credores de A não podem satisfazer-se a expensas dos bens adquiridos por B em execução do mandato, pois encontra-se-lhes naturalmente vedado agredir direitos mais amplos do que aqueles de que o seu devedor é titular ou direitos de que este nem sequer é titular. Trata-se, no fundo, do princípio segundo o qual ninguém pode dispor de mais direitos do que aqueles que tem (nemo plus iuris in allium transferre potest quam ipse habet). O que sempre estaria ao alcance dos credores do mandante (A)(39) seria apenas e tão somente o seu direito de natureza estritamente obrigacional, de exigir a transferência dos bens adquiridos em execução do mandato (art. 1181.º, n.º 1, do Cód. Civil), contra o mandatário (B), o qual, todavia, sempre teria de ser exercido nos moldes contratualmente acor-dados e que sempre se encontraria em pé de igualdade com o direito atribuído a terceiro (C) em virtude da estipulação a seu favor.
O art. 1181.º do Cód. Civil procura assegurar a transmissão dos resultados da interposição do mandatário (sem representação) para a esfera jurídica do mandante. O mandatário que age em nome próprio torna-se titular dos direitos adquiridos em execução do mandato. Em cumprimento, porém, das suas obrigações contratuais para com o mandante, deve transferir-lhe a titularidade desses direitos. O princípio geral é, pois, o de que o mandatário fica obrigado a transferir para o mandante os direitos que tenha adquirido. A acção do mandante sobre o mandatário tem, no nosso direito, carácter pessoal, destinando-se apenas a obter o cumprimento de uma obrigação – a de transferir os bens. Daqui, uma consequência: o mandante não goza do direito de sequela, nem sequer do direito de separação, no caso de o mandatário se tornar entretanto insolvente. Se os bens ou direitos forem alienados pelo mandatário, este responde, nos termos gerais, pelo prejuízo causado ao mandante com a falta de cumprimento da obrigação, mas não pode o mandante reivindicá-los do património de terceiros(40).
Todavia, os actos ou negócios praticados pelo mandatário apareceriam subjectivamente com a particularidade de serem realizados por quem não é titular dos interesses em causa, nem, em última análise, destinatário dos respectivos efeitos. O mandato apresenta carácter instrumental como meio que é para a realização dos objectivos económicos e sociais que aqueles actos ou negócios prosseguem. Está em causa a prática de actos jurídicos por conta alheia: o mandato sem representação tem por objecto actos jurídicos com fim alheio ao mandatário, pois a este não se destinam os bens lato sensu sobre que os actos versam. O mandante tem o poder de exigir ao mandatário a transferência de todos os direitos adquiridos em execução do mandato. O mandatário não é também o sujeito da necessidade que a circulação desses bens visa satisfazer. O mandatário tem os bens para o mandante. O mandatário assume a titularidade dos bens que adquire para o mandante, mas é sempre uma titularidade orientada pela obrigação de a transmitir àquele. Os bens pertencem, economicamente, ao mandante.
Porém, em abono da irresponsabilidade dos bens detidos pelo mandatário, em nome próprio mas por conta do mandante, sempre se poderá dizer que, levando em linha de conta a tese da dupla transferência, o regime consagrado no art. 1184.º do Cód. Civil não resulta do reconhecimento de que a titularidade não pertence ao mandatário. Os bens encontram-se, com efeito, na esfera de pertinência do mandatário.
O mandatário obriga-se a praticar actos jurídicos por conta do mandante – facere per conto altrui–(art. 1157.º do Cód. Civil). O mandato tem um regime jurídico estruturalmente concebido para regular a prática de actos jurídicos por conta de outrem(41). Diz-se que um negócio jurídico é praticado por conta de outrem sempre que os seus efeitos ou parte deles se devam projectar ou repercutir na esfera jurídica de pessoa que nele não interveio(42).
Elemento verdadeiramente característico do mandato é a obrigação de o mandatário realizar o acto objecto do mandato. Não é o mandato, em si mesmo, que proporciona às partes os bens económicos ou os resultados práticos que elas pretendem alcançar; esses resultados obtêm-se através do negócio de que o mandatário foi encarregado.
O mandato sem representação tem por objectivo típico fundamental a interposição de pessoa, a realização de um acto ou negócio jurídico por interposta pessoa. Os efeitos dos negócios, dos actos praticados pelo mandatário (interposta pessoa), destinam-se integralmente a outrem: ao mandante.
O mandato, na sua configuração clássica, é sempre no interesse do mandante e este interesse mantém-se ainda que concorra o interesse de terceiro. É esta a doutrina tradicional, que explica certos traços fundamentais do regime do mandato, como, por exemplo, a obrigação do mandatário de prestar contas, a obrigação do mandante de indemnizar pelas despesas e prejuízos sofridos com a execução do mandato e a revogabilidade deste pelo mandante.
Refira-se ainda, nesta sede, que nos termos do art. 110.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os contratos de mandato, que não se mostre serem estranhos à massa insolvente, caducam com a declaração de insolvência do mandante, ainda que o mandato tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro. Por força do n.º 2 do mesmo preceito, deverá aplicar-se o mesmo regime, com as devidas adaptações, a quaisquer outros contratos pelos quais o insolvente tenha confiado a outrem a gestão de assuntos patrimoniais, com um mínimo de autonomia, nomeadamente a contratos de gestão de carteiras e de gestão de património. Contudo, apenas os contratos de mandato em que o insolvente seja o credor das obrigações do mandatário – mormente da obrigação de entrega dos bens adquiridos em execução do mandato – deverão caducar com a declaração de insolvência. A ratio legis do referido preceito consiste em fazer cessar aqueles contratos de mandato de que possam emergir créditos ou débitos para a massa insolvente. Por conseguinte, o contrato de mandato não deverá caducar se a respectiva execução pelo mandatário não puder reflectir-se na massa insolvente. Daí a relevância da cláusula a favor de terceiro no contrato de mandato.
4. A (ir)revogabilidade do mandato sem representação no interesse de terceiro e do mandato sem representação a favor de terceiro
4.1. A (ir)revogabilidade do mandato sem representação no interesse de terceiro
O art. 1170.º, n.º 2, do Cód. Civil prevê que o mandato seja celebrado no interesse de terceiro, estatuindo-se a irrevogabilidade desse mandato, com excepção de mútuo acordo ou de justa causa. Um terceiro tem, nesta hipótese, um interesse no mandato. A indagação de um interesse de alguém que não seja parte na relação de mandato não se confina aos casos em que exista uma cláusula com prestação a terceiro. O terceiro não adquire então, pelo contrato, qualquer direito, não podendo exigir o cumprimento do mandato (prática do acto de administração).
Quando, todavia, o terceiro é titular de um interesse que o mandato visa satisfazer, o Código Civil estatui que o mandato é irrevogável, podendo apenas ser revogado em caso de justa causa ou por mútuo acordo. Tratando-se por isso de mandato no interesse de terceiro, o contrato é ipso iure irrevogável sem que para tal seja necessário um acordo adicional (trilateral ou sequer bilateral) no sentido da irrevogabilidade.
No mandato no interesse de terceiro, o interesse juridicamente relevante é, com efeito, da titularidade de alguém que é estranho à relação jurídica de mandato. O terceiro nunca é sujeito da relação de mandato. Esta é subjectivamente constituída pelo mandante e pelo mandatário. A ausência do terceiro do âmbito subjectivo da relação de mandato não significa porém que este não possa, na prática, ser essencial para a sua utilidade. O interesse de terceiro deverá ser próprio, específico, objectivo e directo na execução do negócio.
Refira-se ainda o princípio que postula que os poderes atribuídos no interesse de uma pessoa só podem ser revogados com o consentimento dessa mesma pessoa(43). Existindo um interesse do terceiro no mandato, este só poderá ser revogado se ele der o seu acordo. Consequentemente, há diversas pessoas que devem intervir no negócio de revogação, o qual não produz efeitos enquanto faltar a participação de qualquer uma delas.
Por outro lado, o mandante não poderá ele próprio praticar o acto jurídico objecto do mandato quando o interesse de terceiro, cuja satisfação se persegue, pressuponha que seja o mandatário (e não outrem) a praticar o acto gestório, sobretudo quando o interesse do terceiro não se encontra estritamente no resultado ou no produto da prática do acto jurídico, não sendo indiferente que esse seja realizado pelo mandatário ou pelo dominus. Assim, o desenvolvimento da actividade de administração pelo mandatário constitui para o terceiro uma garantia da satisfação dos seus direitos(44). O mandato traduz um instrumento de protecção dos interesses de terceiro. O interesse do terceiro deve estar presente na relação de mandato, em termos de o mandatário assumir na sua execução a cumulada realização dos vários interesses.
O mandato é irrevogável porque a ordem jurídica valora certos interesses do terceiro como dignos de tutela. Não estando o mandante legitimado para agir de modo a afectar negativamente esses interesses, este não pode revogar livremente o mandato. Basta que exista um interesse de terceiro, que a ordem jurídica valore como digno de tutela, para que o mandante não possa revogar livremente o mandato.
Não é forçoso que o interesse do terceiro transpareça do próprio mandato. Todavia, é conveniente, para o terceiro, que esse interesse seja visível para o mandatário, para que este possa invocar o interesse daquele em ordem a impedir a revogação e prosseguir, eficaz e licitamente, a actividade gestória. Trata-se de uma irrevogabilidade natural que resulta da existência de outro interesse na relação de mandato para além daquele do dominus negotii. A irrevogabilidade pelo mandante não lhe é imposta volente nolente: ela assenta na sua própria vontade, uma vez que depende exclusivamente de decisão sua se, através do mandato, se persegue também a satisfação de interesses de terceiro(45).
Será possível, contudo, ao mandante pôr termo ao mandato irrevogável, afectando negativamente os interesses de terceiro, quando surja um facto novo que determine um interesse do mandante que a ordem jurídica valore como superior ao referido interesse – uma justa causa. Existindo justa causa, o mandante terá legitimidade para proceder à extinção unilateral do mandato.
A dificuldade, no que respeita a saber em que situações terá o mandante legitimidade para revogar o mandato em princípio irrevogável com fundamento em justa causa, prende-se com a natureza indeterminada do conceito, com a necessidade do seu preenchimento valorativo. A justa causa verifica-se quando, surgindo um facto, situação ou circunstância novos, deixa de ser exigível ao mandante manter-se vinculado.
A ordem jurídica, na justa causa para a revogação do mandato irrevogável, procede a uma ponderação relativa entre, por um lado, os interesses do terceiro na vigência do mandato e, por outro, o interesse do mandante em fazer cessar o mandato face às alterações trazidas pelo novo facto. Nos casos de justa causa, para o mandante, a revogação do mandato é útil para atingir um determinado fim. Esse fim é valorado como superior aos fins que integram o interesse do terceiro, de tal modo que a ordem jurídica o faz prevalecer sobre este.
Porém, na ausência de mútuo acordo ou de justa causa, a revogação não produz efeitos. A posição da doutrina vai no sentido de a falta de legitimidade impedir a eficácia do negócio jurídico, de se tratar de uma ineficácia lato sensu. Não faria sentido que, regra geral, um sujeito pudesse intervir eficazmente sobre situações jurídicas alheias sem estar para tal legitimado. A falta de legitimação significa que o sujeito não pode agir quanto a essa situação jurídica, quer por não ter legitimidade directa, quer por não beneficiar de uma legitimação indirecta, por via negocial ou legal, quer ainda por estar impedido de agir sobre essa situação jurídica em virtude de negócio jurídico ou de preceito legal. Se o sujeito pudesse, em regra, agir eficazmente sobre situações sem que tivesse legitimidade para tanto, verificar-se-ia uma situação de insegurança contrária à ordem jurídica.
Estabelece-se assim uma ineficácia lato sensu do acto revogatório e não uma mera proibição de revogação com consequências a título de responsabilidade civil(46).
4.2. A (ir)revogabilidade do mandato sem representação a favor de terceiro
Todavia, ao contrário do que se verifica em relação ao mandante, o interesse de terceiro é inteiramente irrelevante para a eficácia da ruptura unilateral ad nutum da autoria do mandatário. Tal resulta do n.º 2 do art. 1170.º do Cód. Civil, a contrario.
Há, porém, que distinguir entre o mero contrato de mandato no interesse de terceiro e o contrato de mandato com estipulação a favor de terceiro.
O objecto imediato do contrato a favor de terceiro(47) pode ter diversa natureza jurídica e os mais diferentes conteúdos económicos. A função económico-social deste contrato pode ser múltipla, pois este contrato é policausal, o que é admitido pelo princípio da liberdade contratual plasmado no art. 405.º do Cód. Civil. É uma moldura contratual, uma forma ou estrutura que admite vários tipos contratuais. Reveste-se de uma ampla e rica funcionalidade.
No contrato a favor de terceiro, basta que a aquisição pelo terceiro seja de um benefício ou vantagem, de carácter patrimonial ou não, que corresponda da sua parte a um interesse digno de tutela. A vantagem que é atribuída ao terceiro pode corresponder economicamente a uma prestação a que o promissário já era obrigado para com ele. É igualmente necessário que se trate da atribuição de uma vantagem tutelada por um direito, de uma vantagem directa, pretendida(48).
Na verdade, estamos perante um contrato a favor de terceiro quando, por meio de um contrato, é atribuído um benefício a um terceiro, a ele estranho, que adquire um direito próprio a essa vantagem. Esta categoria contratual exige, portanto, a presença de dois requisitos: a existência de um terceiro e a aquisição por este de um direito próprio a um benefício. Esta vantagem pode perfeitamente traduzir-se na administração de uma carteira de valores mobiliários e na vinculação do mandatário de satisfazer um conjunto de obrigações do mandante perante terceiro(49).
A prestação a favor de terceiro pode consistir numa prestação feita ao promissário; do ponto de vista do terceiro, a prestação é feita ao promissário, que não é, todavia, o destinatário jurídico da vantagem.
Por outro lado, o benefício que mandante e mandatário também pretendem contratar a favor de terceiro pode aproximar-se de uma verdadeira cumulação de devedores. Com efeito, continuando embora o terceiro titular do direito de exigir a mesma dívida, pode exigi-la de mais de um obrigado e vê, por isso, a sua situação melhorada(50). Na verdade, trata-se agora de obrigar o mandatário a pagar a terceiro, verificados determinados pressupostos.
O mandante (promissário ou estipulante), para efectuar uma atribuição patrimonial indirecta – porque obtida através da prestação do mandatário (promitente) – em benefício de terceiro serve-se do contrato a favor de terceiro, no seu aspecto instrumental. É o meio a que o mandante recorre para o fim visado. A prestação usada para esse fim provém da relação de mandato criada no momento do contrato entre o promissário e o promitente.
Tanto o promissário como o terceiro têm o direito a exigir o cumprimento ao promitente, são ambos credores. Mas o promissário, embora também credor em nome e interesse próprios, é-o em benefício de terceiro. O seu crédito encontra-se funcionalizado, dirigido ao benefício de terceiro.
Além do mais, o mandante (promissário ou estipulante) pode renunciar ao poder de revogação, enquanto o terceiro não manifeste a sua adesão, atribuindo, deste modo, e pelo que lhe diz respeito, o direito definitivamente ao beneficiário, independentemente da sua aquiescência. Esta faculdade é admitida claramente no art. 448.º, n.º 1, do Cód. Civil. A renúncia pode resultar do contrato ou ser estipulada mais tarde pelo mandante (promissário). Se a prestação a terceiro de algum modo representa o cumprimento de uma obrigação preexistente, é natural que o mandante (devedor na relação de valuta) renuncie ao direito de revogar para maior segurança do terceiro (credor na relação de valuta). Se são a vontade presumida do promissário ou estipulante e a ausência de um interesse juridicamente protegido do terceiro que, em geral, justificam a admissão legal da revogação, será a vontade do promissário ou estipulante que fundamenta a renúncia a esse direito(51). A partir do momento da celebração do contrato de mandato a favor de terceiro, o terceiro é titular de um direito de crédito contra o mandatário.
Traduzindo-se o direito de terceiro no poder de exigir do mandatário a administração dos valores mobiliários de acordo com determinados critérios e a realização de determinados pagamentos a si mesmo ou ao mandante, e sendo o direito de terceiro irrevogável por parte do mandante, não se vislumbram facilmente situações em que o mandante possa revogar o contrato de mandato com fundamento em justa causa sem com isso revogar – se é que o pode fazer eficazmente – o direito conferido a terceiro. O mandante (promissário) é credor em nome e interesse próprios, mas para o benefício de terceiro. É para assegurar a satisfação do interesse (fundado na relação de valuta) que o levou a contratar, que o mandante exerce em relação ao mandatário (promitente) o direito de exigir o cumprimento para com o terceiro. A justa causa deve, por isso, ser aferida em função dos interesses do terceiro.
Desde logo, a relação de mandato alimenta, subsidia, modela ou cobre o direito conferido a terceiro, é dela que o mandatário tira cobertura para a atribuição a que fica adstrito. Depois, a estipulação a favor de terceiro importa, necessariamente, alterações à relação contratual entre o mandante/promissário e o mandatá-rio/promitente, verificando-se a funcionalização do regime do mandato ao efectivo cumprimento do benefício convencionado. Por outro lado, vigora, nesta sede, o princípio geral – que resulta, antes de mais, da natureza das coisas – segundo o qual o titular de um poder conferido no interesse de outrem deve exercê-lo de acordo com o interesse pelo qual foi conferido. Parece assim que será de excluir o poder do mandatário de revogar o contrato de mandato.
5. A (ir)responsabilidade patrimonial dos bens detidos pelo mandatário, em nome próprio mas por conta alheia, pelas suas obrigações pessoais
Surge agora a questão de se saber se os bens detidos pelo mandatário, em nome próprio mas por conta do mandante, respondem pelas suas obrigações pessoais.
Os bens adquiridos pelo mandatário em execução do mandato entram no seu património e, por isso, deveriam em princípio responder pelas suas obrigações, nos termos gerais dos arts. 601.º e 817.º do Cód. Civil. A transmissão dos mesmos bens para o mandante, conforme o n.º 1 do art. 1181.º do mesmo corpo de normas, ficaria sujeita à impugnação pauliana, se houvesse prejuízo para os credores do mandatário (arts. 610.º e segs. do Cód. Civil). Tais consequências são, porém, afastadas pelo art. 1184.º(52), também do Cód. Civil, com as cautelas necessárias para evitar fraudes em prejuízo dos credores do mandatário e para tutelar os interesses ligados ao registo. Desde que o mandato conste de documento anterior à data da penhora e não tenha sido feito o registo da aquisição, quando esta esteja sujeita a registo, aqueles bens não respondem pelas obrigações do mandatário. Protegem-se os interesses do mandante, com sacrifício de alguns princípios. Esta solução encontra-se, de resto, em conformidade com aquela regra do nosso ordenamento jurídico, aplicável em diversos domínios, segundo a qual prevalece, em geral, a titularidade substantiva mesmo perante terceiro de boa fé adquirente de coisas móveis. Estando, todavia, registada a transmissão, esta deve produzir todos os seus efeitos em relação a terceiros e, portanto, em relação aos credores do mandatário. É uma consequência do próprio registo (53).
No art. 1184.º do Cód. Civil verifica-se uma separação de patrimónios, uma situação em que a lei prevê a sujeição de certos bens do devedor a um regime próprio de responsabilidade por dívidas. Além do seu património geral, existe na titularidade do mandatário um conjunto de relações patrimoniais submetido a um tratamento jurídico particular, tal como se fosse de pessoa diversa(54).
Embora objectivamente conservem a sua configuração típica ou normal, os actos ou negócios praticados pelo mandatário aparecem subjectivamente com a particularidade de serem realizados por quem não é titular dos interesses em causa, nem, em última análise, destinatário dos respectivos efeitos económico-jurídicos. O mandato apresenta carácter instrumental como meio que é para a realização dos objectivos económicos e sociais que aqueles actos ou negócios prosseguem. A ratio legis da norma do art. 1184.º do Cód. Civil consiste na tutela das condições necessárias para o cumprimento do fim económico-social do contrato de mandato (independentemente de este ter por objecto a aquisição, a alienação ou a administração de bens). Está em causa a prática de actos jurídicos por conta alheia: o mandato sem representação tem por objecto actos jurídicos alheios em relação ao agente, quando a este não se destinam ou não pertencem os bens lato sensu sobre que os actos versam, ou quando aquele não é sujeito da necessidade que a circulação desses bens visa satisfazer. O mandatário assume a titularidade dos bens que adquire para o mandante, embora seja uma titularidade orientada/limitada pela obrigação de a transmitir àquele (e/ou a terceiro)(55).
Os móveis não sujeitos a registo(56), desde que o mandato conste de documento anterior à data da penhora, assim como os os imóveis ou móveis sujeitos a registo não registados em nome do mandatário, adquiridos em execução do mandato, não respondem pelas suas dívidas pessoais. Isto, todavia, não significa, in casu, a desprotecção dos credores do mandatário.
A questão da responsabilidade dos bens detidos pelo mandatário pelas suas dívidas pessoais surge com particular acuidade quando se trate de bens sujeitos a registo efectivamente registados em seu nome(57).
5.1. O regime do art. 1184.º do Cód. Civil e os valores mobiliários registados em contas abertas pelos intermediários financeiros em nome do mandatário
Nos termos do art. 74.º, n.º 1, do Cód. dos Valores Mobiliários, “o registo em conta individualizada de valores mobiliários escriturais faz presumir que o direito existe e que pertence ao titular nos precisos termos dos respectivos registos”. A lei tutela a aparência derivada do registo, rodeando esse registo de todos os cuidados para que essa aparência seja o mais fiável possível. De acordo com o art. 70.º, do mesmo diploma, a inscrição da aquisição de valores mobiliários exige a prévia inscrição a favor do disponente. Por seu turno, aplica-se aos valores mobiliários titulados integrados em sistema centralizado o disposto para os valores mobiliários escriturais integrados em sistema centralizado (art. 105.º do Cód. dos Valores Mobiliários). O mandatário actua sem poderes de representação e, portanto, contrata em nome próprio, sendo os valores mobiliários adquiridos em execução do mandato registados em conta aberta em seu nome(58).
Apesar de o regime de registo de valores mobiliários ter na sua base o sistema de registo das coisas imóveis(59), não existe identidade ou analogia de situações que permita a aplicação de princípios vigentes em sede de registo predial (e registos similares) ao registo de valores mobiliários(60). Este, diferentemente daquele, não se destina a dar publicidade à situação dos valores mobiliários perante terceiros. A protecção conferida pelo registo predial (e registos similares) baseia-se na aparência registal. Os terceiros podem confiar no registo, podem partir do princípio de que tudo quanto é relevante na vida do prédio consta do registo, que é único.
Existe, na verdade, uma grande diferença entre o registo dos prédios (e registos similares) e o registo dos valores mobiliários. O registo predial destina-se, essencialmente, a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (e similar). Tem-se em vista evitar ónus ocultos, susceptíveis de dificultarem a constituição e a circulação de direitos que recaíssem sobre os prédios. A instituição de um registo, que deve reflectir as situações jurídicas que se repercutem sobre o imóvel, permite que qualquer interessado possa saber exactamente em que condições jurídicas se encontra a coisa. Nisto se traduz a essencialidade do carácter público do registo. Se o interessado pode aceder ao registo antes de realizar qualquer negócio jurídico, não existirão situações ocultas que lhe possam vir a ser opostas supervenientemente.
Muito diferentemente, as contas de registo de valores encontram-se sujeitas a sigilo. Pelo que parece absoluta e totalmente desrazoável estabelecer qualquer protecção de terceiros decorrente do registo(61).
O art. 1184.º do Cód. Civil consagra uma norma excepcional, pois no âmbito da tese da dupla transferência, que o Código Civil acolhe, a solução preconizada neste preceito não resulta do reconhecimento de que a titularidade não pertence ao mandatário. Por meio do argumento “a contrario” deduz-se do ius singulare aí plasmado, da disciplina excepcional estabelecida para certos casos (“bens sujeitos a registo não registados”), um princípio-regra de sentido oposto para os casos não abrangidos pela norma excepcional (“bens sujeitos a registo registados”). Assim, a partir da regra excepcional do art. 1184.º, deduz-se a contrario que os casos que ela não contempla na sua hipótese seguem um regime oposto, que será o regime regra. Este preceito (segundo o qual os bens sujeitos a registo e registados respondem pelas obrigações do mandatário) encontra-se apenas virtualmente contido na norma do art. 1184.º. Não pode aplicar-se ao caso dos valores mobiliários. Pois apenas existe uma “implicação intensiva” entre a hipótese (“bens sujeitos a registo predial e registos similares, efectivamente registados em nome do mandatário”) e a estatuição (“responsabilidade desses bens pelas obrigações do mandatário”). A consequência jurídica produz-se quando se verifique a hipótese e tal consequência apenas se produz quando se verifique tal hipótese(62).
A teleologia imanente, a ratio deste preceito (nos termos do qual os bens sujeitos a registo e registados respondem pelas obrigações do mandatário), que se deduz por interpretação enunciativa do art. 1184.º do Cód. Civil, tem apenas em conta os bens sujeitos o registo predial (e registos similares) e não o registo de valores mobiliários. Contém uma regra aplicável a certa categoria de casos (“bens sujeitos a registo e registados”), mas, por modo tal que, olhando ao próprio sentido e finalidade do preceito, se verifica que essa categoria abrange demais, a saber uma subcategoria (“valores mobiliários sujeitos a registo e registados”) cuja particularidade ou especificidade, valorativamente relevante, não foi considerada. Esse preceito não se ajusta a este grupo de casos (“valores mobiliários sujeitos a registo e registados”), porque não atende à sua especificidade, relevante para a valoração. Verifica-se aqui a ausência de uma restrição. Deve então proceder-se a uma redução teleológica do preceito, a restrição omitida. A norma restritiva é exigida pelo fim da regulação. Só assim o preceito, que se deduz da regra contida no art. 1184.º do Cód. Civil, concebido demasiado amplamente, se reconduz e é reduzido ao âmbito de aplicação que lhe corresponde segundo o fim da regulação ou a conexão de sentido do mesmo preceito. Tal resulta do imperativo de justiça de tratar desigualmente o que é desigual, de proceder às diferenciações postuladas pela valoração. Deste modo, do registo de valores mobiliários registados em contas individualizadas abertas em nome do mandatário não pode decorrer a responsabilidade desses valores pelas dívidas pessoais do mandatário, pois ele detém esses valores por conta alheia e aquele registo não desempenha uma função de publicidade.
A restrição de uma norma pela via da sua redução teleológica pode ser acompanhada da ampliação do âmbito de aplicação de outra norma. Por consequência, poderia, alternativamente, proceder-se à interpretação extensiva do art. 1184.º do Cód. Civil. O art. 11.º, do mesmo corpo de normas, proíbe a aplicação analógica de normas excepcionais, mas não a sua interpretação extensiva. Por isso mesmo, para se definir rigorosamente o campo de aplicação do regime-regra (segundo o qual os bens sujeitos a registo e registados respondem pelas obrigações do mandatário) que se contrapõe ao regime estabelecido pela norma excepcional, deve verificar-se primeiro se, por interpretação extensiva desta norma, não deverão por ela ser abrangidos casos não directamente contemplados na sua hipótese(63). Trata-se de uma extensão teleológica, a própria razão de ser da lei postula a aplicação a casos que não são directamente abrangidos pela letra da lei mas são compreendidos pela finalidade da mesma. Está em causa a plena realização do fim da regra legal. Pretende-se também evitar uma contradição de valoração que não se afigura justificável. Na verdade, de acordo com o argumento de identidade de razão, onde a razão de decidir seja a mesma (tanto no caso de bens não sujeitos a registo como no dos valores mobiliários registados, não existe aparência de titularidade decorrente de um registo com função de publicidade), a mesma deve ser a decisão (irresponsabilidade dos bens adquiridos em execução do mandato pelas obrigações do mandatário). Dado que o registo de valores mobiliários não tem a função de publicidade, pode concluir-se que aos valores mobiliários adquiridos pelo mandatário em execução do mandato, registados em seu nome, deve aplicar-se o regime estabelecido para os bens não sujeitos a registo.
Mesmo que assim não se entendesse, não haveria, na esmagadora maioria dos casos, protecção da confiança. De um lado, o registo de valores mobiliários não se destina a conferir publicidade à situação dos valores mobiliários e, por isso, os credores do mandatário não teriam qualquer base para confiar em que o mandatário era titular de determinados valores mobiliários; de outro lado, muitos deles terão conhecimento do objecto social do mandatário, no caso de este ser uma sociedade, e de que este detém os valores por conta de outrem. Trata-se de valores mobiliários detidos pelo mandatário para o mandante. E, em geral, os terceiros que estabeleçam relações jurídicas com o mandatário terão conhecimento do respectivo objecto social – estabelecido no contrato de sociedade sujeito a registo comercial(64) – e de que este actua por conta alheia. Não há confiança e, por conseguinte, não deve haver protecção. Pretendê-lo seria, nesse caso, atentar contra a boa fé.
Com efeito, o interesse legítimo do credor em que a outra parte, com quem aceitou contratar, seja efectivamente o suporte da obrigação de que ele é beneficiário encontra alguma tutela nos requisitos estabelecidos no art. 1184.º do Cód. Civil: a anterioridade do documento, de que consta o mandato, relativamente à penhora dos bens, e a falta de registo. Trata-se dos interesses das pessoas que aceitaram ficar credoras do mandatário, com base na aparência criada pelo facto de ele aparecer como adquirente dos bens. Ora a protecção destes terceiros só deve ser tomada em consideração na hipótese de o mandatário não revelar a sua qualidade, ou no caso de esses terceiros desconhecerem essa qualidade. A actuação em nome próprio não é incompatível com a declaração de agir por conta de outrem, quer se nomeie este, quer não. Nestes casos, em que o mandatário nomine proprio revela a sua qualidade, ou em que os terceiros a conhecem, não há razão alguma para proteger especialmente os referidos terceiros(65). Não se verifica a aparência de titularidade dos bens que essa actuação cria.
Acresce que a posição dos credores do mandatário é susceptível de ser substancialmente equiparada àquela do seu devedor, pelo que não poderão desatender ao valor programático do mandato e pretender como final a aquisição realizada pelo seu devedor. Por isso, esses bens não chegariam sequer a integrar a garantia geral das obrigações ex vi art. 601.º do Cód. Civil.
É necessário não esquecer ainda que existem outros interesses em causa, não menos dignos dessa protecção e com os quais os interesses dos terceiros, que confiaram na aparência de o mandatário ser verdadeiro titular dos bens que adquiriu ou alienou, podem entrar em conflito(66).
Importa ainda referir que a regra geral da caducidade do mandato, estabelecida no art. 110.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, deve aplicar-se também ao caso de insolvência do mandatário. O contrato de mandato caduca com eficácia ex nunc, não tendo o mandante o direito de sequela ou de separação (67).
IV – A titularidade de direitos reais ou de crédito no interesse de outrem
A emergência de novos interesses sócio-económicos, ou de interesses já previstos na lei mas, em particular, portadores de novas exigências, impõe a reflexão sobre a titularidade de direitos reais ou de crédito no interesse de outrem.
Quando nos movemos em áreas pouco sedimentadas, como é aquela em que o direito subjectivo se encontra dissociado do interesse subjacente, não deve confiar-se sem mais a solução de eventuais conflitos de interesses a fórmulas opacas a essa dissociação. O recurso a diversas expressões linguísticas (pluralidade de proprietários, dissociação da propriedade, propriedade interina ou virtual) para descrever um fenómeno assaz distante da configuração clássica do direito subjectivo traduz a pretensão do intérprete de resolver a questão da titularidade de direitos no interesse de outrem. Trata-se sempre de uma titularidade destinada ao interesse de outrem, de carácter temporário, em que o titular, para além de dever separar os bens em causa do seu património geral, encontra os seus poderes limitados.
A titularidade por conta de outrem de direitos reais ou de crédito encontra como que uma disciplina jurídica embrionária nas normas do mandato sem representação (agir em nome próprio mas por conta de outrem), no estatuto peculiar do mandatário-proprietário. Insista-se na perspectiva da titularidade, ou na prática de actos jurídicos, é claro que o fenómeno regulado nos vários sistemas jurídicos é sempre o mesmo, visto ora no seu aspecto estático – a titularidade por conta de outrem –, ora no seu aspecto dinâmico – a prática de actos por conta de outrem.
1. A titularidade no interesse de outrem: mandato sem representação e propriedade fiduciária
O nosso ordenamento jurídico conhece formas de propriedade instrumentais, instáveis e de certo modo separadas. É cada vez mais frequente, aliás, a adopção de esquemas negociais em que tipicamente tem lugar a dissociação entre a titularidade e o interesse, a separação entre a fruição da utilidade económica do bem e a posição jurídica de proprietário, do sujeito legitimado erga omnes para o exercício das faculdades conexas. Refira-se, a título de exemplo(68), a titularidade do mandatário sem contemplatio domini, da sociedade gestora de fundos comums de investimento mobiliário e imobiliário, da sociedade gestora de fundos de pensões, da sociedade gestora de patrimónios e, por último, do trustee nas ordens jurídicas que acolheram o instituto do trust(69).
A relação entre titularidade no interesse de outrem, por um lado e, por outro, o mandato sem representação e a propriedade fiduciária(70) pode ser considerada como correspondendo àquela entre genus e species. A titularidade do mandatário sem poderes de representação, assim como a do proprietário-fiduciário(71) são espécies do género titularidade no interesse de outrem. Em ambos os casos se verifica a dissociação entre titularidade do direito e interesse prosseguido. Esta dissociação, implicada também pelo objecto dos poderes, condiciona, de algum modo, a estrutura do direito do mandatário-proprietário e do proprietário-fiduciário, encontrando-se, em ambos os casos, a propriedade como que desagregada nas respectivas atribuições.
Na titularidade do mandatário sem contemplatio domini verifica-se a atribuição de um direito para a prossecução de um escopo alheio à esfera do titular, encontrando-se dirigido ao desempenho de uma função, ao cumprimento de um dever. O mandatário não pode ser considerado titular de todos os poderes que normalmente competem ao proprietário. A limitação das prerrogativas proprietárias do mandatário sem representação, ditada pela realização do interesse de outrem, encontra a sua fonte no mandato ou na lei(72).
Na verdade, a estrutura do direito de propriedade encontra-se em alguma medida sujeita à influência dos princípios que informam o ordenamento jurídico em matéria de direitos patrimoniais: os princípios da autonomia privada, do aproveitamento mais completo ou mais dúctil das possibilidades de fruição dos bens, da celeridade e da segurança na circulação dos bens. O mandato sem representação permite a separação das faculdades dominiais do disponente, distribuindo as prerrogativas proprietárias segundo um modelo de algum modo estranho à tipologia da propriedade tradicional enquanto plena in re potestas (art. 1305.º do Cód. Civil: “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”). No mandato para alienar, no caso de não se aceitar a tese da dupla transferência fiduciária, o poder de dispor é atribuido, em via concorrente, também ao não proprietário (ao mandatário); no mandato para adquirir, o mandatário é proprietário interino e limitado, no seu direito, pela obrigação de transferência dos bens adquiridos e pela proibição de gozo. A propriedade do mandatário é transitória, porque funcionalizada à dissociação entre titulariade e interesse. Dá origem a um estatuto proprietário-gestório que redefine as faculdades de gozo e de disposição. Indícios da desagregação dos elementos proprietários são, no mandato para adquirir, a responsabilidade do mandatário pelo risco de perecimento ou de deterioração da coisa, por causa não imputável ao terceiro alienante (art. 796.º, n.º 1, do Cód. Civil)(73), até ao aperfeiçoamento do acto de transferência para o mandante, e o direito do mandante de fazer seus os frutos percebidos. Este direito demonstra, na verdade, que ao mandante compete a faculdade de gozo de que o proprietário transitório se encontra privado(74).
A dissociação entre as faculdades de disposição e de gozo consubstancia o único modo de tornar a propriedade instrumental do cumprimento da obrigação de transferir o bem adquirido a terceiro por um sujeito diverso. Este resultado não é alcançável pela concentração de tais prerrogativas num único sujeito.
A disciplina jurídica do mandato sem representação apresenta-se como um fragmento de uma disciplina unitária da titularidade de direitos no interesse de outrem. A regulamentação da propriedade no interesse de outrem passa histórica e dogmaticamente pelo conceito de propriedade fiduciária, hipótese em que a limitação das prerrogativas dominiais que explica o direito à prossecução exclusiva do interesse de outrem reveste a forma de vínculo real.
Na propriedade fiduciária, a limitação das prerrogativas dominiais conferidas ao fiduciário em vista da prossecução de um interesse diverso daquele do titular do direito resulta de um vínculo real de destinação sobre os bens oponível aos credores e aos subadquirentes do proprietário-fiduciário. A dissociação entre as prerrogativas dominiais não se concretiza exclusivamente na limitação da faculdade de gozo, que é substituída pela obrigação de transferência, mas também na obrigação de administrar. A administração da propriedade no interesse de outrem, realizada pela propriedade fiduciária, intercepta a área conceptual coberta pelo mandato sem representação e, por isso, é passível de determinar soluções operativas análogas(75).
Na verdade, a propriedade formal, instrumental e temporária já existe no mandatário sem poderes de representação. Afigura-se inegável a proximidade entre mandato sem representação e propriedade fiduciária em virtude da obrigação de agir por conta de outrem que impende tanto sobre o mandatário como sobre o proprietário-fiduciário. O mandato e a propriedade fiduciária seriam apenas dois modos diversos de abordar o mesmo fenómeno jurídico: aquele do cumprimento de actos jurídicos, que exalta uma perspectiva dinâmica, por um lado e, por outro, o da titularidade do direito no interesse de outrem, que realça a perspectiva estática. A dissociação entre o sujeito que frui da utilidade produzida pelo direito e o sujeito titular do direito aproxima-se do estatuto proprietário do mandatário sem representação. Neste estabelece-se uma regra paradigmática de circulação e tutela do direito de propriedade para todos os casos em que se verifique o hiato entre a titularidade do bem e o interesse subjacente e, por isso, também para a propriedade por conta de outrem. No mandato sem contemplatio domini, todavia, o resultado daquela dissociação alcança-se mediate a imposição, não de um vínculo real, mas de uma obrigação de transferir. Com efeito, fora dos casos em que a lei estabelece que a transferência do direito de propriedade para um determinado sujeito dá origem à propriedade fiduciária, conferindo tutela real ao fiduciante ou a terceiro beneficiário, a transmissão do direito resulta na atribuição de um direito pleno, alienável a terceiros e penhorável pelos credores do adquirente. No caso de disposição do direito por parte do adquirente, o alienante pode apenas exigir a indemnização do dano do não cumprimento, tendo o pactum fiduciae, limitativo da plenitude do direito de propriedade, natureza obrigacional e, por isso, mera eficácia interna. Essa afinidade manifesta-se igualmente no regime da alienação e da aquisição de bens por conta de outrem. Sugere-se, por isso, que o mandato sem representação é susceptível de aproximar a fiducia germanística, que consiste na legitimação para agir em nome próprio com efeitos no património do fiduciante, da fiducia romanística, que reconhece a titularidade plena do direito limitada apenas pelo vínculo obrigacional. O mandato sem contemplatio domini representaria um modelo geral para as diversas formas de destinação dos bens que historicamente integraram a fiducia.
A instrumentalização de uma atribuição patrimonial encontra-se pois plasmada na disciplina do mandato sem representação. Pode encontrar-se aqui a matriz conceptual de uma série aberta de esquemas possíveis e de técnicas correspondentes, particularmente significativa para a identificação da fisionomia actual do fenómeno fiduciário. Com efeito, na propriedade fiduciária, o negócio gira em torno da concentração de faculdades no fiduciário-proprietário, consubstanciando as limitações ao direito o meio através do qual as partes atingem o escopo pré-fixado. A realização da escopo visado pressupõe a propriedade na esfera do fiduciário(76).
Importa agora verificar se a posição do proprietário fiduciário, onerado por um vínculo de natureza real, é assimilável àquela do mandatário-proprietário, sujeito passivo de uma obrigação de transferir. Trata-se de saber se, perante terceiros, a tutela do fiduciante é equiparável àquela do mandante. Enquanto a primeira é classicamente entendida como revestindo natureza real, a segunda é meramente obrigacional. Poderia dizer-se que as duas posições, aparentemente distantes, seriam susceptíveis de alguma aproximação com base na consideração da debilidade proprietária e das limitações à plenitude das prerrogativas dominiais do proprietário-fiduciário. Por seu turno, a atenuação do carácter dominial da titularidade do mandatário, decorrente da tutela concedida à posição do mandante, reduziria igualmente a distância entre as duas hipóteses(77).
Poderia propor-se a adaptação da regra do art. 1184.º às exigências da propriedade fiduciária, identificando o denominador comum às duas hipóteses – propriedade fiduciária e mandato sem representação–na titularidade de direitos reais ou de crédito no interesse de outrem e reduzindo a distância entre o vínculo real, que limita a situação subjectiva do proprietário-fiduciário, e aquele de tipo obrigacional, que impõe ao mandatário-proprietário a prossecução do interesse do mandante. Deste modo se reconstruiria no conteúdo da titularidade do mandatário o modelo da titularidade no interesse de outrem, considerando as regras consagradas para o mandato sem representação como disciplina de referência para esses interesses(78).
Tanto o proprietário-fiduciário no interesse de outrem como o mandatário-proprietário se encontram vinculados a transferir o bem para o fiduciante, para o mandante ou para terceiro. Ambos deparam com limites às suas prerrogativas dominiais, pois não podem gozar nem fruir o bem. Por outro lado, a consideração da oponibilidade do vínculo fiduciário a credores e subadquirentes do fiduciário aproxima esta tutela de natureza real daquela conferida ao mandante, credor da obrigação de transferir, de natureza obrigacional, na medida da protecção aquiliana do direito obrigacional do mandante(79). Sempre se poderá dizer que o estatuto especial da propriedade do mandatário se inspira nas exigências de tutela do mandante. Com efeito, o conflito entre o interesse do titular temporário do direito e o interesse do titular final resolve-se pela prevalência do último. O fortalecimento da sua posição obtém-se pela conferência de algumas características de realidade ao direito de crédito de que é titular o mandante perante o seu devedor, titular de uma propriedade formal e funcionalizada. O ordenamento jurídico de algum modo prevê uma forma de tutela real de um direito de crédito.
Todavia, ainda que no interesse de outrem, a propriedade do mandatário não seria susceptível de ser qualificada como propriedade fiduciária em sentido técnico, na medida em que a prossecução do interesse de outrem não se encontra assegurada pela presença de um verdadeiro e próprio vínculo real. Na verdade, o legislador protege a realização do interesse do mandante através da imposição de uma obrigação de transferir ao mandatário, ainda que especialmente garantida e reforçada e, por isso, próxima de uma tutela de tipo real. Coloca-se então a questão de se saber se a posição do proprietário-fiduciário, em virtude da existência do referido vínculo real, é, de algum modo, nos seus efeitos, equiparável àquela do mandatário-proprietário(80).
Uma análise menos conceptualista permitiria afirmar a presença, na propriedade fiduciária, de um vínculo de destinação sobre determinada massa de bens de modo não muito diverso da existência, sobre os mesmos bens, de uma obrigação de transferir. Com efeito, perante os credores do fiduciante, o contrato translativo da propriedade apenas produz o efeito erga omnes se se verificarem os pressupostos estabelecidos para a oponibilidade. A eficácia em relação a terceiros é a consequência jurídica mais comum da publicidade registral e a presunção de que o facto registado é conhecido fundamenta a sua oponibilidade. O princípio consensualístico consente dissociar a produção de efeitos entre as partes, por um lado e, por outro, perante terceiros pelo mesmo acto translativo. O património é conformado, na sua dimensão interna, pelo princípio solo consensu e, na sua dimensão externa, também pelos requisitos da oponibilidade(81). Nesta sede, a doutrina refere-se algo indistintamente aos efeitos produzidos inter partes e erga omnes e à dissociação da noção de propriedade. Desconstruída assim a unidade do acto translativo e encontrando-se o fundamento do sistema de tutela dos credores apenas no critério da oponibilidade, descurando-se o critério substancial da pertinência, não se pode descortinar uma regra de sentido contrário no mandato sem representação.
2. O negócio fiduciário para administração
2.1. O negócio fiduciário para administração de tipo germânico
Pode de algum modo esperar-se, no futuro próximo, a utilização mais frequente de mecanismos técnico-jurídicos inspirados no que tem sido denominado como Treuhandvertrag ou Treuhandmodel na doutrina alemã e que é conhecido por trust ou relação fiduciária. A eliminação da distinção entre trust e relação fiduciária representa, provavelmente, uma vantagem do direito alemão, que durante muito tempo sofreu da ausência de um princípio fiduciário suficientemente abrangente. Cum grano salis, a Treuhand pode ser considerada como a versão alemã do trust.
Trata-se de um contrato celebrado entre o Treugeber (settlor) e o Treuhänder (trustee) em prol dos beneficiários. É regulado pelo direito das obrigações. O beneficiário pode ser o Treugeber ou terceiro(s), adoptando, neste caso, a Treuhand a estrutura do contrato a favor de terceiro. O Treuhänder é o único titular real dos bens, sendo os beneficiários titulares de meros direitos obrigacionais.
Durante séculos, a compreensão e a conceptualização tanto do trust como da Treuhand significava, com efeito, a descoberta de uma ordenação dos elementos obrigacionais e reais que, com alguma complexidade, se combinavam em ambos os institutos. No final do séc. XX, pode afirmar-se a harmonização prática da relação obrigacional no trust com a regra relativa à relação (como que reificada) com terceiros subadquirentes e credores. Existe, sobretudo nos sistemas da civil law, uma multiplicidade de institutos funcionalmente equivalentes ao trust ou à Treuhand; servem propósitos similares, mas diferem nos aspectos técnicos da sua construção jurídica. Com efeito, a comparação das principais tendências nos diversos sistemas jurídicos pode partir de diferentes perspectivas: a da relação com terceiros, a da relação negocial entre o trustee (Treuhänder, administrador) e o settlor (Treugeber, beneficiário), ou a do enquadramento do trust e da Treuhand num leque de institutos funcionalmente equivalentes(82).
Tradicionalmente, a regulamentação da relação com terceiros ou a dimensão real do trust e da Treuhand têm sido consideradas fundamentais.
As principais questões debatidas, tanto no sistema anglo-americano como na Alemanha, em sede de relação com terceiros são aquelas de se saber se e em que circunstâncias podem os credores do trustee ou do Treuhänder agredir os bens em trust sem o consentimento do settlor ou do Treugeber; se e em que medida o trustee ou o Treuhänder pode eficazmente, em violação do trust, transferir para terceiro a titularidade dos bens em trust e, por último, a da responsabilidade pessoal do trustee.
No sistema anglo-americano, a regra fundamental encontra-se claramente estabelecida: o direito de natureza equitativa do settlor (beneficiário) é tratado como se fosse dotado de natureza real. Assim, o settlor (beneficiário) tem o poder de opor a sua titularidade sobre os bens em trust aos credores pessoais do trustee (em virtude de dívidas contraídas para o benefício do trustee e não do trust). Pode também segui-los na esfera de terceiro, se este se não encontrar de boa fé em caso de transmissão a título oneroso e, se a título gratuito, independentemente da sua boa ou má fé.
Assume aqui relevância, na doutrina anglo-americana, a adopção de um conceito homogéneo para todas as questões relativas à relação com terceiros: o direito equitativo não é tratado nuns casos como revestindo natureza real e noutros como se tivesse apenas natureza obrigacional. Ao invés, a solução representada pela heterogeneidade conceptual parece ter sido adoptada pelo direito alemão, pelo menos no resultado.
Afirma-se, em geral, que os protagonistas do tipo germânico da Treuhand tentaram debalde atingir o mesmo resultado que o sistema anglo-americano. Defendiam a sujeição da transmissão dos bens, do trustor (settlor) para o trustee, a condição resolutiva com eficácia real – traduzida na inobservância dos limites impostos pela relação fiduciária. Qualquer violação desses limites implicava a verificação da condição. Esta disputa surgiu no final do séc. XIX e no início do séc. XX. Apesar da alteração das circunstâncias sócio-económicas entretanto ocorrida, o resultado mantém-se. Mas, na Alemanha, o êxito da corrente pró-romanista não foi completo, porquanto não se reconheceu ao direito do settlor (beneficiário) a natureza estrita e exclusivamente obrigacional por si preconizada. Com efeito, alguns autores denominaram até o direito equitativo como direito in rem limitado. A opinião dominante defendia regras que contemplassem esse direito como uma espécie de direito real. Assim, na solução maioritariamente adoptada pela jurisprudência, nenhum credor pessoal do trustee poderia penhorar os bens em trust no caso de estes estarem devidamente identificados nessa qualidade. Considerou-se que a possibilidade de penhora se traduziria num golpe de sorte para qualquer credor pessoal do trustee. A protecção estendeu-se a todas as situações em que a relação jurídica de trust fosse notória para terceiros. A doutrina generalizou esta tendência a todos os casos em que a relação jurídica de trust pudesse ser conhecida por terceiros. Grande parte da doutrina actual propugna a tutela do direito equitativo sempre que os bens em trust possam ser distinguidos dos outros bens do trustee (princípio da certeza), pois que o terceiro não tem qualquer interesse digno de tutela quando o settlor (beneficiário) corra o risco de perder o direito de que é titular (ainda que este revista natureza meramente obrigacional). Na base deste desenvolvimento jurisprudencial e doutrinal esteve sempre a preferência pela titularidade económica em detrimento da titularidade jurídico-formal do direito. Na Alemanha, o próprio legislador estabeleceu tais direitos in rem ocultos, pelo menos na última reforma da lei da insolvência, ao atribuir ao settlor um direito de separação no caso de insolvência do trustee. A base da protecção limitada do settlor nesta matéria encontrava-se no §137 do Cód. Civil alemão, nos termos do qual as restrições negociais aos poderes de transmissão não produzem efeitos relativamente a terceiros. Enquanto o direito anglo-americano trata as relações com terceiros na perspectiva da natureza real do direito envolvido, a protecção concedida pela Treuhand alemã apenas se verifica nos casos em que pode fundamentar-se na política legislativa de determinado sector de regulamentação. A protecção do settlor (beneficiário) depende, por isso, da disciplina consagrada nos diversos sectores do ordenamento jurídico. No âmago da questão encontra-se sempre a ponderação dos interesses em conflito (do settlor (beneficiário) e do terceiro). Tem-se sempre em conta o peso relativo que o legislador atribuiu a cada um desses interesses nas diversas áreas. Nos anos 90, surgiu a questão da pertinência da Treuhand ao direito das coisas, não se aplicando, por consequência, alguns princípios fundamentais desta matéria (reconhecendo-se a autonomia privada na modelação do conteúdo do direito e afastando-se o princípio do numerus clausus). E assim se foi ainda mais longe, caracterizando a relação fiduciária como obrigacional. Nesta perspectiva, todos os efeitos da Treuhand em relação a terceiros foram considerados como efeitos externos da relação contratual fiduciária (Treuhandvertrag), implicitamente admitidos pelo legislador. Numa economia em que como que existem direitos reais ocultos, detectam-se argumentos relevantes para favorecer especialmente interesses equitativos. O trust e a relação fiduciária representam mecanismos fundamentais para a produção de efeitos sinergéticos num domínio onde o profissionalismo se afigura necessário. A Treuhand geral pode revelar-se quase tão aberta e flexível como o próprio trust(83).
A particularidade apresentada pela fidúcia germânica consiste na plena correspondência entre a vontade das partes e o meio jurídico adoptado, posto que a transferência da propriedade dos bens não é limitada pelo pactum fiduciae como garantia da retransferência dos mesmos bens ao fiduciante, sendo o referido efeito assegurado pela estipulação de uma condição resolutiva. Confere-se ao pactum fiduciae eficácia real e externa, de modo a conferir uma tutela mais forte ao fiduciante perante possíveis abusos do fiduciário. Aquela condição resolutiva é susceptível de extinguir o vínculo negocial com eficácia externa em caso de actos de disposição abusivos(84). Acresce que a posição do fiduciante não proprietário é objecto de tutela também de tipo real, pois é-lhe permitido o recurso à acção de reivindicação em todos os casos de transferência da propriedade com escopo de administração.
2.2. O negócio fiduciário para administração de tipo romano: em benefício do fiduciante ou de terceiro
Na fiducia cum amico, o fiduciário tem como deveres principais de prestação aqueles de administrar e de transmitir um determinado acervo patrimonial ao fiduciante ou a terceiro. O fiduciante transfere uma dada massa patrimonial para o fiduciário precisamente para que este a administre e depois lha retransmita a si mesmo ou a terceiro. A função económico-social deste negócio é a administração de um determinado conjunto de bens. Numa administração dinâmica, o fiduciário tem poderes de disposição(85). O fiduciário deve exercer a sua administração exclusivamente no interesse do fiduciante ou de terceiro. A aquisição da titularidade pelo fiduciário, no âmbito de um negócio de administração, é, em princípio, temporária.
Na economia hodierna, releva, em muitos casos, mais a transmissão de domínio do que a concessão de poder com escopo de administração. Porém, transferir em pleno uma coisa para efeitos de administração só pode entender-se através da confiança na palavra dada ou na lealdade do adquirente. Uma transferência definitiva produz praticamente efeitos como se fosse só um mandato em virtude da fides que liga o adquirente, que consegue fazer de um proprietário pleno praticamente um mandatário. Trata-se da causa fiduciae(86).
No caso de mandante e mandatário acordarem em fazer perdurar no tempo a titularidade do mandatário, assim como na hipótese de o mandante transmitir ao mandatário um bem que este se obriga a transferir ou a administrar no interesse de um ou mais beneficiários, aceitando-se a tese da dupla transferência fiduciária, poderá falar-se de negócio fiduciário(87). O seu escopo consiste justamente na criação ou estabilização da dissociação entre a propriedade do mandatário e o interesse de outrem.
Daí que o mandato, enquanto momento dinâmico do agir no interesse de outrem, se prenda com o momento estático da titularidade do mandatário. Sendo a propriedade do mandatário uma propriedade por conta de outrem, verifica-se a dissociação entre a posição jurídica conferida ao mandatário e o interesse subjacente: o mandatário é titular de uma propriedade onerada por um vínculo obrigacional e, simultaneamente, sujeito passivo de uma obrigação de transferir.
Admitindo-se a possibilidade de causas translativas atípicas, a causa fiduciae, enquanto “um dar para haver de rehaver”, explica a a transferência plena do direito(88). A configuração da causa do negócio fiduciário assenta no escopo prosseguido pelas partes que não consiste em “dar para rehaver”, mas antes em dar determinado bem para que seja utilizado pelo fiduciário em vista da realização de determinada finalidade no interesse do fiduciante ou de terceiro, sendo apenas nesse momento retransferido para o fiduciante ou para terceiro por si indicado.
A característica da fidúcia está justamente na titularidade de um direito no interesse de outrem. Abandona-se o paradigma dominial da simetria entre titularidade e interesse, pois que pode existir titularidade no interesse de outrem(89).
2.3. Síntese
Assiste-se à transição de uma ideia de senhorio tendencialmente estática para uma noção de direito dinamicamente articulada com uma variedade potencialmente indefinida de funções para a satisfação de determinadas finalidades, designadamente na propriedade fiduciária. Verifica-se uma conexão estreita entre os planos estrutural e funcional, assim como a prevalência da dimensão dinâmica sobre a estática(90).
O contrato de mandato representa o tipo jurídico da disciplina da titularidade de direitos reais ou de crédito no interesse de outrem. A proximidade conceptual entre fiduciário e mandatário sem representação tem lugar na experiência comum a todo o espaço europeu: fiduciário e mandatário sem representação agem nomine proprio. Poderia dizer-se que a prática, por qualquer desses sujeitos, de um acto de disposição de direito real ou de crédito pressupõe a titularidade do respectivo direito. Por isso, agir no interesse de outrem e ser titular de um direito no interesse de outrem seriam fenómenos conexos que deveriam ser analisados de modo simétrico. Trata-se, com efeito, de formas diversas de pensar o mesmo quid: um dinâmico, o mandato; outro estático, a titularidade fiduciária. É, portanto, necessário verificar se se devem aplicar as regras do mandato à actividade do fiduciário que dispõe, no interesse do fiduciante, de um direito real ou de crédito que anteriormente lhe foi transmitido. Com efeito, sobre o fiduciário que adquire por conta de outrem impende um vínculo obrigacional perante o fiduciante, exactamente como acontece com o mandatário. O mandatário é proprietário e ao mesmo tempo sujeito passivo da obrigação de transferir(91).
Reitere-se que a lei conhece o paradigma da titularidade no interesse de outrem na disciplina do mandato sem representação. O intérprete pode encontrar nestas normas um exemplo de regulamentação orientada pelo princípio segundo o qual o titular de direitos reais ou de crédito no interesse de outrem não se torna mais rico pela aquisição realizada para outrem. Deste modo, os seus credores não têm direitos maiores do que aqueles adquiridos pelo seu devedor no interesse de outrem. Para o direito anglo-americano, os bens constitutivos do trust não são penhoráveis pelos credores pessoais do trustee, porquanto estes não têm direitos maiores do que aqueles do devedor.
3. Mandato sem contemplatio domini versus trust
O trust permite a redescoberta de mecanismos de segregação patrimonial típicos da cultura jurídica continental, como a propriedade do mandatário sem representação.
O confronto entre os dois institutos, o mandato e o trust, pode ser feito com base num critério de equivalência funcional, verificando qual dos instrumentos apresenta maior eficiência na concretização da operação económica visada pelas partes, ou com base num critério de concorrência de modelos, apreciando qual dos esquemas jurídicos, satisfazendo igualmente os interesses em jogo, permite um custo marginal inferior.
Na análise comparatística do contrato de mandato e do trust, importa considerar que a noção hodierna de mandatário, enquanto titular de uma propriedade onerada por uma obrigação de transferir, se aproxima, numa perspectiva ontológica, do conceito de trust, centrado no trustee e nas suas obrigações de carácter fiduciário(92).
O trustee é um proprietário funcional, encontrando-se assim o exercício do direito que lhe é transmitido funcionalizado à realização do fim do trust. É este fim que permite aferir da (i)licitude da sua conduta e da (i)legitimadade da acção dos beneficiários (ou do protector(93)) contra si.
O direito anglo-americano desenvolveu mais rapidamente a disciplina da imunidade dos bens tidos no interesse de outrem à evolução do património pessoal do titular e aos seus credores pessoais, podendo esses bens ser agredidos apenas pelos credores do negócio. E isto mesmo consente satisfazer as exigências da economia mobiliária hodierna, que pressupõe a criação de patrimónios destinados a escopos determinados de modo optimizado relativamente à figura do mandato sem representação. Não só de um ponto de vista de equivalência funcional, mas também numa perspectiva de eficiência postulada pela análise económica, o trust é seguramente o melhor meio de alocação dos recursos. Permite satisfazer a exigência actual, postulada pelo mercado de valores mobiliários, de constituição de patrimónios separados, destinados a escopos determinados.
Esta exigência pressupõe o recurso a mecanismos mais eficientes do que o mandato. Também no que respeita à gestão profissional da riqueza, para que actualmente tende o mercado, o trust revela-se preferível ao mandato. O recurso ao trust no âmbito da actividade de gestão do património, nos sistemas jurídicos da common law, representa um modelo certamente mais adequado do que aquele elaborado pela nossa tradição jurídica.
Apesar da aparente proximidade entre trustee e mandatário, do ponto de vista da relevância do encargo gestório associado às respectivas funções, verificam-se diferenças fundamentais na perspectiva da reconstrução das hipóteses negociais em apreço(94).
Significativa parece ser a diferença de conteúdo do encargo gestório confiado ao mandatário (implica a prática de actos ou negócios jurídicos) e ao trustee (implica a prática de actos ou negócios jurídicos e também dos assim denominados actos materiais, os quais podem constituir objecto do mandato apenas se instrumentais do cumprimento de actos jurídicos). Relativamente à actividade de empresa, no mandato, diferentemente do trust, os actos jurídicos que constituem o objecto do encargo assinalado ao mandatário não podem, ao que parece, traduzir-se no exercício de uma empresa(95).
Quanto aos efeitos dos actos, a cujo cumprimento se encontra dirigido o encargo do mandatário ou do trustee, a assimilação do trust ao mandato resulta condicionada pela afirmação prévia da eficácia real ou meramente obrigacional do mandato sem representação, nas diversas hipóteses aplicativas do mandato para adquirir, do mandato para alienar e do mandato para administrar. Se se afirmasse que o mandato sem representação tem eficácia real, no sentido de que, no mandato para alienar, a propriedade dos bens se transfere do mandante para o mandatário e apenas depois para o terceiro e, no mandato para adquirir, os bens adquiridos pelo mandatário ingressam no seu património antes de serem transferidos para o mandante ou para terceiro, emergiriam profundas semelhanças com o trust. O trustee, com efeito, administra bens de que é titular no interesse de terceiro, e torna-se titular, nessa mesma qualidade, dos bens resultantes da sua actividade de gestão.
A este respeito importa distinguir entre os efeitos directos da actividade gestória exercida pelo trustee, que recaem na sua esfera jurídica, e os frutos finais dessa actividade, que se produzem automaticamente a favor dos beneficiários. A confusão entre os dois planos de efeitos da actividade do trustee pode conduzir à afirmação de que a diferença entre o mandato e o trust reside em que, no primeiro, os efeitos do acto praticado pelo mandatário recaem na sua esfera jurídica, salvo a obrigação de retransferência dos mesmo para o mandante, por um lado e, por outro, no trust, os efeitos da actividade do trustee transmitir-se-iam imediatamente aos beneficiários(96).
Ora, nos termos do art. 1180.º do cód. Civil, o mandatário sem representação adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes. O mandatário torna-se pois titular dos direitos e das obrigações decorrentes da sua actividade. Consequentemente, daqui decorre a necessidade de um acto ulterior destinado a transferir estes resultados para a esfera jurídica do mandante ou de terceiro. Isto não é rigorosamente assim no trust, porquanto a actividade do trustee se dirige, de forma imediata, ao beneficiário na medida em que este também é titular da trust property.
Pode, todavia, dizer-se que o princípio plasmado no art. 1180.º do Cód. Civil não tem um alcance geral absoluto, pois que o art. 1181.º, n.º 2, do mesmo corpo de normas, permite ao mandante substituir-se ao mandatário no exercício de direitos de crédito antes de qualquer acto de transferência. Por isso, no caso de aquisição de direitos de crédito, o mandante como que pode ser considerado titular das situações jurídicas adquiridas pelo mandatário independentemente de qualquer acto de transmissão, reputando-se o mandatário como mandatário-legitimado (e não titular) ou detentor de uma legitimação formal. A substituição do mandatário pelo mandante implica a cessação da legitimidade do mandatário para fazer valer os respectivos créditos. Verifica-se aqui um desvio à tese da dupla transferência, ingressando o resultado do exercício dos direitos de crédito directamente no património do mandante(97).
Sucede que também no trust, em que se preveja a atribuição dos bens que constituem o seu objecto aos beneficiários, no termo da actividade de gestão, se verifica a necessidade da prática de um acto de transferência por parte do trustee aos diversos beneficiários. Por outro lado, o art. 1180.º, que aparentemente evidencia uma profunda analogia entre o trust e o mandato, parece revelar a profunda diferença entre os dois institutos, porquanto os beneficiários, diferentemente do mandante ou de terceiro, podem recorrer à acção de tracing (“obrigação equitativa in rem”) e recuperar os bens ou o produto da sua alienação(98).
Os bens constituidos em trust formam um fundo separado, distinto do património pessoal do trustee. O efeito característico do trust conduz à noção de segregação patrimonial.
Na verdade, o conceito de segregação traduz o efeito peculiar do trust: não existe alteridade subjectiva entre o trustee e o património e, ao mesmo tempo, subsiste uma incomunicabilidade biunívoca entre o património geral do trustee e o trust. A segregação patrimonial encontra-se funcionalizada à realização do escopo próprio do trust, não se confundindo os bens transferidos pelo disponente com o património geral do trustee. Por conseguinte, os bens constituídos em trust não integram a garantia geral a favor dos credores pessoais do trustee(99).
A segregação implica que os bens em trust tenham sempre um titular, o trustee, mas as obrigações pessoais deste não se repercutem nos bens em trust. Por outro lado, os actos respeitantes aos bens em trust reagem sobre o património geral do trustee, quer nas relações com terceiros, quando este assume obrigações no exercício da sua função sem limitar a responsabilidade aos bens em trust, quer perante os beneficiários, quando de algum modo não respeita o seu dever de segregação patrimonial(100).
Quer a subrrogação real, operada no âmbito da administração do património constituído em trust, quer a subtracção à sucessão mortis causa do trustee dos bens em trust, encontram na segregação patrimonial a sua justificação(101).
O problema de fundo respeita ao sentido da segregação patrimonial enquanto instrumento da ordenação correcta dos diferentes interesses em jogo. No trust, o interesse fundamental em causa, digno da tutela do ordenamento jurídico, é a criação de um estatuto de imunidade dos bens destinados a determinado escopo perante os diversos intervenientes (e perante os respectivos credores).
Ao que parece, os mecanismos jurídicos tradicionais do nosso direito positivo não permitem satisfazer esse interesse, tantas vezes almejado pelas partes.
A diferença fundamental entre a oponibilidade do mandato sem representação e do trust decorre da diversidade dos respectivos pressupostos. No trust, o vínculo de destinação não incide claramente sobre uma res, mas antes sobre a riqueza nela incorporada mediante sucessivas transformações económicas. No âmbito da segregação operada pelo trust, os bens são susceptíveis de serem transformados, convertidos, de sofrerem incrementos ou diminuições de valor sem que isto afecte, minime que seja, as obrigações do trustee ou os direitos dos beneficiários(102).
Poderia dizer-se que, na ausência do direito dos trusts, o recurso ao contrato de mandato sem representação (ou ao contrato de comissão(103)) para administração de determinada massa patrimonial é susceptível de permitir a assim denominada “divisão positiva dos bens”. O mandatário, em cuja esfera de pertinência se encontram os bens, tem o dever de os administrar por conta do mandante. Os bens administrados respondem, por conseguinte, pelos créditos do “negócio”, pelos créditos decorrentes de relações jurídicas estabelecidas em execução do mandato.
Parte-se do princípio de que, na ausência do direito dos trusts, o mandato sem representação permite a separação dos bens administrados (bens da titularidade formal do mandatário) dos restantes bens do mandante e do mandatário. Mas este pressuposto baseia-se em regras jurídicas que podem, elas próprias, revestir o carácter de direito organizacional.
Na medida em que o mandante não é o titular (formal) dos bens adquiridos em cumprimento do mandato, estes não respondem perante os seus credores pessoais. Estes podem, porém, subrrogar-se ao mandante no exercício do seu direito de crédito (poder de exigir o cumprimento do contrato) contra o mandatário, se se verificarem os requisitos do respectivo meio de conservação da garantia patrimonial (arts. 606.º e ss do Cód. Civil). Assim se alcançaria a imunidade dos bens administrados perante os credores do mandante.
Todavia, essa imunidade perante os credores do mandante não seria suficiente, designadamente, no caso de não se aceitar a teoria da dupla transferência fiduciária no mandato para alienar, pois que os bens a alienar responderiam pelas obrigações pessoais do mandante. O mesmo se refira a respeito dos direitos de crédito adquiridos pelo mandatário, permitindo-se aos credores do mandante agir utendo iuribus debitoris, se se verificarem os pressupostos da subrrogação do credor ao devedor (arts. 606.º e ss do Cód. Civil).
Acresce que, a declaração de insolvência do mandante implica, nos termos do art. 110.º, n.º 1, do Cód. da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a caducidade dos contratos de mandato que não se mostrem ser estranhos à massa insolvente, ainda que o mandato tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro. Por força do n.º 2 do mesmo preceito, deverá aplicar-se o mesmo regime, com as devidas adaptações, a quaisquer outros contratos pelos quais o insolvente tenha confiado a outrem a gestão de assuntos patrimoniais, com um mínimo de autonomia, nomeadamente a contratos de gestão de carteiras e de gestão de património. Contudo, apenas os contratos de mandato em que o insolvente seja o credor das obrigações do mandatário – mormente da obrigação da entrega dos bens adquiridos em execução do mandato – deverão caducar com a declaração de insolvência. A ratio legis do referido preceito consiste em fazer cessar aqueles contratos de mandato de que possam emergir créditos ou débitos para a massa insolvente. Por conseguinte, o contrato de mandato não deverá caducar se a respectiva execução pelo mandatário não puder reflectir-se na massa insolvente. Daí a relevância da cláusula a favor de terceiro no contrato de mandato.
Em contrapartida, não se verifica uma total segregação ou separação dos bens administrados dentro do património geral do mandatário. Assim, no caso de mandato para adquirir, quando o mandato não conste de documento anterior à data da penhora, os bens adquiridos respondem pelas obrigações pessoais do mandatário. Depois, os bens adquiridos pelo mandatário sujeitos a registo e efectivamente registados também respondem pelas suas obrigações pessoais. O mesmo se poderá dizer a propósito das quantias pecuniárias entregues pelo mandante ao mandatário, no caso de não se lhes estender a aplicação do art. 1184.º. Por seu turno, também no pressuposto da inaplicabilidade do art. 1184.º, no mandato para alienar, a contrapartida da alienação poderá responder pelas obrigações pessoais do mandatário. Efectivamente, o mandatário torna-se proprietário das coisas fungíveis, não identificáveis, que lhe forem confiadas(104). Por último, se se afirmar que que os bens administrados, embora da pertinência formal do mandatário, são da titularidade do mandante, sempre os credores deste os poderiam executar.
Todavia, considerando que os credores pessoais do mandatário não podem ignorar o valor programático do mandato e intencionar como final a aquisição feita pelo mandatário seu devedor, a destinação ao mandante implica que o bem não integra a garantia genérica ex vi art. 601.º do Cód. Civil. No caso de mandato para adquirir bens móveis não sujeitos a registo, de bens sujeitos a registo mas não registados e de bens sujeitos a registo e registados, mas que não caibam na hipótese do regime regra (segundo o qual os bens sujeitos a registo e registados respondem pelas obrigações do mandatário), apenas virtualmente contido na norma do art. 1184.º, do Cód. Civil, quando o mandato conste de documento anterior à data da penhora, como que o vínculo de destinação do bem se reveste de natureza real. Esta protecção do interesse do mandante observa a tendência para a tutela real da obrigação, como que reificando a posição jurídica do mandante.
Por outro lado, a regra geral da caducidade do mandato, estabelecida no art. 110.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, deve aplicar-se também ao caso de insolvência do mandatário. O contrato de mandato caduca com eficácia ex nunc, não tendo o mandante o direito de sequela ou de separação (105). Nos termos desta norma, só deverão cessar aqueles contratos de mandato de que possam emergir créditos ou débitos para a massa insolvente. Em princípio, a cláusula a favor de terceiro não assumirá aqui relevância, não produzindo qualquer efeito útil.
Pode, por isso, afirmar-se que os bens administrados são, em certos casos, susceptíveis de serem executados pelos credores pessoais do mandante ou do mandatário. Porquanto é titular de direitos de natureza obrigacional (assim como muitos dos credores de relações jurídicas estabelecidas pelo mandatário enquanto mandatário, os credores do “negócio”) contra o mandatário, o mandante encontra-se em pé de igualdade com os credores pessoais do mandatário. Daqui resulta a impossibilidade prática de organizar uma “divisão positiva dos bens” sem recurso ao direito organizacional(106).
A questão em apreço não é a da limitação da responsabilidade patrimonial, mas sim a do acréscimo de uma garantia patrimonial, na medida em que ao património do mandatário acresce um outro património. Não se pode dizer que a pertinência de dois patrimónios à mesma esfera jurídica conduza à confusão. Trata-se de bens que anteriormente não pertenciam ao sujeito (mandatário ou trustee), tornando-se este seu proprietário temporário e devendo os bens ser ulteriormente retransferidos para outro sujeito. Não se subtrai aqui qualquer garantia aos credores do proprietário actual pois que estes não podem, objectivamente, confiar na pertinência de tais bens ao seu devedor.
O trust da common law resolve a questão da (in)atacabilidade dos bens administrados pelos credores pessoais do mandatário. Este é designado como trustee e os bens de que é titular dividem-se entre dois patrimónios distintos: o seu e o do trust. No direito dos trusts prevalece a regra segundo a qual os bens do trust não respondem pelas obrigações pessoais do trustee. Diz-se mesmo que o direito dos trusts como que torna o trustee, vis-a-vis os diversos credores, em duas pessoas distintas: uma que negoceia por sua conta e outra que age por conta do(s) beneficiário(s). Esta imunidade dos bens do trust perante os credores pessoais do
trustee representa o contributo fundamental do direito dos trusts para os ordenamentos jurídicos que o não conhecem. A sua relevância surge com especial clareza quando se analisam as relações jurídicas similares à do trust, a que se lança mão nos países de direito continental. Aqui, por via de regra, recorre-se muito frequentemente ao mandato(107) e o mandatário é, geralmente, uma instituição de crédito ou outra entidade dotada de património idóneo para eliminar o risco de insolvência. Esta prática contrasta com a dos países da common law onde, em consequência do direito dos trusts, o papel de trustee é muitas vezes desempenhado por pessoas físicas. Normalmente, o trustee conhece os desejos do settlor e as necessidades do beneficiário. A existência de uma relação pessoal entre o trustee, o settlor e o beneficiário contribui ainda para assegurar o cumprimento almejado das obrigações de administração. Apesar de não ter personalidade jurídica, o trust da common law é manifestamente uma “entidade jurídica” e, consequentemente, o direito dos trusts é também direito organizacional(108).
Nesta perspectiva, o direito dos trusts é importante não apenas por implicar a supra referida “divisão positiva dos bens do trust”, no âmbito do património geral do trustee, mas também por consentir a mesma “divisão positiva” em relação ao património geral do beneficiário. Os bens do trust não respondem pelas obrigações pessoais do trustee nem do beneficiário. Ao invés, o mandato sem representação não permite a constituição desta dupla imunidade nos bens administrados: conforme a perspectiva que se adopte, estes poderão responder pelas obrigações do mandante ou do mandatário.
No direito continental, o mandatário-administrador é o titular formal dos bens que administra e o mandante tem apenas um direito de natureza obrigacional contra ele, encontrando-se em pé de igualdade e ao lado dos restantes credores do mandatário. Por conseguinte, em caso de insolvência do mandatário, os bens administrados que, cum summo rigore, integram a massa insolvente, são passíveis de satisfazerem qualquer credor do mandatário(109).
Em virtude da ausência de uma norma equivalente à do direito dos trusts para o caso de insolvência do mandatário, recorre-se, para o desempenho das respectivas funções, a instituições dotadas de uma solidez patrimonial susceptível de afastar o risco de insolvência do mandatário(110).
A consideração de que no nosso ordenamento jurídico apenas são possíveis formas de segregação unilateral conduz à conclusão de que o trust introduz algo de novo: a segregação bilateral. Essa segregação opera perante os credores daquele sujeito que, de outro modo, assumiria o papel de mandante (ou de terceiro) e perante os credores do indivíduo que ocuparia a posição de mandatário. O trust representa “o instituto exponencial de qualquer fenómeno segregativo”(111). Acresce que a segregação patrimonial originada pelo trust é sempre acompanhada pelo carácter fiduciário das obrigações inerentes à titularidade proprietária, do trustee, que incide sobre os bens segregados.
Ora a razão justificativa da segregação patrimonial no mandato sem representação é a mesma que preside ao trust: o direito é adquirido pelo sujeito (mandatário ou trustee) precisamente para não se confundir com o seu património pessoal e para ser destinado à realização de determinado escopo. Não existe qualquer lógica funcional na limitação do mecanismo segregativo a apenas alguns dos bens da esfera de pertinência do mandatário por conta do mandante(112).
A justificação do efeito de segregação patrimonial encontra-se, não no próprio efeito da separação em si mesmo, a que seria dirigida a vontade das partes, mas antes na natureza do direito transferido ao mandatário, ou ao trustee, que não corresponde ao direito típico de propriedade. Com efeito, está em causa uma atribuição patrimonial directamente funcionalizada à satisfação do escopo do mandato ou do trust mediante o desempenho da função própria de mandatário ou de trustee(113).
O direito do mandatário, tal como o do trustee, encontra-se dirigido à satisfação do interesse de outrem e isto impede o mandatário de gozar o bem no seu próprio interesse. Assim, a disciplina do mandato protege o direito de crédito do mandante ao cumprimento da obrigação de transferir com que arca o proprietário temporário.
O direito que emerge por efeito da constituição de um trust assume uma configuração particular que o distingue do tradicional direito de propriedade, revestindo a posição de titularidade real carácter temporário. A sua dimensão temporal encontra-se intimamente ligada à realização dos fins almejados(114).
Pode, nesta sede, referir-se uma confiança no momento genético, que é justamente a confiança do disponente no trustee, de um lado e, de outro, uma confiança no momento dinâmico da execução do trust, que é a confiança depositada pelos beneficiários no trustee.
Admitindo-se a possibilidade de causas translativas atípicas, a causa fiduciae, enquanto “um dar para haver de rehaver”, explica a figura do trust com maior adequabilidade jurídica do que a causa mandati, insusceptível de justificar uma transferência plena, e com menos artifício lógico do que a causa credendi, que se traduz sobretudo num “dar para rehaver” não muito compatível com a situação do negócio fiduciário.
Na reconstrução civilística da relação entre o negócio constitutivo do trust e o negócio dispositivo dos bens para o trustee, a causa do negócio constitutivo traduz-se no programa de segregação de uma ou mais posições subjectivas, ou de um complexo de posições subjectivas unitariamente considerado (bens constituídos em trust), das quais o disponente se despoja transferindo-as para um terceiro (trustee) ou isolando-as juridicamente no seu património (no caso de ele próprio assumir o papel de trustee), em vista da tutela de interesses que o ordenamento considera dignos de protecção (escopo do trust). Deste modo, o negócio dispositivo tem uma causa externa, o acto programático, actuando o negócio constitutivo. O negócio constitutivo consubstancia a causa da atribuição dos bens ao trustee. Aquele negócio traduz a causa idónea para justificar o acto de disposição. Através desta coligação negocial, os bens transferidos são confiados ao trustee e são objecto de segregação patrimonial em ordem à prossecução do escopo próprio do trust.
Por outro lado, para desenvolver uma função semelhante à do trust, o mandato deveria ser também um contrato a favor de terceiro. De outro modo, o beneficiário (no caso de ser pessoa diferente do mandante) não teria qualquer direito perante o mandatário.
Todavia, mesmo assim, o mandato não surge como uma alternativa eficaz ao trust, porquanto, desde logo, ao beneficiário não se reconhece qualquer titularidade real sobre os bens administrados.
Conclui-se pela irredutibilidade do trust ao contrato de mandato. Não se verifica uma equivalência perfeita entre o trust e os instrumentos jurídicos do direito continental em termos de eficiência económica nas operações financeiras. Depois, do trust emergem garantias específicas a favor de determinados grupos de credores. Por último, na gestão profissional da riqueza mobiliária, os sistemas da common law dispõem de instrumentos mais eficientes de tutela do fiduciante/beneficiário em caso de confusão ilícita entre o património separado e o património pessoal do administrador, pois que um mecanismo meramente obrigacional se revela inidóneo para tutelar o interesse administrado(115). O trust consubstancia um instrumento caracterizado por uma extraordinária flexibilidade estrutural e funcional(116).
Os elementos característicos da posição de titularidade real do proprietário-fiduciário, ou seja, o carácter temporário do direito em estreita conexão com a destinação funcional dos bens, são os mesmo no negócio fiduciário e no trust . A administração de bens no interesse de outrem assume, por via de regra, natureza fiduciária, originando um fenómeno de segregação patrimonial dos bens detidos para escopos hetero-determinados e sendo as prerrogativas de carácter absoluto e exclusivo do proprietário mitigadas pela realização de um interesse de outrem. Trata-se da gestão fiduciária do direito de propriedade.
Pode afirmar-se que a titularidade de direitos reais ou de crédito no interesse de outrem apresenta virtualidades para se impor como uma entidade jurídica de natureza autónoma. A consideração dos diversos modelos que o direito pode assumir, assim como das diversas exigências históricas que deve satisfazer conduz à relativização do conceito de propriedade e ao esbatimento de pré-juízos conceptuais relativamente a institutos provenientes de outros ordenamentos jurídicos.
Notas:
(*) Não tendo sido possível incluir o estudo que ora se publica no volume de homenagem aos Senhores Professores Doutores Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, não esmoreceu o desejo de participar nesse tributo. Este estudo é dedicado a essa homenagem.
(**) Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Mestre em Direito (LL.M.) pela Columbia University School of Law (Nova Iorque) e pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
(1) Cfr. Official Journal of the European Union de 13.10.2003.
(2) “This means that organizational law is much more important as property law than as contract law”. Cfr. Henry Hansmann, Erinier Kraakman, The Essential Role of Organizational Law, 110 Yale Law Journal 387, 2000, p.390; Henry Hansmann, Erinier Kraakman, Property, Contract, and Verification: The Numerus Clausus Problem and the Divisibility of Rights, 31 The Journal of Legal Studies S373, 2002.
(3) Podendo até referir-se uma nova era de “uncorporation”. Cfr. Robert H. Sitkoff, Uncorporation: A New Age?: Trust as “Uncorporation”: A Research Agenda, 2005 University of Illinois Law Review 31, p.32.
(4) Em geral, pode afirmar-se que o business trust tem sido utilizado principalmente no âmbito da emissão de participações passivas em carteiras de valores ou de fundos que, por seu lado, se encontram sujeitos a limitações normativas externas. Cfr. Robert H. Sitkoff, Uncorporation: A New Age?: Trust as “Uncorporation”: A Research Agenda, 2005 University of Illinois Law Review 31, p.34, 39.
(5) Trata-se da perspectiva evolutiva do trust e da sociedade comercial enquanto entidades empresariais entre si concorrentes. Deste modo, as posições relativas do trust e da sociedade comercial reflectem as suas características, a sua idoneidade para a finalidade pretendida e o quantum dos custos que implicam. Cfr. Robert H. Sitkoff, Uncorporation: A New Age?: Trust as “Uncorporation”: A Research Agenda, 2005 University of Illinois Law Review 31, p.45.
(6) Importa levar em linha de conta que o direito dos trusts consubstancia o direito subsidiário do business ou commercial trust, aplicando-se-lhe os respectivos padrões fiduciários (sobre o trustee impendendo deveres de lealdade e de cuidado mais intensos) em lugar da perspectiva mais flexível do direito das sociedades comerciais. Surge assim a questão mais ampla relativa à divergência entre o direito tradicional dos trusts, que se desenvolveu no âmbito de transferências patrimonais a título gratuito, por um lado e, por outro, as exigências postas por uma organização empresarial. Para além das diferenças nos padrões fiduciários, os princípios do direito tradicional dos trusts pressupõem o consenso unânime dos trustees quanto aos actos de gestão a empreender. Por outro lado, o trustee, perante as diferentes classes de beneficiários, deve agir com imparcialidade. Por seu turno, a regra anti-perpetuidade estabelece limites (ainda que indirectamente) à duração temporal do trust. Pode afirmar-se que cada um destes princípios se revela contrário ao princípio que lhe corresponde no direito das sociedades. Com efeito, a gestão raramente pressupõe a unanimidade dos administradores, preferem-se os sócios a outros interessados e a duração da sociedade não encontra limites no tempo. Cfr. Robert H. Sitkoff, Uncorporation: A New Age?: Trust as “Uncorporation”: A Research Agenda, 2005 University of Illinois Law Review 31, p.37-38.
(7) Cfr. Steven L. Schwarcz, Commercial Trusts as Business Organizations: Na Invitation to Comparatists, 13 Duke Journal of Comparative & Internacional Law 321, 2003, p.324.
(8) Tanto a proliferação recente de novas entidades empresariais, como o ressurgimento de outras já antigas como o business trust, traduzem um desenvolvimento muito interessante do direito organizacional.
(9) O interesse dos credores não é critério idóneo para aferir da (in)admissibilidade geral da constituição de patrimónios separados no exercício da autonomia privada. Esse interesse encontra-se já tutelado pelo meio de conservação da garantia patrimonial em que se traduz a impugnação pauliana, não se afigurando necessária a consagração de limites à autonomia privada. Por outro lado, o ordenamento jurídico não protege sempre do mesmo modo o interesse dos credores, pois estabelece soluções diferentes para o conflito eventual entre entre a autonomia do devedor e a medida da garantia geral das obrigações. Acresce que, levando em linha de conta o interesse dos credores, o sistema da subjectivização do património e aquele da segregação revelam-se equivalentes.
(10) O cumprimento da obrigação é assegurado pela totalidade dos bens penhoráveis existentes no seu património ao tempo da execução, mesmo os que tenham sido adquiridos depois da constituição da obrigação (art. 601.º do Cód. Civil). Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 2000, p.774.
(11) Cfr. Section 105 do Uniform Trust Code de 2000 (“the Code”), que representa a primeira codificação compreensiva, a nível nacional, do direito norte-americano dos trusts; section 27 do Restatement (Third) of Trusts.
(12) Cfr. John H. Langbein, Mandatory Rules in the Law of Trusts, 98 Northwestern University Law Review 1105, 2004, p.1105.
(13) Cfr. John H. Langbein, Mandatory Rules in the Law of Trusts, 98 Northwestern University Law Review 1105, 2004, p.1107 e ss.
(14) Cfr. John H. Langbein, Mandatory Rules in the Law of Trusts, 98 Northwestern University Law Review 1105, 2004, p.1117.
(15) Cfr. John H. Langbein, Mandatory Rules in the Law of Trusts, 98 Northwestern University Law Review 1105, 2004, p.1119 e ss.
(16) Cfr. Maria João Romão Carreiro Vaz Tomé/Diogo Leite de Campos, A Propriedade Fiduciária (Trust), Estudo para a sua consagração no Direito Português, Almedina, Coimbra, 1999, p.19.
(17) Cfr. Henry Hansmann, Ugo Mattei, The Functions of Trust Law: A Comparative Legal and Economic Analysis, 73 New York University Law Review 434, 1998, p.435.
(18) Os utilizadores do trust para fins comerciais levam em consideração a flexibilidade permitida pelo direito dos trusts tanto em sede do governo interno, como na constituição de interesses beneficiais ou equitativos. Aquela maleabilidade permite eliminar os procedimentos do governo social inerentes à estrutura societária.
(19) Cfr. Henry Hansmann, Ugo Mattei, The Functions of Trust Law: A Comparative Legal and Economic Analysis, 73 New York University Law Review 434, 1998, p.466, 471-472.
(20) Cfr. Henry Hansmann, Ugo Mattei, The Functions of Trust Law: A Comparative Legal and Economic Analysis, 73 New York University Law Review 434, 1998, p.466.
(21) Os autores da Convenção de Haia, de 1 de Julho de 1985, sobre a lei aplicável aos trusts e ao seu reconhecimento, consideraram o trust como “entidade jurídica”. A Convenção prevê que o reconhecimento implica, pelo menos, personalidade jurídica (o trustee pode demandar e ser demandado na qualidade de trustee) e separação patrimonial (em especial, a imunidade dos bens constituídos em trust às agressões dos credores do trustee).
(22) Por outro lado, o direito continental conhece institutos que historicamente actuam formas de dissociação da titularidade similares àquela operada pelo trust. A separação não é um dado estranho ao nosso ordenamento jurídico, pois encontra-se entre as formas mais antigas de gestão da propriedade fundiária, a enfiteuse, que dá origem ao desmembramento do direito de propriedade em dois domínios (dominium directum e dominium utile), à dissociação entre propriedade formal (do senhorio directo) e substancial (do enfiteuta) e que de modo totalmente inesperado se pode actualmente juntar às formas de gestão da riqueza mais evoluídas num sistema capitalista.
(23) Cfr. Bernhard Grossfeld, Comparative Corporate Governance: Generally Accepted Accounting Principles v. International Accounting Standards?, North Carolina Journal of International Law & Commercial Regulation, 2003, p.848, 850.
(24) Cfr. Jennifer Ottosen, Cross-Border Derivative Accounting and Disclosure Requirements Really Provide Useful Information to the Financial Statement Users?, 8 University of Miami Business Law Review 241, 2000, p.252.
(25) Cfr. Bernhard Grossfeld, Global Accounting: Where Internet Meets Geography, 48 American Journal of Comparative Law 261, 2000, p.266.
(26) Cfr. Bernhard Grossfeld, Global Accounting: Where Internet Meets Geography, 48 American Journal of Comparative Law 261, 2000, p.266-267.
(27) Cfr. Bernhard Grossfeld, Global Accounting: Where Internet Meets Geography, 48 American Journal of Comparative Law 261, 2000, p.268.
(28) Cfr. Bernhard Grossfeld, Global Accounting: Where Internet Meets Geography, 48 American Journal of Comparative Law 261, 2000, p.269-270.
(29) Cfr. Bernhard Grossfeld, Global Accounting: Where Internet Meets Geography, 48 American Journal of Comparative Law 261, 2000, p.273.
(30) Cfr. Bernard S. Black, The Legal and Institutional Preconditions for Strong Securities Markets, 48 UCLA Law Review 781, 2001, p.782.
(31) O mandatário adquire a titularidade dos bens e encontra-se obrigado a transferi-la para o mandante mediante a prática de um acto de natureza translativa. A dificuldade de enquadramento sistemático deste acto deriva daquela inerente à qualificação jurídica da posição do mandatário.
(32) Refutamos a tese da projecção imediata, segundo a qual tem lugar uma transferência directa do mandante para o terceiro adquirente do bem alienado pelo mandatário. Com efeito, não pensamos que o mandato sem representação consinta a mesma forma de alienação de bens do mandante como se se tratasse de um mandato com representação. Cfr. Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p.193-194; Luís Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, Contratos em Especial, Almedina, Coimbra, 2005, p.466.
(33) Cfr. Inocêncio Galvão Telles, Mandato sem representação, Colecânea de Jurisprudência 8, 1983, 3, p.10; Manuel Januário da Costa Gomes, Em tema de revogação do mandato civil, Almedina, Coimbra, 1989, p.126; Luís Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, Contratos em Especial, Almedina, Coimbra, 2005, p.466. A causa do negócio de transferência consubstar-se-ia na obrigação do mandatário de transmitir para o mandante os direitos adquiridos por conta deste.
(34) Cfr. Maria João Vaz Tomé, Fundos de Investimento Mobiliário Abertos, Almedina, Coimbra, 1997, p.59-60.
(35) A tese da dupla transferência é plenamente acolhida no que toca às dívidas contraídas pelo mandatário em execução do mandato, porquanto o mandante deve assumi-las mediante o instituto da assunção de dívidas (arts. 1182.º e 595.º e ss do Cód. Civil). No caso de não se encontrar em condições de o fazer, o mandante deve entregar ao mandatário os meios necessários para as cumprir ou reembolsá-lo do que este houver despendido nesse cumprimento. Cfr. Luís Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, Contratos em Especial, Almedina, Coimbra, 2005, p.463.
(36) O efeito de segregação patrimonial produzido no âmbito do mandato respeitaria aos bens que são consequência da actividade de administração do mandatário, não aos bens de que o mandatário se torna proprietário em resultado de actos instrumentais do cumprimento da actividade devida. Deste modo, aquele efeito não se verificaria relativamente às quantias pecuniárias fornecidas pelo mandante ao mandatário para o desempenho da respectiva função, nem quanto ao reinvestimento feito pelo mandatário do produto da alienação dos bens no caso de mandato sem representação para alienar. Cfr. Laura Santoro, Il Trust in Italia, in Il Diritto Privato Oggi, Serie a cura di Paolo Cendon, Giuffrè Editore, Milano, 2004, p.234-235.
O texto do art. 1184.º do Cód. Civil (“os bens que o mandatário haja adquirido em execução do mandato e devam ser transferidos para o mandante…”) justificar-se-ia porque o mandatário nunca adquiriria a titularidade dos bens objecto de mandato para alienar ou dos valores entregues ao mandatário para pagamento dos bens a adquirir. Com efeito, o mandatário não obteria a titularidade dos bens a alienar, dos valores recebidos em troca da alienação e dos bens que o mandante lhe entregue para pagamento do preço da aquisição. Assim, a norma do art. 1184.º abrangeria apenas os bens adquiridos em execução de mandato para adquirir. Os bens a alienar, os valores auferidos como contrapartida da alienação e os bens que o mandante entregue ao mandatário para pagamento do preço da aquisição não caberiam na hipótese do art. 1184.º, porquanto não seriam sequer da pertinência do mandatário.
(37) Cfr. Laura Santoro, Il Trust in Italia, in Il Diritto Privato Oggi, Serie a cura di Paolo Cendon, Giuffrè Editore, Milano, 2004, p.234.
(38) A extensão dos poderes de administração do mandatário determina-se com base no acordo das partes, na natureza dos bens e na própria actividade de administração.
(39) Para além das suas participações sociais no mandatário (B).
(40) Acresce que o tipo de “divisão positiva dos bens”, designada como “prioridade com protecção na liquidação”, realizada mediante a constituição de uma sociedade comercial, não estabelece apenas que os credores sociais têm prioridade exclusiva, na satisfação dos respectivos créditos, sobre o património social, mas também que no caso de insolvência de um sócio, e após a excussão prévia dos seus bens, os seus credores pessoais não podem exigir a liquidação do património social em ordem à satisfação dos seus créditos. Os credores da sociedade A poderiam executar a sua participação social na sociedade B. Cfr. Henry Hansmann, Erinier Kraakman, The Essential Role of Organizational Law, 110 Yale Law Journal 387, 2000, p.394.
Poderia, todavia, afirmar-se que uma hipotética unipessoalidade originária do mandatário (B) acarretaria a responsabilidade dos bens detidos por B pelas obrigações do mandante (A), dado que B não seria mais do que um mero instrumento de gestão e organização empresarial de A.
(41) Cfr. Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Almedina, Coimbra, 2002, p.65.
(42) Cfr. Fernando Pessoa Jorge, O Mandato sem Representação, Almedina, Coimbra, 2001, p.192-193.
(43) Cfr. Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Almedina, Coimbra, 2002, p.117.
(44) Cfr. Manuel Januário da Costa Gomes, Em Tema de Revogação do Mandato Civil, Almedina, Coimbra, 1989, p.182-183.
(45) Cfr. Manuel Januário da Costa Gomes, Em Tema de Revogação do Mandato Civil, Almedina, Coimbra, 1989, p.156, 170.
(46) Cfr. Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Almedina, Coimbra, 2002, p.117, 144, 149.
(47) Note-se, nesta sede, que o contrato a favor de terceiro se encontra funcionalmente próximo do trust da common law. Com efeito, muitos sistemas jurídicos da civil law tratam as situações análogas à do trust como contrato a favor de terceiro, nos termos do qual o trustee tem a titularidade jurídica dos bens, devendo administrá-los para o benefício de terceiro (apenas a bewind holandesa e sul-africana atribui a titularidade jurídica dos bens ou direitos ao beneficiário). Por conseguinte, esses ordenamentos deparam-se com o problema fundamental da ausência de titularidade dos beneficiários – pois não existe o conceito da divisão da titularidade em titularidade jurídica e titularidade equitativa. A não ser que se adopte o sistema escocês da separação de patrimónios (trust e personal), o beneficiário não passa de outro credor do trustee. Se o trust agreement for perspectivado como relação jurídico-contratual entre o settlor e o trustee, o beneficiário enquanto terceiro tem um interesse – digno de tutela jurídica – nessa relação. No negócio que celebra com o trustee, o settlor cria pois uma espécie de contrato a favor de terceiro. O trustee, enquanto promitente, promete ao settlor cumprir o estipulado no contrato (o trust agreement) em consideração dos interesses do beneficiário, auferindo uma contrapartida retirada da trust res transferida pelo settlor. Enquanto beneficiário do contrato, o terceiro tem o direito de exigir o seu cumprimento. Cfr. Ronald Chester, Sarah Reid Ziomek, Removal of Corporate Trustees Under the Uniform Trust Code and Other Current Law: Does a Contractual Lense Help Clarify the Rights of Beneficiaries?, 67 Missouri Law Review 241, 2002, p.259, 264. Importa referir que, na Escócia, o trust é considerado como o produto da coligação contratual entre o depósito e o mandato.
(48) Cfr. Diogo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, Almedina, Coimbra, 1980, p.17.
(49) Assim como na co-assunção da dívida social.
(50) Vai-se, assim, para além daquele contrato a favor de terceiro, mediante o qual se atribui ao terceiro (C) o direito à vantagem traduzida na administração dos valores e na vinculação de o mandatário (B) efectuar pagamentos ao mandante (A) no seu interesse. Verifica-se, com efeito, uma vantagem adicional: a co-assunção da dívida social. Não fora esta última vantagem, sempre haveria de distinguir as dívidas do mandante (na relação de valuta) e do mandatário (na relação entre o promitente e o terceiro) perante o terceiro, apesar da sua identidade substancial. De facto, enquanto A tem a obrigação de efectuar determinados pagamentos a C, sobre B recai o dever de gerir os bens e de efectuar pagamentos a A a favor de C.
(51) Cfr. Diogo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, Almedina, Coimbra, 1980, p.129.
(52) Trata-se de uma norma excepcional, pois no âmbito da tese da dupla transferência, que o Cód. Civil consagra, a solução preconizada no art. 1184.º não resulta do reconhecimento de que a titularidade não pertence ao mandatário.
O mandatário é titular do direito de propriedade sobre os bens que adquire em execução do mandato, mas esses bens não podem ser agredidos pelos seus credores pessoais. A posição jurídica do mandante é aquela de credor da obrigação de transferência, mas em que os bens do seu devedor se encontram subtraídos ao princípio par condicio creditorum e adquirem um estatuto especial, assimilável a um património separado.
(53) Cfr. Fernando Andrade Pires de Lima, João de Matos Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, Coimbra Editora, Coimbra, p.753-754.
(54) A razão fundamental que permite afirmar a compatibilidade do trust com a estrutura do direito continental é a de que o trust não se centra nos beneficiários, mas sim no trustee, não na administração, mas na titularidade. Todos os sistemas da civil law conhecem, com efeito, exemplos como o do art. 1184.º do Cód. Civil.
(55) Cfr. Fernando Pessoa Jorge, O Mandato sem Representação, Almedina, Coimbra, 2001, p.287.
(56) Nos termos do art. 30.º do Projecto do Código Civil de 1966, relativo ao mandato, “os bens não sujeitos a registo, adquiridos pelo mandatário em execução do mandato, não respondem pelas suas obrigações, desde que o mandato conste de documento com data anterior à da penhora”.
(57) Com efeito, no direito europeu continental a regra é a de que o administrador é o titular formal dos bens administrados, tendo o disponente apenas um direito de crédito contra aquele, ao lado e juntamente com os restantes credores do mesmo administrador. Consequentemente, em caso de insolvência do administrador, os bens administrados respondem pela satisfação dos direitos de qualquer credor e não apenas pelo cumprimento dos direitos do disponente.
No caso de recusa de retransmissão do bem, o mandatário incorre em mora, aplicando-se o art. 804.º do Cód. Civil. Convertendo-se a mora em não cumprimento definitivo (art. 808.º do Cód. Civil), o mandante poderá optar entre a indemnização por não cumprimento do contrato e a execução específica.
Defende-se o recurso à execução específica, prevista no art. 830.º do Cód. Civil, por parte do mandante, “sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida”. Esta norma (art. 830.º, n.º 1, do Cód. Civil) seria aplicável não apenas ao contrato promessa, mas antes a todos os negócios que originem uma obrigação de contratar. O risco corrido pelo mandante de recusa de retransmissão dos bens administrados será reduzido mediante a extensão do âmbito de aplicação do art. 830.º às promessas de contratar que não tenham fonte num contrato promessa. O tribunal emite uma sentença que produz os efeitos da declaração negocial omitida pelo mandatário. Deste modo, o credor, por intervenção judicial, obtem o mesmo resultado que teria auferido se o devedor tivesse voluntariamente cumprido a sua obrigação. Assim, o mandante, se agir tempestivamente e registar a demanda judicial – se for caso disso – antes do registo da alienação feita pelo mandatário a terceiro, pode opor o seu direito aos adquirentes do mandatário.
É evidente que a tutela do fiduciante, tradicionalmente limitada ao ressarcimento dos danos, se enriquece pela possibilidade de execução específica da obrigação de transferir o bem. Todavia, não é líquido o recurso a esse meio para suprir a inércia do fiduciário quando se deva transferir o bem a sujeito diverso do fiduciante, superando a recusa do fiduciário. Por outro lado, esse instrumento de tutela apenas é eficaz quando o bem se encontra no património do fiduciário, porquanto se este o alienar entretanto a terceiro, ainda que de má vé, o pactum fiduciae é-lhe inoponível.
(58) Porém, a presunção de titularidade pode ser ilidida pelo próprio registo em conta, quando haja remissão expressa para as regras do contrato de mandato ou para a contabilidade do próprio mandatário. Cfr. Amadeu José Ferreira, Valores Mobiliários Escriturais, Um Novo Modo de Representação e Circulação de Direitos, Almedina, Coimbra, 1997, p.313-314.
(59) O registo, como aliás as outras formalidades ad oppositionem, mas mais eficazmente do que estas, tem o objectivo fundamental de dar publicidade aos actos que nele se inscrevem. A inscrição de determinado direito a favor de certa pessoa tem por consequência a criação de uma presunção de titularidade.
(60) Não tem sentido transpor para o âmbito da aquisição de valores mobiliários a protecção que se confere aos terceiros no âmbito do registo predial. Cfr. Paula Costa e Silva, Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A Protecção Conferida ao Terceiro Adquirente, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, Julho 1998, p.861.
(61) As bases do registo predial (e registos similares) e do registo de valores mobiliários são também diversas. O primeiro assenta no prédio, centralizando-se todas as inscrições num único registo estruturado sobre a coisa. “O sistema é pois de base real”. Cfr. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, p. 339. Uma vez realizada a descrição do prédio, todas as inscrições se reportam a essa mesma descrição. A base real do sistema traduz a relevante vantagem de, uma vez encontradas as coordenadas da descrição do prédio, o interessado poder conhecer imediatamente a situação integral da coisa.
Muito diversamente, as contas de registo de valores abertas pelos intermediários financeiros não estão estruturadas sobre os valores, mas sobre a pessoa do titular desses valores. O registo de valores mobiliários escriturais organiza-se em torno dos seus titulares e não em torno dos próprios valores. Cfr. Amadeu José Ferreira, Valores Mobiliários Escriturais, Um Novo Modo de Representação e Circulação de Direitos, Almedina, Coimbra, 1997, p.115. A natureza pessoal do registo em contas individualizadas de valores permite que uma mesma emissão se encontre dispersa por vários intermediários financeiros. Daqui resulta que o conhecimento da vida de uma emissão apenas é possível mediante a conjugação de todas as contas em que se encontram registados os valores. Para a eficiência do mercado, a vida individualizada de cada valor não tem qualquer relevância. Interessa apenas assegurar que ao mercado de bolsa somente acedam os valores que se encontram em condições de total fungibilidade, bem como que o número de valores que circulam não exceda o número de valores emitidos e que podem circular. Outra grande diferença entre o sistema de registo predial (e registos similares) e o sistema de registo de valores mobiliários traduz-se na impossibilidade de aplicação, às inscrições relativas a aquisições de valores mobiliários em mercado secundário, do princípio do trato sucessivo. O registo deve reflectir toda a situação jurídica da coisa, desde a data da descrição até à actualidade. É totalmente impossível estabelecer um nexo ininterrupto entre os vários adquirentes de um mesmo valor mobiliário, tendo as transmissões lugar em mercado de bolsa. O sistema ordena ofertas, traduzindo-se a liquidação física das operações em apuramento de saldos entre as contas dos vários intermediários.
Para o registo predial (e registos similares) vigora o sistema de registo único. Todos os actos que devem ser levados a registo relativamente a um prédio são da competência de uma única conservatória, pelo que qualquer interessado sabe que, consultando o registo da área do prédio, deste constam todas as inscrições relevantes. É totalmente diversa a situação do registo de valores mobiliários. Tendo este registo base pessoal, têm competência para o lavrar todos os intermediários financeiros que possam ter a seu cargo contas de registo. O registo acompanha a fungibilidade dos valores, não se sabe ao certo que valor se está a registar. Sabe-se apenas que se está a registar um valor que reune determinadas características porque integrado numa determinada emissão.
Cfr. Paula Costa e Silva, Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A Protecção Conferida ao Terceiro Adquirente, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, Julho 1998, p.863-869.
(62) Cfr. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1987, p.187.
(63) Cfr. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1987, p.187.
(64) Que desempenha também uma função de publicidade.
(65) Acresce que, às pessoas com quem o mandatário contrata, na medida em que lhes seja indiferente o destino dos efeitos desses contratos, não deve ser permitido invocar a regra res inter alios acta para se oporem a que tais efeitos se projectem na esfera jurídica do mandante. Cfr. Fernando Pessoa Jorge, O Mandato sem Representação, Almedina, Coimbra, 2001, p.294,299, 306-307.
(66) Em ordem a assegurar a inatacabilidade, pelos credores do mandatário (B), do respectivo património, poderia pactuar-se que a cessação do contrato de mandato, por qualquer motivo, não acarretaria a caducidade dos direitos conferidos a C, ficando, nesse caso, B obrigado a conservar os bens que integrem, nesse momento, a carteira de bens por este constituída e gerida ao abrigo do mandato, nas contas bancárias em que os mesmos se encontrem ao tempo da verificação da eventualidade referida, contas essas que se revestiriam de natureza fiduciária e se submeteriam a instruções irrevogáveis (escrow accounts), a favor do mandante (A) ou do terceiro (C).
(67) Cfr. Luís Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, Coimbra, 2006, p.139.
(68) Pode dizer-se que as normas relativas a esses institutos surgem como fragmentos de uma disciplina unitária, de uma disciplina respeitante à titularidade de direitos no interesse de outrem (interesse alheio à esfera pessoal e individual do administrador). A regulamentação destas figuras centra-se na separação do património atribuido no interesse de outrem relativamente ao património pessoal do administrador.
(69) Cfr. Andrea Sassi, Garanzia del credito e tipologie commissorie, Edizioni Scientifiche Italiane, Napoli, 1999, p.120-121, 135-136.
(70) Afigura-se necessário proceder a uma precisão terminológica e a uma escolha heurística: a locução propriedade fiduciária é alheia ao direito positivo. Sendo fruto de elaboração doutrinal, veio a integrar a cultura jurídica e conceptual. A sua coincidência semântica com a área coberta pelo fenómeno da propriedade no interesse de outrem parece clara, mas esta expressão também não é, do ponto de vista técnico-jurídico, qualificante.
O único instrumento que parece abranger o fenómeno real, a titularidade no interesse de outrem é, na linguagem do legislador, o mandato sem representação, dado que o Cód. Civil se refere expressamente aos bens adquiridos pelo mandatário, no pressuposto de que este se torna proprietário (arts. 1180.º e ss do Cód. Civil). Portanto, tendo em conta o tal conteúdo mínimo das duas expressões, limitado ao plano dos interesses em jogo, propriedade-fiduciária e propriedade-mandatária são susceptíveis de serem consideradas como fórmulas equivalentes, evocativas do fenómeno da titularidade-proprietária heterodestinada. Pode, todavia, continuar a falar-se de propriedade fiduciária, sabendo-se que se utiliza uma expressão convencional, privada de conteúdo preceptivo e de explícita previsão normativa. Cfr. Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.129, 133.
(71) As características deste estatuto proprietário são o seu carácter temporário, a sua instrumentalidade e a sua destinação exclusiva a um interesse alheio ao titular A oposição tradicional à configuração, no nosso ordenamento jurídico, de modalidades de propriedade fiduciária, centra-se na natureza temporária e instrumental do direito. Essa natureza seria susceptível de o transformar num novo direito real, em violação do estabelecido no art. 1306.º, n.º 1, do Cód. Civil. Esta objecção seria, todavia, superada mediante a consideração da admissibilidade da propriedade formal, instrumental ou provisória que já se encontra presente no ordenamento jurídico, mormente no modelo da propriedade do mandatário sem representação. Cfr. Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.129.
(72) Cfr. Laura Santoro, Il Trust in Italia, in Il Diritto Privato Oggi, Serie a cura di Paolo Cendon, Giuffrè Editore, Milano, 2004, p.227-228; Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.114.
(73) Embora, como o bem se destina ao mandante, é este que em último recurso arca com o risco. Na verdade, se não forneceu ao mandatário os meios necessários à execução do mandato, o mandante encontra-se obrigado a reembolsá-lo das despesas feitas (art. 1167.º, al a) e al c), do Cód. Civil).
Acresce que o mandatário arca, muito frequentemente, com a obrigação acessória de guarda ou de custódia dos bens de que seja titular por conta do mandante. Essa obrigação de guarda é susceptível de integrar o cumprimento dos seus deveres de “praticar os actos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante” e de “entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste, se o não despendeu normalmente no cumprimento do contrato” (art. 1161.º, als a) e b), do Cód. Civil). O mandatário deve guardar os bens de modo a evitar acções ilícitas de terceiros ou que certos eventos naturais previsíveis provoquem a sua deterioração, destruição ou perda. A obrigação de guarda do mandatário insere-se num contrato cujo objecto não se traduz na guarda e restituição dos bens, mas inclui esses actos. Deste modo, poderá ser-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime previsto para o contrato de depósito (arts. 1185.º e ss do Cód. Civil).
(74) O acto de transferência para o mandante como que se limita à titularidade e à oponibilidade perante terceiros, pois que as outras prerrogativas dominiais podem ser transmitidas anteriormente por efeito do próprio mandato. Com efeito, o mandante tem o poder de dar instruções ao mandatário. Cfr. Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.146, 157.
(75) Cfr. Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.116-118.
(76) Cfr. Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.132.
(77) Cfr. Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.137.
(78) Cfr. Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.127.
(79) Esta assimilação pode encontrar diversas respostas: na Alemanha, a tutela real da obrigação de dar ou de transferir; na França, a distinção entre efeitos inter partes e perante terceiros; na common law, a dissociação da propriedade. Cfr. Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.137-138.
Nesta senda, a alienação a terceiro pelo mandatário, em lugar da respectiva transmissão ao mandante, de um direito adquirido em execução do mandato, poderá dar origem à responsabilidade aquiliana do terceiro pelos danos sofridos pelo mandante em virtude daquela alienação se se verificarem os pressupostos deste tipo de responsabilidade (arts. 483.º e ss do Cód. Civil). Cfr. Regina Constança Pacheco, Da Transferência do Mandatário para o Mandante dos Direitos Adquiridos em Execução do Mandato sem Representação para Adquirir, Associação Académica da Faculdade de Direito, Lisboa, 2001, p.73.
(80) Cfr. Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.144.
(81) Como por exemplo, a publicidade dada pelo registo ou pelo desapossamento. Cfr. Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.144-145.
(82) Cfr. Stefan Grundmann, Trust and Treuhand at the End of the 20th Century. Key Problems and Shift of Interests, 47 American Journal of Comparative Law 401, 1999, p.402.
(83) Cfr. Stefan Grundmann, Trust and Treuhand at the End of the 20th Century. Key Problems and Shift of Interests, 47 American Journal of Comparative Law 401, 1999, p.404-412, 423-424.
(84) Cfr. Laura Santoro, Il Trust in Italia, in Il Diritto Privato Oggi, Serie a cura di Paolo Cendon, Giuffrè Editore, Milano, 2004, p.200-201; Andrea Sassi, Garanzia del credito e tipologie commissorie, Edizioni Scientifiche Italiane, Napoli, 1999, p.118.
(85) E, por isso, não incumpre as suas obrigações perante o fiduciante quando aliena o bem que administra.
Não pode reconduzir-se o negócio fiduciário ao contrato de mandato sem implicar uma inversão conceptual entre causa e efeito. A causa do mandato, que se consubstancia na prática de actos jurídicos, pode traduzir o efeito mas não o escopo do negócio fiduciário. A transferência efectiva da titularidade real dos bens do fiduciante para o fiduciário corresponde ao escopo económico visado, sendo este fim insusceptível de ser adequadamente alcançado por outro meio.
(86) Cfr. Orlando de Carvalho, Negócio jurídico indirecto, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Suplemento X, Coimbra Editora, Coimbra, 1952, p.106.
(87) Embora se possa dizer que o critério distintivo (há fiducia nas operações destinadas a perdurar no tempo, que se concretizam em várias operações complexas; há mandato quando se trate da prática de um ou mais actos jurídicos determinados ) se revela evanescente.
(88) Cfr. Orlando de Carvalho, Negócio jurídico indirecto, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Suplemento X, Coimbra Editora, Coimbra, 1952, p.110.
(89) Cfr. Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.119-120, 122-123.
(90) Cfr. Laura Santoro, Il Trust in Italia, in Il Diritto Privato Oggi, Serie a cura di Paolo Cendon, Giuffrè Editore, Milano, 2004, p.139, 142.
(91) Cfr. Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.135-136.
(92) Com efeito, nos termos do art. 1.º dos Principles of European Trust Law, o trustee é titular de um acervo de bens segregado do seu património pessoal. Sobre ele impende a obrigação de o gerir em prol dos beneficiários ou de um escopo. No âmago do trust está aquela titularidade do trustee de um conjunto de bens separado do seu património pessoal, assim como a sua responsabilidade, pela respectiva gestão, perante os beneficiários ou outro executante do trust.
(93) A emergência desta figura consente flexibilidade acrescida ao trust de longa duração, reforça a possibilidade de o disponente orientar ou controlar a conduta do trustee muito tempo após a sua morte ou incapacidade e permite a adaptação do trust a alterações supervenientes de circunstâncias. Pode recorrer-se ao trust protector para o benefício dos beneficiários, para a protecção dos desejos e pretensões do disponente ou para a protecção do disponente e dos beneficiários simultaneamente. Cfr. Gregory S. Alexander, Trust Law in the 21st Century: Trust Protectors: Who will watch the Watchman?, 27 Cardozo Law Review 2807, 2006, p.2808.
(94) Nesta sede, não consideramos relevante a subsistência de uma relação duradoura entre mandante e mandatário por oposição à inexistência de qualquer relação entre o disponente e o trustee, o qual se encontra vinculado apenas perante os beneficiários. Com efeito, também no trust pode existir uma relação jurídica directa entre trustee e disponente, como sucede quando este assume a veste de beneficiário. Acresce que o poder reconhecido ao disponente e aos beneficiários para modificar os termos do trust é susceptível de conduzir à relevância da relação entre disponente e trustee. Também não importa a diversa conformação negocial do mandato e do trust: contrato (art. 1157.º do Cód. Civil) e negócio unilateral. Verifica-se, na verdade, a tendência no sentido de reconhecer maior relevância ao plano do acordo negocial entre disponente e trustee. Não releva, por seu turno, a diversa modalidade de agir, em via disjuntiva (art. 1166.º do Cód. Civil) no caso de existirem vários mandatários, em via conjuntiva na hipótese de existirem vários trustees. O mesmo se refira a propósito das diferentes causas de extinção das duas figuras (para o mandato, arts. 1170.º e ss do Cód. Civil). Cfr. Laura Santoro, Il Trust in Italia, in Il Diritto Privato Oggi, Serie a cura di Paolo Cendon, Giuffrè Editore, Milano, 2004, p.229-231.
No mandato, o mandatário é obrigado a praticar os actos compreendidos no mandato segundo as instruções do mandante (art. 1161.º, n.º 1, al a), do Cód. Civil). Muito diferentemente, no trust, a relação fiduciária que surge entre trustee e beneficiários implica que o trustee se deva reger apenas pelo interesse daqueles, apesar de manter uma posição de plena independência decisória (salvo claúsula em sentido diferente prevista no acto constitutitvo do trust).
(95) Cfr. Laura Santoro, Il Trust in Italia, in Il Diritto Privato Oggi, Serie a cura di Paolo Cendon, Giuffrè Editore, Milano, 2004, p.231-232.
(96) Cfr. Laura Santoro, Il Trust in Italia, in Il Diritto Privato Oggi, Serie a cura di Paolo Cendon, Giuffrè Editore, Milano, 2004, p.232.
(97) Deste modo, a oponibilidade do direito do mandante aos credores e adquirentes do mandatário encontra na titularidade do mandante a sua justificação. Por isso, os credores pessoais do mandante e o administrador da insolvência poderão executar directamente esses direitos de crédito.
(98) Cfr. Maurizio Lupoi, Trusts, Giuffrè Editore, Milano, 1997, p.81; Il Trust in Italia, in Il Diritto Privato Oggi, Serie a cura di Paolo Cendon, Giuffrè Editore, Milano, 2004, p.233.
(99) A segregação não é um fenómeno ignorado pelo nosso ordenamento jurídico, manifestando-se claramente no mandato sem representação (art. 1184.º do Cód. Civil). Aqui, tal como no trust, os bens, embora na titularidade do mandatário, não se confundem com o seu património pessoal e destinam-se a determinada finalidade (a transferência para o mandante).
(100) Cfr. Maurizio Lupoi, Trusts, Giuffrè Editore, Milano, 1997, p.482.
(101) Cfr. Maurizio Lupoi, Trusts, Giuffrè Editore, Milano, 1997, p.256.
(102) Cfr. Laura Santoro, Il Trust in Italia, in Il Diritto Privato Oggi, Serie a cura di Paolo Cendon, Giuffrè Editore, Milano, 2004, p.236; Maurizio Lupoi, Trusts, Giuffrè Editore, Milano, 1997, p.483.
(103) Cfr. art. 266.º do Cód. Comercial.
(104) Trata-se de uma consequência da natureza fungível das coisas confiadas (aplicação indirecta dos arts. 1206.º e 1144.º do Cód. Civil).
(105) Cfr. Luís Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, Coimbra, 2006, p.139.
(106) Cfr. Henry Hansmann, Erinier Kraakman, The Essential Role of Organizational Law, 110 Yale Law Journal 387, 2000, p.414-417.
(107) Poderá falar-se de velhas formas para novas funções?
(108) Cfr. Henry Hansmann, Erinier Kraakman, The Essential Role of Organizational Law, 110 Yale Law Journal 387, 2000, p.416; Cfr. Henry Hansmann, Ugo Mattei, The Functions of Trust Law: A Comparative Legal and Economic Analysis, 73 New York University Law Review 434, 1998, p.457-458.
(109) Poderá, contudo, colocar-se a questão de se saber se a norma do art. 1184.º do Cód. Civil não tornará impenhoráveis os bens de que o mandatário é titular por conta do mandante. Todavia, como se viu supra, a propósito deste preceito, suscita-se alguma controvérsia sobre a (ir)responsabilidade dos bens sujeitos a registo, adquiridos em execução do mandato, que se encontram registados em nome do mandatário, pelas obrigações deste.
(110) Cfr. Henry Hansmann, Ugo Mattei, The Functions of Trust Law: A Comparative Legal and Economic Analysis, 73 New York University Law Review 434, 1998, p.457-458.
(111) Cfr. Maurizio Lupoi, Trusts, Milano, Giuffrè, 2001, p.310.
(112) Não se encontra justificação para a limitação da segregação aos bens que o mandatário tenha adquirido em execução do mandato e que deva transferir para o mandante, dado que se trata da simples transformação dos meios pecuniários fornecidos pelo mandante noutros bens. O trust consente claramente esta segregação desde o princípio da relação de administração, apresentando uma solução que realiza um conjunto de interesses legítimos. Segregando os meios que o mandante atribui ao mandatário sem representação em vista da execução do mandato, o trust antecipa o efeito de segregação que a letra do art. 1184.º do Cód. Civil faz surgir em consequência da aquisição de bens efectuada pelo mandatário em execução do mandato e que deva transferir para o mandante. O trust consente claramente esta segregação desde o princípio da relação de administração. Cfr. Laura Santoro, Il Trust in Italia, in Il Diritto Privato Oggi, Serie a cura di Paolo Cendon, Giuffrè Editore, Milano, 2004, p.235.
(113) Cfr. Laura Santoro, Il Trust in Italia, in Il Diritto Privato Oggi, Serie a cura di Paolo Cendon, Giuffrè Editore, Milano, 2004, p.81-82.
(114) Cfr. Laura Santoro, Il Trust in Italia, in Il Diritto Privato Oggi, Serie a cura di Paolo Cendon, Giuffrè Editore, Milano, 2004, p.131.
(115) Os exemplos fornecidos pela legislação respeitante ao mercado de valores mobiliários e à gestão profissional de patrimónios são quase equivalentes. O objectivo é sempre a segregação, dentro do património do administrador, dos bens do cliente, separados também daqueles pertencentes a outros clientes, por um lado e, por outro, subtrair esse acervo patrimonial aos credores do administrador e dos clientes. Cfr. Paola Manes, Fondazione fiduciaria e patrimoni allo scopo, Cedam, Milano, 2005, p.202-203.
(116) Cfr. Nicola Cipriani, Patto commissorio e patto marciano, Proporzionalità e legittimità delle garanzie, Edizioni Scientifiche Italiane, Napoli, 2000, p.238-239.