Paula Costa e Silva - Sobre a Competência dos Tribunais de Comércio


Pela Dra. Paula Costa e Silva


Agravo n.° 3275/00

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 20 de Março de 2000, no Tribunal de Comércio de Lisboa, Carlos Manuel da Silva Porto, Mário Fonseca Pereira Almeida e João Carlos Pereira Siu requereram contra Sport Lisboa e Benfica, ou só Benfica, como preliminar de acção declarativa de anulação a intentar oportunamente, procedimento cautelar de suspensão da deliberação social tomada pela assembleia geral do requerido de 10 de Março de 2000, pela qual foi aprovada a proposta da Direcção do Clube de ratificação da constituição do Sport Lisboa e Benfica, S.A.D., e de aumento de capital desta.
O requerido opôs-se, começando por deduzir a excepção da incompetência material daquele Tribunal, por ser, não uma sociedade comercial ou civil em forma comercial, mas uma associação civil.
Foi proferido despacho a fls. 458-459, que declarou o Tribunal de Comércio absolutamente incompetente para os termos da providência e absolveu o requerido da instância.
Deste despacho agravaram os requerentes para a Relação, que proferiu acórdão que o revogou, considerando competente em razão da matéria o Tribunal de Comércio.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso, pelo requerido que, em alegações, formulou as seguintes conclusões:

1.° — Vem o presente recurso interposto do acórdão da Relação de Lisboa que julgou competente para conhecer da providência cautelar em causa o Tribunal de Comércio, fundamentando tal decisão no art. 89.°, n.° 1, al. b), da LOFTJ, o que constitui errada aplicação do Direito e enferma de vício no juízo de subsunção à Lei da matéria de facto que lhe está subjacente;

2.° — O Tribunal de Comércio é um tribunal de competência especializada em razão da matéria (arts. 67.° do Cód. Proc. Civil, 64.°, n.° 2, e 78.°, da LOFTJ), tendo vocação exclusiva e limitada ao conhecimento das questões jurídico-comerciais previstas no art. 89.° da LOFTJ (isto é: os Tribunais de Comércio não só não têm vocação generalista, como não se pretende que na sua competência se absorvam matérias não reguladas pela Lei Comercial);

3.° — Para decidir a questão de determinação do Tribunal competente para a presente providência, a pedra de toque é formada pelo binómio “objecto da providência cautelar/objecto da acção principal a propor — natureza do acto impugnando” (art. 64.°, n.° 2, 1.a parte, da LOFTJ);

4.° — O Tribunal a quo não ponderou que o objecto da acção principal a propor (de que a providência depende) é que serve de critério determinador da competência do Tribunal, que julgará a acção principal e a providência cautelar dependente;

5.° — O objecto da acção principal é o pedido de anulação da deliberação social tomada pela assembleia geral do SLB de 10/3/2000 (isto é, o objecto de impugnação judicial será uma deliberação da assembleia geral de uma pessoa colectiva civil);

6.° — Assim, se o Tribunal competente para apreciar da validade das deliberações sociais das pessoas colectivas civis é o Tribunal Cível (por força do princípio da especialidade e da competência residual deste — arts. 66.° e 67.° do Cód. Proc. Civil e 64.°, 77.°, 78.° e 89.° da LOFTJ), e se a deliberação impugnanda (cuja anulação será objecto da acção principal) emanou de uma associação civil, será nesta lide competente o Tribunal Cível, não o Tribunal de Comércio (arts. 13.°, 2.°, do Cód. Comercial, e 89.° da LOFTJ — é que o Tribunal de Comércio está apto a conhecer de relações jurídico — comerciais, e só dessas);

7.° — O primeiro lapso do Tribunal a quo surgiu quando identificou o objecto de impugnação na acção principal a haver: que não é o acto de constituição de uma sociedade comercial, mas a deliberação da assembleia geral de uma associação civil;

8.° — Deliberação essa, aliás, cujo objecto não constitui formalidade essencial da constituição de uma sociedade comercial (arts. 7.° a 19.° do Cód. das Sociedades Comerciais), pois que apenas se atinha à legitimidade para a constituição de uma sociedade anónima desportiva já constituída;

9.° — Matéria claramente não comercial, pois mesmo que se tratasse da constituição de uma sociedade inequivocamente comercial a deliberação em causa não era regulada pela lei comercial;

10.° — É que no processo de constituição de uma sociedade comercial não se insere uma deliberação do tipo da que constitui objecto de suspensão no procedimento sub judice (é clara a intenção da lei comercial de não regular as questões relativas à legitimidade para a constituição dos entes societários que prevê, relegando tais matérias para o domínio do direito comum);

11.° — Em suma: sendo objecto da acção principal a propor o pedido de anulação da deliberação social tomada pela assembleia geral do Sport Lisboa e Benfica na reunião de 10/3/00, está-se perante matéria de natureza civil, da competência dos Tribunais Comuns, quer em acções declarativas, quer, por conexão (arts. 383.° do Cód. Proc. Civil, 97.° e 99.° da LOFTJ), nos procedimentos cautelares;

12.° — O objecto da providência cautelar sub judice — O Tribunal a qual ponderou erradamente qual seja o objecto da providência cautelar, pois que a “matéria… de que aqui se fala” não é, nunca foi, nem poderia ser, face ao carácter especial do procedimento, um “acto relativo ao contrato de sociedade” (ademais, a al. b) do n.° 1 do art. 89.° da LOFTJ não apresenta tal lata formulação, dizendo: “acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade”);

13.° — A atribuição da competência ao Tribunal de Comércio para conhecer destes autos cautelares, viola as als. b) e d) do n.° 1 do art. 89.° da LOFTJ, e ainda, indirectamente, o princípio do dispositivo subjacente aos arts. 264.°, 381.°, n.° 3, 460.° e sgs., 661.°, n.° 1, e 664.°, do Cód. Proc. Civil;

14.° — Veja-se: o peticionado pelos requerentes (pessoas singulares de direito civil) contra o requerido (associação de direito civil) foi “a suspensão da execução da deliberação da assembleia geral do SLB do dia 10 de Março…”, para tanto tendo proposto um procedimento cautelar especificado de suspensão de deliberação social (arts. 396.° e sgs. do CPC);

15.° — Em face desta determinada questão, cabia ao Tribunal recorrido ter formulado o seguinte quesito: haverá disposição de lei que submeta a acção de que se trata à competência de algum Tribunal de competência especializada?;

16.° — A resposta é negativa: nenhuma das alíneas do n.° 1 do art. 89.° da LOFTJ quadra à situação, nem a al. d), uma vez que se não está perante uma suspensão de deliberação social de sociedade comercial, nem a al. b), posto que se não trata de uma acção de declaração de inexistência, nulidade ou anulação de contrato de sociedade comercial;

17.° — Concomitantemente, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou indirectamente o princípio do dispositivo (subjacente aos arts. 264.°, 381.°, n.° 3, 460.° e sgs., 661.°, n.° 1, e 664.°, do C.P.C.);

18.° — Sendo este um procedimento cautelar de suspensão de deliberação social (e não um procedimento cautelar de apreciação da existência ou validade de um contrato de sociedade comercial), ou bem que a deliberação impugnada emanou de uma sociedade comercial, e é da competência do Tribunal do Comércio (art. 89.°, n.° 1, al. d), da LOFTJ), ou bem que emanou de uma pessoa colectiva de direito civil, e cai fora do âmbito de competência especializada daquele Tribunal;

19.° — Com a decisão recorrida fez-se entrar pela janela (al. b) dos mesmos art. e n.°) o que se fizera sair pela porta (dita al. d), defraudando-se a mens legis que preside ao art. 89.° citado, (contra o art. 9.° do Cód. Civil), violando-se o princípio do dispositivo e as regras de repartição de competência entre os Tribunais de competência específica, especializada e comuns (arts. 264.°, 381.°, n.° 3, 460.° e sgs., 661.°, n.° 1, e 664.°, do C.P.C., 64.°, 77.°, 78.° e 89.° da LOFTJ);

20.° — Da natureza da deliberação impugnanda: o Tribunal a quo ponderou erradamente a natureza da deliberação impugnanda para efeitos da delimitação da competência do Tribunal de Comércio;

21.° — Desde logo, trata-se de uma deliberação subjectivamente ou organicamente civil porque emanada de uma entidade que não tem natureza comercial (isto é, afasta-se a aplicação da 2.° parte do art. 2.° do Cód. Comercial, e a qualificação de tal deliberação como comercial), o que afasta a aplicação da al. d) do n.° 1 do dito art. 89.°, e assim, a competência do Tribunal de Comércio, que apenas recai sobre as acções de suspensão e anulação de deliberações sociais de sociedades comerciais;

22.° — Também a nível objectivo se está perante deliberação civil, pois que o objecto da deliberação impugnanda foi apenas a aprovação da actuação da Direcção no que concerne à prévia constituição da SLB-SAD, o que não integra para a Lei Comercial uma formalidade essencial para a constituição de uma sociedade (arts. 7.° a 19.° do C.S.C.);

23.° — Se é certo que o contrato de constituição de uma sociedade comercial constitui um acto objectivamente comercial (art. 2.°, 1.a parte, do Cód. Comercial), a qualificação da deliberação que se pronuncia sobre a prévia constituição de uma SAD só poderia ser considerada um acto objectivamente comercial se obedecesse as exigências subjacentes ao mesmo art. 2.°;

24.° — Ou seja, que fosse determinada a natureza comercial das sociedades anónimas desportivas, o que é doutrinalmente duvidoso, e que fosse determinada a natureza objectivamente comercial do respectivo acto de constituição — pressupostos lógico-jurídicos omitidos na decisão recorrida;

25.° — Mas mesmo admitindo a natureza comercial do contrato de constituição das SAD’s, a atribuição de competência ao Tribunal de Comércio, para o conhecimento desta providência cautelar, viola o art. 2.°, referido, 1.° parte (porque não demonstrada a comercialidade objectiva de tal deliberação);

26.° — Tal deliberação não é acto objectivamente comercial, à luz dessa 1.° parte do art. 2.°, porque não se reconduz a nenhum dos actos de comércio tipicamente descritos e regulados na Lei Comercial (sistema de enumeração implícita — dito art. 2.°);

27.° — A comercialidade de tal deliberação também não resulta do seu objecto (aplaudir a actuação dá Direcção do SLB no que concerne à prévia constituição da SLB-SAD), posto que não é em si regulada pela Lei Comercial, nem constitui formalidade de constituição de sociedades comerciais;

28.° — Como objectiva e subjectivamente a deliberação impugnanda não é qualificável como comercial para os efeitos do art. 89.° da LOFTJ, conclui-se que o acórdão recorrido viola o sistema de enumeração implícita e o espírito típico e limitativo consagrado na Lei Comercial, constituindo forma de analogia proibida pelo art. 2.° do Cód. Comercial;

29.° — À deliberação impugnanda, de natureza civil, é aplicável, em exclusivo, o regime estatutário da pessoa colectiva civil de que emanou (os Estatutos e Regulamentos do Clube), e as disposições legais gerais aplicáveis às associações civis (arts. 167.° e sgs. do Cód. Civil), sendo competentes para apreciar da sua suspensão cautelar os Tribunais Cíveis.

Termina pedindo seja julgado o Tribunal de Comércio incompetente em razão da matéria para conhecimento da providência cautelar em causa, por força dos dispositivos citados.
Em contra alegações, os agravados pugnaram pela confirmação do acórdão recorrido.
O Ex.mo Snr. Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de serem declarados materialmente competentes para conhecer do procedimento cautelar em apreço os Juízos Cíveis de Lisboa.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que o circunstancialismo de facto assente, com interesse, se reduz a que a providência cautelar em causa, respeitante à mencionada deliberação da assembleia geral do SLB, foi requerida no Tribunal de Comércio de Lisboa.
Em causa está saber qual o Tribunal competente em razão da matéria para a presente providência cautelar.
Ora, desde logo, tem de se entender que a providência cautelar tem de ser proposta no Tribunal que seja competente em razão da matéria para julgar a causa principal de que aquela é dependência. É assim perante o disposto no actual art. 383.°, n.os 1, 2 e 3, do Cód. Proc. Civil, como já o era com base no disposto no art. 384.°, n.os 1, 2 e 3, do mesmo diploma, na versão anterior à revista. Portanto, o que há que determinar é qual o Tribunal materialmente competente para a acção principal, em que terá de ser pedida a declaração de nulidade ou anulação da deliberação em causa.
Para o efeito de determinação do Tribunal competente em razão da matéria há que atender, em princípio, à causa de pedir e ao pedido expressos na petição inicial, pois tal tipo de competência se determina em função dos termos em que o autor fundamenta a pretensão que quer ver reconhecida, bem como desta mesma pretensão. Há que ter assim em conta a natureza da relação jurídica material em debate segundo a versão apresentada em Juízo.
O princípio geral respeitante a esta espécie de competência encontra-se expresso no art. 66.° do Cód. Proc. Civil: são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Esclarece depois o art. 67.° do mesmo diploma que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada. Ou seja, remete para a LOFTJ (Lei n.° 3/99, de 13/1), cujo art. 18.°, n.° 1, dispõe o mesmo que aquele art. 66.°, tendo até redacção igual. E acrescenta o seu n.° 2: “O presente diploma determina a competência em razão da matéria entre os tribunais judiciais, estabelecendo as causas que competem aos tribunais de competência específica.”
Por sua vez, dispõe o seu art. 64.°, no n.° 1, que pode haver tribunais de 1.a instância de competência especializada e de competência específica; e esclarece, no n.° 2, qual a competência desses tribunais, dizendo, além do mais, e na parte que interessa, que os tribunais de competência especializada conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável. Acrescenta ainda o art. 65.° que os tribunais judiciais podem desdobrar-se em Juízos, podendo nos tribunais de comarca os Juízos ser de competência genérica, especializada ou específica.
Mais à frente, o art. 78.° indica quais são os tribunais de competência especializada, referindo entre eles, na al. e), os Tribunais de Comércio. E as matérias determinadas de que estes conhecem são as enumeradas no art. 89.° da mesma Lei; tratando-se de matéria aí não incluída, nem na que caiba a outra espécie de tribunais, a competência para a mesma cabe aos tribunais de competência genérica (seu art. 77.°, n.° 1, al. a).
Portanto, o que há que averiguar é se a deliberação que, pela acção principal, se visará anular ou declarar nula, integra matéria comercial, ou seja, se constitui um acto de comércio, o que impõe se recorra ao disposto no art. 2.° do Cód. Comercial, segundo o qual “serão considerados actos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código, e, além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar.”
Ora, é nítido que não se verifica a hipótese da segunda parte daquele art. 2.°, pois o acto impugnando, — uma deliberação da assembleia geral do SLB —, não é, claramente, um contrato nem uma obrigação, mas apenas o termo do processo de formação da vontade de uma entidade colectiva, como é o Sport Lisboa e Benfica, sobre determinado assunto; e, mesmo que porventura esse assunto, em si considerado, tenha natureza comercial, ou análoga a ela, não é a natureza do assunto sobre que se delibera que torna aquela deliberação um acto de comércio, mas a circunstância de se tratar de contrato ou obrigação de comerciante, coisa que o SLB não é, pois constitui uma associação civil, visto não ter por fim o lucro económico dos associados, como resulta dos seus estatutos e é, aliás, facto notório (art. 157.° do Cód. Civil). Nem a tal obsta a possibilidade de qualificação da SLB-SAD como sociedade civil em forma comercial, como parece resultar do disposto no art. 2.° do Dec. Lei n.° 67/97, de 3/4, ou mesmo, eventualmente, comercial, pois a deliberação em causa não é da SLB-SAD, mas do SLB, pelo que nunca essa deliberação poderia ser considerada como um acto, ou contrato ou obrigação, de comerciante, dele proveniente, apesar de se poder reflectir na vida de sociedade comercial ou civil em forma comercial. E acresce que a deliberação de ratificação de constituição da SAD nem sequer conduziu à constituição desta, precisamente porque já estava constituída: não foi essa deliberação que levou à constituição da SAD, pois foi apenas o termo do processo de formação da vontade colectiva de uma associação civil, a manifestação da sua intenção quanto à existência daquela e quanto à hipótese da primeira parte daquele art. 2.°: é manifesto que a deliberação em causa, na parte respeitante à ratificação da constituição da SAD, não se encontra especialmente regulada no Cód. Comercial, nem na legislação posterior a ele de natureza mercantil, a que também há que atender porque a redacção dada àquele art. 2.° resultou do facto de a Carta de Lei de 28 de Junho de 1888, que aprovou tal Código, ter revogado toda a legislação anterior e determinado que toda a modificação futura seria considerada como fazendo parte dele (arts. 3.° e 4.°). Por isso, tem-se entendido de forma praticamente unânime que a referência ao Código feita naquele art. 2.° se deve considerar extensiva a toda a legislação posterior de natureza mercantil. E nem naquele diploma, nem no Cód. das Sociedades Comerciais, nem em qualquer outro diploma de carácter comercial, com efeito, se encontra regulada a tomada de deliberação para futura constituição, ou para ratificação da constituição, de uma sociedade comercial, ou civil em forma comercial, como quer que seja qualificada uma sociedade anónima desportiva. Mas também quanto à parte da deliberação respeitante ao aumento de capital da SAD não se pode afirmar que esteja especialmente regulada na lei comercial: com efeito, como diz Fernando Olavo, in Direito Comercial, I Vol., 20 ed., pg. 73, actos especialmente regulados no Código Comercial são, em primeiro lugar, os actos unicamente contemplados nele, apontando como exemplos o reporte, a conta em participação e a conta corrente, e, em segundo lugar, os actos que, apesar de genericamente contemplados no Cód. Civil, reúnam os requisitos que a própria lei comercial considera indispensáveis para atribuir a certa espécie deles a qualidade de mercantil e que, por isso mesmo, sujeita à regulamentação comercial. Ora, as deliberações sociais não vêm regu-ladas apenas na lei comercial, pois vêm reguladas também no Cód. Civil (arts. l75.°, 176.° e 177.°, entre outros); e, por outro lado, não se mostra que, quando visem o aumento do capital, revistam requisitos que à luz da lei comercial sejam indispensáveis para lhes ser reconhecida a qualidade mercantil, ou seja, caracteres de que a lei mercantil torne dependente a sua comercialidade, pois, apesar de regulamentadas no Cód. das Sociedades Comerciais (art. 87.°), são-no apenas como uma formalidade para o aumento do capital, aumento este que, ele sim, constitui um acto comercial, resultante, não da deliberação, mas da celebração de escritura pública subsequente (art. 88.°), pelo que, a não ser celebrada esta, não se verifica tal aumento.
Por aqui se vê, pois, que a deliberação em causa não constitui um acto comercial, nem objectiva nem subjectivamente, do que resulta que à relação jurídica material em debate segundo a versão apresentada em Juízo não possa ser reconhecida natureza comercial.
Em consequência: não sendo a acção principal uma acção de declaração de inexistência, nulidade ou anulação do contrato de sociedade mas de anulação ou declaração de nulidade de deliberação social, que é distinta de um tal contrato, nem de anulação de uma deliberação social susceptível de ser qualificada como acto de comércio, encontramo-nos fora de qualquer das hipóteses previstas no art. 89.° da LOFTJ, mormente as das suas als. b) e d), o que afasta a competência do Tribunal de Comércio para a presente causa, pelo que se declara serem competentes para ela os Juízos Cíveis da Comarca de Lisboa.

Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao agravo, revogando-se o acórdão recorrido e ficando a subsistir a decisão da 1.a instância.

Custas pelos requerentes, ora recorridos.


Anotação


1. No acórdão em anotação, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre a competência material para o julgamento de uma providência cautelar de suspensão de uma deliberação tomada pela assembleia geral do Sport Lisboa e Benfica (SLB). O Supremo decidiu que a competência para esta providência não é do tribunal de comércio, mas sim do tribunal cível, dado que este, sendo embora um tribunal de competência especializada e não um tribunal de competência genérica, funciona como tribunal de competência material residual.
A conclusão a que o Supremo chega não é estranha, se se observar que o requerido na providência é uma associação e não uma sociedade comercial. Aparentemente incongruente seria, de facto, a conclusão inversa, isto é, a de que a competência para uma providência em que é requerida a suspensão de uma deliberação de um não comerciante caberia na jurisdição de um tribunal de comércio.
Não obstante a coerência da decisão, o que pode parecer discutível é o caminho seguido pelo Supremo para chegar àquela conclusão. Isto porque o Supremo funda a sua conclusão num critério de delimitação da competência do tribunal de comércio que não se encontra expressamente previsto no art. 89.° da Lei n.° 3/99, de 3 de Janeiro (1).
No entanto, apesar desta aparente falta de sintonia entre os critérios determinativos da competência dos tribunais de comércio previstos na lei e o critério seguido pelo Supremo, haverá que perguntar se este último critério não deve relevar na interpretação do art. 89.° da LOFTJ. Esta será a questão sobre a qual nos pronuncia-remos na presente anotação.

2. Pelo que conseguimos apurar do acórdão em referência, dois pressupostos subjazem à decisão do Supremo.
Em primeiro lugar, um princípio de coincidência. Fundamentado na premissa de que é competente para o julgamento da providência cautelar o tribunal que é competente para o julgamento da acção, o Supremo concluiu que, devendo a causa principal correr perante o tribunal cível, será este o tribunal competente para conhecer do pedido cautelar.
Em segundo lugar, a limitação da competência do tribunal de comércio aos actos de comércio. O Supremo procede à concretização da natureza da deliberação, confrontando-a com o art. 2.° do Código Comercial. Afirma-se na decisão que a deliberação da assembleia geral do SLB não é um acto nem objectivamente comercial, uma vez que tal qualidade apenas pode ser atribuída, na perspectiva do Supremo, a contratos e obrigações, nem subjectivamente comercial, por não ser um acto praticado por um comer-ciante. Afastada a natureza comercial da deliberação, sustenta o Supremo que a competência para apreciar a respectiva suspensão não pode pertencer ao tribunal de comércio, mas sim ao tribunal cível.

3. O primeiro pressuposto em que o Supremo funda a sua decisão apenas pode ser afirmado como regra, apesar de ter consagração expressa no art. 83.°/1c) do Código de Processo Civil. No entanto, podem existir desvios a esta regra geral derivados quer da conjugação dos diversos critérios de competência internacional e interna, quer da criação efectiva de tribunais com competência especializada no território nacional.
Não sendo esta a questão que tentaremos resolver na presente anotação, limitar-nos-emos a enunciar duas situações que ilustram o que afirmámos.
Em primeiro lugar, no que respeita à articulação dos critérios de competência internacional com os critérios de competência interna, deixe-se registado que a competência internacional para o julgamento da acção e das providências cautelares dela dependentes nem sempre coincidem. Pode, assim, suceder que da aplicação destes critérios resulte uma falta de coincidência entre a competência para a acção principal e a competência para os procedimentos cautelares, conforme resulta expressamente do art. 383.°/5 do CPC. Diga-se, porém, que esta situação apenas constitui uma excepção reflexa à regra da coincidência da competência material para o julgamento da acção e das providências, pois que ela resulta da concretização dos critérios de competência internacional e não da concretização imediata do critério da competência material, que é relevante exaustivamente na ordem interna.
Em segundo lugar, importa referir a falta de coincidência da competência material para a acção e para a providência que decorre de uma conjugação dos critérios de competência territorial com a concreta criação dos diversos tipos de tribunais de competência especializada na ordem interna. Este é — pode dizer-se — um dos alçapões da LOFTJ, dado que esta não pode ser concretamente aplicada sem a articulação permanente com o respectivo regulamento e com as portarias em que se procede à previsão e criação efectiva dos diferentes tribunais abstractamente pensados pelo legislador ordinário.
No que agora nos importa, diga-se que os critérios de competência territorial não impõem uma coincidência necessária entre o tribunal territorialmente competente para conhecer da providência e o tribunal territorialmente competente para julgar a acção principal. O art. 83.° do CPC permite fundamentar este asserção.
Da falta de coincidência entre o tribunal territorialmente competente para a acção e o tribunal territorialmente competentes para a providência cautelar dela dependente pode resultar, indirectamente, uma falta de coincidência entre a competência material para a acção e a competência material para a providência dela dependente. Para tanto, basta que a jurisdição para a providência seja territorialmente afecta a uma circunscrição onde não tenha sido instalado (ou sequer previsto) determinado tribunal de competência especializada, sendo a acção principal, por aplicação conjugada dos critérios de competência territorial e material, instaurada perante um tribunal de competência especializada.

4. Fixados os contornos da regra da coincidência entre a competência para a acção e a competência para a providência como princípio geral e não como imperativo capaz de absorver todos os casos, passemos ao segundo pressuposto em que Supremo fundou a sua decisão.
O Supremo entendeu ser necessário analisar a natureza da deliberação tomada pela assembleia geral do SLB para determinar se a competência para a respectiva suspensão cautelar deveria ser afecta ou não aos tribunais de comércio. Concluindo que esta deliberação não é um acto de comércio, negou a competência dos tribunais de comércio. Pergunta-se que razão motivou o Supremo a analisar a natureza da deliberação quando o legislador não faz depender a competência dos tribunais de comércio, pelo menos numa primeira leitura do art. 89.° da LOFTJ, da natureza comercial dos actos de que deverá conhecer.
Na verdade, o art. 89.°/1d) da LOFTJ dispõe que compete aos tribunais de comércio preparar e julgar as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais. O legislador não disse que compete aos tribunais de comércio preparar e julgar as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais que devam ser qualificadas como actos de comércio subjectivos ou objectivos (caso se admita que o art. 2.° do CCom pode ser estendido a outros actos jurídicos para além de contratos e obrigações).
A questão que imediatamente se coloca é a de saber se o legislador, ao prever, sem qualquer restrição, a competência dos tri-bunais de comércio para conhecer das acções e, por aplicação do art. 89.°/3 da LOFTJ, das providências de anulação e suspensão de deliberações sociais, quis ir tão longe na fixação da competência dos tribunais de comércio quanto o conceito de deliberação social permite. Na verdade, tanto resultam submetidas à competência dos tribunais de comércio as deliberações tomadas por órgãos de uma sociedade comercial, como as deliberações tomadas por órgãos de uma sociedade não comercial. Ambos os actos a impugnar são deliberações sociais.
Este resultado não pode deixar de ser considerado anómalo. Com efeito, o critério da especialização da competência dos diversos tribunais não atende ao tipo de acção, mas à matéria sobre a qual o órgão jurisdicional se irá pronunciar. Pelo que o intérprete pode concluir que o legislador disse mais do que queria quando previu a competência dos tribunais de comércio para a suspensão e anulação de deliberações sociais.
A semelhante resultado chegou o Supremo quando afastou do âmbito de incidência do art. 89.°/1d) da LOFTJ parte dos casos por ele regulados. Ao interpretar este preceito, ponderou o Supremo o que deve significar o critério da especialização dos tribunais em razão de matéria. Esta tarefa, que deveria ser simples, não foi facilitada pelo legislador, pois este veio dispor, no art. 64.°/2 da LOFTJ, que os tribunais de competência específica conhecem de matérias determinadas em função da forma de processo aplicável, afirmação parcialmente contraditada pelo disposto nos arts. 96.° a 102.° da LOFTJ, cuja leitura permite verificar que a competência destes tribunais não depende, em primeira linha, da matéria que julgam, mas, fundamentalmente, da necessidade da intervenção do colectivo no julgamento da acção. Por isso se estabeleceu uma distinção, aquando da elaboração da LOFTJ, entre varas cíveis, juízos cíveis (estes não devem ser confundidos com os juízos previstos nos arts. 93.° a 95.° da mesma LOFTJ) e juízos de pequena instância cível, cuja competência está dependente essencialmente da forma aplicável ao processo.
Atendendo ao critério da especialização da competência dos tribunais em razão da matéria que devem apreciar, concluiu o Supremo que o tribunal de comércio não deve conhecer das acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais de não comerciantes, pois que a especialização não resulta do tipo de acção (suspensão ou anulação de deliberações sociais), mas do tipo de pessoa colectiva cujas deliberações são impugnadas. A suspensão e a anulação de deliberações sociais de quaisquer outras pessoas colectivas que não sejam comerciantes não devem correr pelos tribunais de comércio, mas sim pelos tribunais cíveis.
Se o nome tribunal de comércio não é uma expressão sem qualquer sentido, a razão parece estar com o Supremo quanto ao modo como interpretou o art. 89.°/1d) da LOFTJ. Pena é que não tivesse afirmado expressamente que, ao proceder à ponderação da natureza do acto a impugnar, estava a realizar uma interpretação restritiva do art. 89.°/1d) da LOFTJ, pois que foi isso que efectivamente fez.


22/05/2025 21:12:41