Guilherme da Palma Carlos - “Recordando o Primeiro Congresso da Ordem dos Advogados”
Pelo Dr. Guilherme da Palma Carlos
I. Ao ser-me atribuido o encargo responsabilizante de relembrar, decorridos trinta anos, o I Congresso Nacional dos Advogados, realizado de 16 a 19 de Novembro de 1972 neste velho edifício do Largo de S. Domingos, debati-me com alguma perplexidade quanto à forma de abordar o tema.
Trinta anos é um longo período de tempo, e tudo o que entretanto se passou situa tal efeméride numa outra época, bem diferente da que vivemos, na sociedade e na profissão.
Assim, não enquadrar o I Congresso no contexto temporal e político em que teve lugar conduziria a desvirtuar por completo o seu significado, o seu alcance e os efeitos que dele advieram. E tal omissão seria ainda uma grave injustiça para os que tiveram a coragem de dar voz à nossa Classe, quando tudo se fazia para a calar.
Não posso, por tudo isto, deixar de invocar a época que então se vivia, pois, sem tal referência, o que direi sobre o Congresso poderá parecer, principalmente para aqueles cuja invejável juventude não lhes permitiu conhecer esses tempos, pouco interessante e até de alguma vacuidade.
O dever do conferencista é comunicar com o auditório e é isso que, com a vossa benevolência, tentarei fazer, embora saiba que a saudade que sinto daqueles que acompanhei nessa tarefa poderá conduzir-me à tentação de falar mais comigo do que convosco.
E, confesso, também sinto alguma saudade de mim próprio, trinta anos atrás…
II. Como todos sabemos, para nossa honra, a Ordem dos Advogados nunca foi submissa ao poder político, fosse qual fosse a orientação de seus Bastonários.
Criada pelo Decreto n.° 11.715 de 12 de Junho de 1926, sucedendo à Associação dos Advogados de Lisboa, depois de falhadas tentativas ocorridas no tempo da Primeira República, logo viu o seu regime alterado pelo Decreto n.° 12.334, de 18 de Setembro seguinte.
Em 22 de Junho de 1927, o Decreto-Lei n.° 13.809 incorporou no Estatuto Judiciário o Decreto n.° 12.334, sucedendo-se os Decretos-Lei n.os 15.344, de 12 de Abril de 1928 e 16.536, de 28 de Fevereiro de 1929, Decreto- Lei n.° 22.779, de 29 de Junho de 1933 e Decreto-Lei n.° 33.547, de 23 de Fevereiro de 1944.
Em 23 de Setembro de 1933, o Decreto-Lei n.° 23.050 viera estabelecer que as profissões liberais se organizariam num único sindicato nacional, denominado Ordem para os advogados, médicos e engenheiros.
Contra tal, logo reagiu, sem êxito, o Conselho Geral. Em 10 de Janeiro de 1935, o Decreto-Lei n.° 24.904 veio determinar a entrada da Ordem na organização corporativa do Estado, como seu elemento primário.
Foi então e de imediato, convocada uma reunião urgente e conjunta dos Conselhos Superior, Geral e Distritais, que cruamente deliberaram considerar tal decreto “absolutamente inaceitável”, manifestando-se frontalmente contra o ingresso da Ordem no regime corporativo, o que acabou por ser coroado de sucesso, através da publicação do Decreto-Lei n.° 25.037, de 12 de Fevereiro de 1935, que suspendeu as disposições do Decreto-Lei n.° 24.904, no tocante às Ordens.
Como se vê, o confronto e a luta pela independência por parte da Ordem dos Advogados já vem de longa data. (1)
Todavia, a sua liberdade foi “cirurgicamente”, digamos assim, controlada através dum sofisticado processo que impedia qualquer tomada universal de posições colectivas face ao poder político, não obstante o princípio do auto-governo, sempre teoricamente observado.
Hoje em dia, é a Assembleia Geral da Ordem, constituída por todos os advogados inscritos que, por sufrágio directo, elege o Bastonário e todos os membros do Conselho Superior e do Conselho Geral.
Mas, embora fosse essa a tradição inicial da Ordem, em 1960, por força do Decreto-Lei n.° 43.460, de 31 de Dezembro, as Assembleias Gerais passaram a ser constituídas apenas por delegados, “eleitos pelos advogados das comarcas pertencentes aos diferentes círculos forenses, correspondentes aos círculos judiciais, e pelos advogados das comarcas de Lisboa, Porto e Coimbra”.
Este sistema, violador do princípio do sufrágio directo, vigorou até ao 25 de Abril, apenas sendo revogado pelo Decreto-Lei
n.° 572/74, de 31 de Outubro.
Por outro lado, segundo o Estatuto Judiciário, só o Bastonário e parte dos Conselhos eram eleitos, através da tal eleição indirecta, sendo os demais de nomeação.
Como é evidente, este regime retirava legitimidade democrática à eleição e, pior ainda, permitia a criação estável duma forte componente não electiva que, na prática, traduzia um poder instalado e quási inamovível.
Só pelo referido Decreto-Lei n.° 572/74, se estabeleceu a eleição para todos os cargos, suprimindo-se a imposição de um período mínimo de exercício da profissão como condição de ilegibilidade — que foi de 20, 15 ou 10 anos, conforme o Conselho e as variações do regime legal.
Tudo isto dificultava a intervenção dos mais novos e daqueles que não faziam parte dos quadros institucionais, levando a situações de desinteresse e desencanto.
Recordo que esta “paz podre”, no tocante a eleições só foi agitada nas que ocorreram para o triénio de 1972 a 1974, precisamente aquele em que veio a ter lugar o Congresso que hoje recordamos.
Em tais eleições, nos finais de 1969, surgiu, pela primeira vez, uma lista de Delegados pela Comarca de Lisboa alternativa à tradicionalmente proposta pela Ordem, circunstância que fez abalar a quietude institucional. E o mais significativo é que essa lista, encabeçada pelo Dr. Arnaldo Constantino Fernandes, grande Advogado e grande Homem, que tem sido tão injustamente esquecido, ganhou a eleição(2), esta em sufrágio directo na área comarcã.
Era um prenúncio de novos tempos e o sinal que alguma coisa estava a mudar. E, com efeito, assim sucedia…
Pela primeira vez na história da Ordem apresentaram-se então a sufrágio três listas, uma digamos que oficial, encabeçada pelo Bastonário Pedro Pitta e outras duas encabeçadas pelos Drs. Abranches Ferrão e Ângelo de Almeida Ribeiro, que veio a ser o eleito (3).
Para dar uma ideia prática do sistema vigente e da escassa representatividade directa da Classe, acrescentarei que o colégio eleitoral era composto apenas por 72 advogados, tendo votado 63, atribuindo 32 votos ao Bastonário Almeida Ribeiro, 24 ao Bastonário Pedro Pitta e 7 ao Dr. Fernando Abranches Ferrão.
Constitui-se, assim, o Conselho Geral, então com 11 membros, sendo 6 eleitos e 5 nomeados pelo respectivo Presidente, a quem veio a caber a preparação do I Congresso. Foi composto, para além do Bastonário Almeida Ribeiro, pelos vogais eleitos Carlos Lima, Vasco da Gama Fernandes, Jaime do Rego Afreixo e por quem se vos dirige. Como vogais nomeados, pelos colegas Duarte Vidal, Francisco Sá Carneiro, Francisco Tinoco de Faria, Clemente Ribeiro e Mário Raposo, que foi o Bastonário no triénio seguinte.
Em 15 de Janeiro de 1972 o Dr. Jaime Afreixo pediu escusa, sendo substituído pelo Dr. Francisco Salgado Zenha e, em Março de 1973, por falecimento do Dr. Carlos Cal Brandão, tomou posse o Dr. Armando Bacelar.
III. Para situar o I Congresso no seu espaço e no seu tempo, torna-se indispensável referir a conjuntura social, política e profissional que se vivia nesses difíceis anos que o precederam.
Eram inúmeros os Advogados perseguidos e detidos por razões políticas, numa clamorosa sucessão de processos, prisões e medidas administrativas, não podendo deixar de referir, numa lista, infelizmente, longe de exaustiva, os casos dos Colegas Arlindo Vicente, Mário Soares, Vasco da Gama Fernandes, Olívio França, Acácio Gouveia, Araújo Correia, Artur dos Santos Silva, Humberto Lopes, Carlos Cal Brandão, Domingos Arouca, Eduardo de Figueiredo, Fernando Abranches Ferrão, Gustavo Soromenho, Lino Lima, Manuel João da Palma Carlos, Mário Cal Brandão, Salgado Zenha, Sebastião Lima Rego, Saúl Nunes, Monteiro Matias e tantos outros que, infelizmente, terei, involuntariamente, omitido.
Sem poder, por falta de tempo, invocar outras situações, não deixarei de referir, rapidamente, por paradigmáticos, alguns casos de que tive, aliás, directo e pessoal conhecimento.
Um deles foi o de meu Tio Manuel João da Palma Carlos, que, ao defender o nosso já falecido e ilustre Colega Dr. Humberto Lopes no Plenário Criminal de Lisboa, pretendeu que ficassem exarados em acta um protesto e um despacho sobre ele proferido, o que lhe foi arbitrariamente recusado. Ditou, então um requerimento, nos termos seguintes: “Podem V. Ex.as julgar como lhes apetecer, com a prova ou sem prova, mas o que não podem é deixar de consignar na acta o que na audiência se passa”.
Isto valeu-lhe passar, de imediato, da bancada da defesa para o banco dos réus e ser julgado e condenado, pelo colectivo dito ofendido, em sete meses de prisão efectiva e sete meses de multa
a 40$00 diários e na medida de segurança de interdição do exercício de sua profissão de advogado durante um ano. Contra esta decisão reagiram, em bloco e por unanimidade, o Bastonário Pedro Pitta e os Conselhos Superior, Geral e Distritais da Ordem, que assumiu o pagamento da multa e a defesa. A decisão veio a ser apenas parcialmente alterada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que substituiu a prisão efectiva por multa e revogou a medida de segurança e, sempre por iniciativa da Ordem e com o apoio de diversos Colegas, acabou por determinar a alteração do Código de Processo Penal, que permitia tal tipo de julgamento (4).
Devo acrescentar que outra medida de segurança, imposta pela Pide para impedir que o mesmo Colega saísse da área de Lisboa até para o exercício da sua profissão, vigorou durante muito tempo.
Outro dos casos, já mais próximo da época do Congresso, foi o das agressões e insultos por agentes da Pide ao Dr. Artur da Cunha Leal, em plena sala de audiências do Plenário Criminal de Lisboa, ao tentar ele evitar que os mesmos prosseguissem o espancamento do réu, o que tudo ocorreu sem que, aparentemente, o colectivo e o Ministério Público se tivessem apercebido do que se passava escassos metros à sua frente. Esta agressão, que se prolongou fora da sala, foi testemunhada por diversos Colegas, entre os quais os Drs. Salgado Zenha, Macaísta Malheiros e Danilo Barreiros (5).
Em matéria de agressões físicas, não posso também esquecer a sofrida pelo mesmo Dr. Francisco Salgado Zenha quando, como advogado e amigo, foi ao Aeroporto despedir-se do Dr. Mário Soares, deportado administrativamente para São Tomé, tendo eu próprio constatado, numa das sessões do Conselho Geral, os vestígios de tais agressões na pessoa do tão saudoso e inesquecível Colega.
De outra vez, no mesmo triénio, tendo acompanhado o nosso Bastonário Almeida Ribeiro à Prisão de Caxias para visitar um Colega detido, cujo nome já referi anteriormente, deparámos com vestígios de fortíssimos hematomas na sua face. Perguntando-lhe se fora agredido, respondeu que lhe acontecera pior: depois de vários dias e noites na conhecida tortura da estátua, de pé e sem lhe permitirem dormir, ao saber-se da nossa visita foi, na véspera, autorizado a recolher à cela, para se recompor. Mas o estado de exaustão era tal que, ao passar os ombrais da porta da sala de interrogatórios, aberta, foi colidir com os mesmos, provocando as lesões que víamos.
Para além do clima que tudo isto gerava, lutava-se contra as famosas medidas de segurança, que facilmente corresponderiam a penas de prisão perpétua, o que importa relembrar, especialmente agora que tanto se tem falado do Tribunal Penal Internacional, esquecendo-se comodamente um passado nacional recente.
Será útil relembrar que os Presidente dos Plenários eram designados pelo Ministro da Justiça, em comissões de serviço de três anos prorrogáveis, tal como era por si preenchida metade das vagas de Juízes do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações — Estatuto Judiciário, Decreto-Lei n.° 40.916, de 20 de Dezembro de 1956 e Decreto-Lei n.° 44.278 de 14 de Abril de 1962. As restantes vagas eram preenchidas pelo Conselho Superior Judiciário, também não electivo.
As medidas de segurança, cuja aplicação era cometida pelos Decretos-Lei 35.042 e 35.046, aos directores e sub-directores da Pide, sendo a fluidez dos princípios do Decreto-Lei n.° 40.550
propiciadora de todas as arbitrariedades e praticamente sem qualquer defesa eficaz. Basta pensar que a filosofia do Decreto-Lei
n.° 34.553, que regulava a competência dos tribunais de exe-
cução das penas, enunciada no respectivo preâmbulo, era a seguinte:
— “O arguido é, primeiro que tudo, fonte de prova, quando não é a principal fonte de prova”.
— Os processos de segurança “são complementares, tendo mais ou menos desenvolvimento consoante a amplitude das alterações da perigosidade ou a suficiência dos elementos já contidos no primeiro processo”… Por aqui se vê das condições em que tinha de agir a advocacia no plano dos chamados ilícitos contra a segurança do Estado e do ambiente político em que se debatia.
No ano de 1972, a situação era ainda agravada por dez anos de guerras coloniais, posicionamento internacional relativo à
orientação política portuguesa e sequelas das crises estudantis dos anos 60, com a dispersão de inúmeros estagiários, recém licenciados, pelas diversas colónias, medida oficial de larga perspicácia, que muito contribuiu, como se sabe, para a conscencialização política das forças armadas e eclosão do 25 de Abril.
IV. Este intróito pareceu-me indispensável para permitir aos que não viveram esses tempos, conhecer a conjuntura global em que se realizou o I Congresso Nacional dos Advogados.
De há muito constituia uma ambição da Classe, sempre negada pelo poder político, a realização de um congresso profissional.
Conforme narra o nosso cronista Alberto Lamy (6), em 1930 o Bastonário Martins de Carvalho propôz a sua realização, como mais tarde o fizeram o Dr. Azeredo Perdigão, em 1946, o
Dr. Abranches Ferrão, em 1959, o Dr. Pinto Menéres, em 1960, o Dr. Ribas de Sousa, em 1963 e 1964, o Dr. João José Gomes, também em 1964, o Dr. Armando Bacelar, em 1967 e o Dr. José Magalhães Godinho em 1969.
Porém, só no mandato do Bastonário Almeida Ribeiro, que aproveitou a relativa abertura da chamada “primavera marcelista”, veio a ter aceitação governamental a antiga pretensão, embora sob condições. Uma delas, expressa, foi impôr, como tema obrigatório, a “Extensão da Ordem dos Advogados ao Ultramar”, contra a opinião do Conselho Geral, que considerava tal matéria claramente inoportuna e necessáriamente geradora de contestação e polémica, como o foi na prática. A outra condição, implícita, era não se definir uma situação de confronto político, o que cerceava a liberdade das conclusões, sujeitas a um controlo difuso, não institucional, mas bem presente.
Considerou-se, porém, que a utilidade e efeitos do Congresso ultrapassariam largamente as condicionantes impostas e assim foi iniciada, em Março de 1972, a preparação do mesmo, com a escolha de sete temas: “Deontologia Profissional”, “Sociedades de Advogados”, “Estrutura da Ordem e Estágio”, “Os Advogados perante o Processo Civil”, “Os Advogados perante o Processo Penal”, “Reforma da Previdência” e “Papel do Advogado na Sociedade Portuguesa”. A escolha dos relatores de cada um desses temas recaiu sobre membros em exercício no Conselho Geral, Duarte Vidal, João Paulo Cancella de Abreu, Guilherme da Palma Carlos, Mário Raposo, Francisco Sá Carneiro, Francisco Tinoco de Faria e Vasco da Gama Fernandes. Só o “VIII Tema” o cargo foi atribuído a um colega que não fazia parte do Conselho Geral — o nosso actual Presidente da República, Jorge Sampaio.
É importante referir que, por iniciativa e sob orientação do mesmo Colega Jorge Sampaio, um grupo de jovens advogados, assistidos por técnicos de informática, levára a cabo um importante inquérito à situação dos Advogados, instrumento que foi de grande utilidade para o Congresso (7).
A Comissão de Honra foi composta pelos antigos Bastonários Adelino da Palma Carlos, Sá Nogueira e Pedro Pitta e pelos Advogados Honorários António Bustorff Silva, Azeredo Perdigão e Mário de Castro.
A Comissão Executiva, presidida pelo Bastonário Almeida Ribeiro, tinha como vogais os Drs. Constantino Fernandes, José Magalhães Godinho, Tinoco de Faria, Filinto Elísio, Vasco Cardim, Antero Moura-Carvalho, Celestino Santos, José Vasconcelos Abreu, Jorge Sá Borges, Luís Saragga Leal e pelos relatores dos diversos temas.
Na sessão inaugural, presidida pelo então Ministro da Justiça, Prof. Almeida Costa, que fez um discurso extraordináriamente prudente, publicado em separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.° 221, 1972, falaram ainda os Drs. Azeredo Perdigão, Conselheiro Adriano Vera Jardim, a representar o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Bastonário Almeida Ribeiro.
As sessões de trabalho, com discussão dos temas, tiveram lugar em 17 e 18 de Novembro, neste velho edifício, realizando-se também nele a sessão final, no dia 19, com apreciação e aprovação de conclusões, publicadas em separata da nossa Revista.
Em alguns dos temas, nomeadamente os relativos ao Processo Penal e o Advogado perante a sociedade, a discussão foi muito participada e por vezes, emocional.
As conclusões, como o sublinhou o saudoso Bastonário Almeida Ribeiro representaram, em muitos pontos, o pensar da grande maioria dos Advogados Portugueses. Noutras, não se congregou unanimidade, mas todas foram discutidas em clima de grande liberdade e tolerância, Segundo palavras suas “os advogados não pensaram apenas em si próprios, já que muitas medidas propostas aproveitam à generalidade dos cidadãos do País, que se interessaram, como poucas vezes terá acontecido, por um congresso que não lhes dizia directamente respeito”.
V. Como compreenderão, não seria possível referir todas as conclusões, algumas das quais, felizmente, já ultrapassadas face às alterações ocorridas em Portugal, desde 1974.
Mas não poderei deixar de citar, brevemente, algumas delas, por traduzirem aquilo que fomos e continuamos a ser como Classe defensora, em primeira linha, da Justiça, Liberdades e Garantias, seja qual fôr o preço a pagar.
No plano deontológico preconizou-se, tal como hoje, a definição precisa das regras de conduta profissional e idoneidade moral, um código de exercício, seja qual fôr a vertente da sua prática, a liberdade e a independencia da profissão. Propugnou-se o regresso à pena de expulsão, a igualdade de armas relativamente ao Ministério Público, a definição das incompatibilidades e a remuneração efectiva e condigna dos patrocínios oficiosos, além da
criação de tabelas de honorários, tendo em conta a especificidade dos casos. O relator do tema foi o saudoso Colega Duarte Vidal.
Pela primeira vez, foi ponderada a indispensabilidade de sociedades de advogados, prevendo- se a sua regulamentação e enquadramento. Foi relator o, igualmente saudoso, Colega João Paulo Cancella de Abreu.
Quanto à estrutura da Ordem, tema de que fui o relator, votou--se a democratização, devendo ser independente, autónoma e submetida a um direito profissional e disciplinar próprios, guardiã livre de suas regras. Para garantia da verdadeira representatividade de seus Orgãos, haveria que consagrar o princípio do sufrágio directo, assegurando-se às candidaturas igualdade de condições.
Defendeu-se, ainda, a abolição de limitações decorrentes do tempo de exercício da profissão para o desempenho de cargos na Ordem, a proibição do desempenho simultâneo de mais de um cargo directivo, o princípio da rotatividade e a participação nas Assembleias Gerais de todos os advogados inscritos, sempre com sufrágio directo, além da redução dos poderes então conferidos ao Bastonário, cessando o seu direito à nomeação de membros dos diversos Conselhos.
Igualmente se sustentou a necessidade de declarações de aceitação de candidaturas, de apresentação de programas e da autonomia entre candidaturas a Bastonário e aos Conselhos, com excepção do Conselho Geral, tal como a eleição de todos os membros dos Conselho Superior, Geral, Distritais e Delegações.
Quanto ao estágio, entendeu-se que deveria assentar na própria Ordem e não na pessoa do patrono, devendo os estagiários ter representação junto dos seus orgãos.
No plano do Processo Civil, contestou-se o sistema da oralidade, preconizando-se já a gravação da prova, além de se porem em causa muitos aspectos pontuais do sistema processual então vigente.
Mais se defendeu a total independencia da Magistratura face ao poder executivo e a inexistência de posicionamento hierarquico desta relativamente à Advocacia.
Sustentou-se, ainda, que a apreciação da legalidade dos Actos de Administração teria de caber a orgãos independentes, como imperativo de um Estado de Direito, com a inerente alteração do Contencioso Administrativo, sem juízes de nomeação governamental e, ainda, a criação de um Tribunal Constitucional e de um Provedor de Justiça. O relator do tema foi o, depois, nosso Bastonário Mário Raposo.
No tocante ao Processo Penal as conclusões foram, essencialmente, no sentido de ampliar o âmbito interventivo dos Advogados, apenas sujeitos a sanção da competência exclusiva da Ordem, cabendo-lhes o direito de interrogar directamente as testemunhas e demais intervenientes. Havia que modificar as deploráveis condições de actuação dos Advogados nos Plenários Criminais, sendo inaceitável a instrução policial que precedia os julgamentos, retirando-lhe os poderes soberanos e discricionários que detinha.
Os indícios não poderiam ter o valor de prova, mas meramente informativos e a instrução, cometida exclusivamente a Juízes ou ao Ministério Público, mas jamais a polícias. As regras para o tratamento de detidos, aprovadas pelas Nações Unidas, deveriam ser convertidas em direito interno e o julgamento de todos os processos criminais deveria competir a tribunais cujos membros gozassem de reais garantias de independência, com intervenção de jurados nos crimes políticos e de imprensa.
O “habeas corpus” deveria abranger todas as jurisdições e ser revisto, dada a inconstitucionalidade do regime vigente, devendo proteger de deportações, desterros ou exílios arbitrários.
As medidas de segurança não poderiam ser impostas a crimes políticos, violando a Constituição sua aplicação por via administrativa ou governamental.
Finalmente, deveriam ser imediatamente abolidos os Plenários dos Tribunais Criminais, com a afectação dos processos políticos aos tribunais comuns de jurisdição ordinária. Por outras palavras, isto era a revolução total do sistema…
Relator foi o saudoso Colega Francisco Sá Carneiro.
Quanto ao papel do Advogado na sociedade portuguesa, as conclusões principais incidiram sobre a defesa dos Advogados face à avalanche do economicismo, regulando-se as suas condições de trabalho e tendo-se em conta a existência de seus diversos tipos socio-profissionais.
Cabe aos advogados a defesa das classes oprimidas, a vigilância crítica das leis, por si e através de sua Ordem, com a noção de que a transformação da sociedade não é feita através da função profissional, mas do pensamento e actuação noutros terrenos de acção.
Os Advogados e a Ordem devem, sim, contribuir para a elaboração e promulgação dos diplomas susceptíveis de instaurar em Portugal um Estado de Direito, cabendo-lhes exercer a crítica ao sistema constituído e contribuir para um regime mais justo.
Cabe aos Advogados lutar, como é seu insofismável dever, pela independência do Poder Judicial e pela existência de uma Organização Judiciária que assegure a boa administração da Justiça, propugnando-se a abolição do foro administrativo e criando--se um corpo único de Magistratura, sem intervenção ou interferência do Governo na respectiva orgânica interna, nomeadamente quanto a acessos, promoções, movimentos, classificações e disciplina, o que deve ser da exclusiva competência do Poder Judicial.
Igualmente se concluiu que deveriam ser abolidos quaisquer tribunais especiais, com ressalva da existência de juízos especializados.
Outra proposta para revolucionar o sistema…
Relator foi o nosso actual Presidente da República, o Advogado Jorge Sampaio.
VI. Como se vê, as Conclusões foram, em muito, percusoras da alteração legislativa que veio a verificar-se em Portugal, a partir de Abril de 1974.
Julgo que a Ordem poderá orgulhar-se do que foi, em termos de participação, intervenção e coragem cívica, o seu I Congresso.
Como já acima referi, a condição implícita e difusa imposta pelo Poder Político reportava-se à “moderação aceitável” das conclusões, que foram apresentadas pelos Relatores, numa reunião efectuada na noite que precedeu a sessão de encerramento. Só o Dr. Francisco Sá Carneiro não apresentou as suas, uma vez que, como referiu, a discussão de seu tema terminara imediatamente antes do jantar final, pelo que só as poderia escrever na madrugada de sábado 19.
Ora uma das conclusões do Tema VIII e diversas passagens do texto introdutório aludiam, frontalmente, a que inexistia em Portugal um Estado de Direito, o que motivou a ameaça de que, a manterem-se, seria encerrado o Congresso sem sessão final ou conclusões, com possíveis retaliações sobre a própria Ordem, situação essa a que assistiu, impávido e silencioso, o Dr. Francisco Sá Carneiro.
Chegou-se então, nessa sessão tempestuosa e bem à nossa maneira portuguesa, a um consenso no sentido do Relator Jorge Sampaio, conjuntamente com o nosso saudoso Colega e Amigo Jorge Correia do Amaral e comigo, suavisarmos a prosa e a conclusão, de forma a evitar que o Congresso ficasse amputado de sessão final. E assim fizemos, até altas horas da madrugada, dando uma redacção mais inóqua ao texto e à conclusão, que acabou por ser esta: “os Advogados e a sua Ordem devem contribuir para a elaboração e promulgação de diplomas susceptíveis da instauração em Portugal de um verdadeiro Estado de Direito.”
Isto passou o crivo censório, mas é certo que a censura nunca foi muito inteligente…
Aconteceu, porém, na sessão final, que o Dr. Francisco Sá Carneiro que, como narrei, habilmente não passara pela aprovação prévia, abriu calmamente, com enorme aplauso dos congressistas, a leitura de suas Conclusões com a afirmação de que “A posição do Advogado perante o processo penal, muito para além da indispensável conquista dos meios de actuação profissional livre e digna, tem de basear-se na luta pela defesa e pelo respeito dos direitos do Homem, facto essencial da realização do Estado de Direito na qual os advogados têm de estar empenhados”…
E assim ocorreram as coisas.
VII. Recordo, a defesa intransigente que a Classe fez da absoluta independência da Magistratura quanto ao poder político, que penso, face à Constituição e ao princípio da separação dos poderes, ser um dado democraticamente adquirido. Assim o espero…
VIII. Já vai demasiado longa esta intervenção, mas a vossa benevolência perdoará que não tenha conseguido ser mais breve.
Comecei por dizer que me deteria na descrição das condições políticas, sociais e profissionais em que se realizou o Congresso, para que os mais novos melhor pudessem compreender suas condicionantes e efeitos.
É, agora, o momento de recordar os mais antigos, Colegas, Amigos e Companheiros, que viveram e partilharam essa época difícil, mas da qual creio poderemos orgulhar-nos.
Muitos já partiram. É para eles que vai neste momento a minha recordação.
Certa vez, ouvi um escritor brasileiro dizer que enquanto estivermos vivos, não morre nenhum daqueles que conhecemos, pois todos permanecem na nossa memória. Escreveu Ary dos Santos, num dos seus poemas, que “morrer é separar-se de ninguém e contudo com todos ficar vivo”.
Seria injusto não relembrar os que tive a honra de, lado a lado, acompanhar no I Congresso e já não estão entre nós — Bastonário Almeida Ribeiro, Duarte Vidal, João Paulo Cancella de Abreu, Francisco Sá Carneiro, Vasco da Gama Fernandes, Colegas e Amigos. E também os demais que referi nesta longa e certamente fastidiosa fala.
Para todos eles vai a minha saudade.
E para os que tiveram a paciência de me escutar, vão as desculpas por não ter conseguido fazer melhor…
Disse.
Notas:
(1) Ver de Alberto Sousa Lamy “A Ordem dos Advogados Portugueses” — História, orgãos, funções, 1994, e Augusto Lopes Cardoso “Da Associação dos Advogados de Lisboa à Ordem dos Advogados”
(2) Compunham a Lista de Delegados Arnaldo Constantino Fernandes, Guilherme da Palma Carlos, Jorge Fagundes, Jorge Sampaio, José Vera Jardim, José Manuel Galvão Teles, José Lopes de Almeida, Luis Saias, Lobo Vilela, Luis Azevedo, Joaquim Mestre e Xencora Camotim.
(3) Ver in Revista O.A., Ano 31, pág. 538 a 625 “Eleições na Ordem dos Advogados para o triénio 1972-1974”.
(4) Ver Publicações da O.A., Revista O.A., Ano 19, págs. 5 e 27 e Salgado Zenha “Quatro Causas”, Morais Editora, pág. 54.
(5) Ver Revista da Ordem dos Advogados, Ano 28, 1968, pág. 213 e Salgado Zenha, in “Quatro Causas”, Morais Editora, pág. 221 e seguintes.
(6) In “A Ordem dos Advogados Portugueses” — História, Orgãos e Funções, 1984, pág. 97.
(7) Sobre o Congresso e o Inquérito ver R.O.A., Ano 31, pág. 181 a 127 e Ano 32, págs. 329 a 476.